quinta-feira, 29 de outubro de 2015

A volta para casa

Em 29 de outubro de 539 a.C., o rei Ciro II da Pérsia foi recebido na Babilônia como seu conquistador e libertador, após ter vencido em batalha e aprisionado o antigo imperador Nabonido. Neste dia, entre seus primeiros decretos, Ciro autorizou os judeus mantidos cativos na Babilônia a retornarem a suas terras e reconstruírem seu templo em Jerusalém.

Ciro era um nobre da tribo dos parsas, que habitavam o sudoeste do Irã e se submetiam aos seus primos medas do norte, que fundaram um império poderoso o suficiente para entrar em franca competição com os rivais do Império Neo-Babilônico, na Mesopotâmia, e da Lídia, no centro-oeste da atual Turquia. Ciro, com astúcia quase legendária, subjugara os dois. Em ambos os casos, após as vitórias militares, procurou manter intactas as estruturas físicas, sociais e religiosas locais, concedendo perdão e empregando em seu conselho mais próximo seus próprios adversários (o rei Creso, da Lídia, seria um deles). Impiedoso na guerra e magnânimo na vitória, excepcionalmente tolerante e receptivo com a pluralidade dos povos conquistados, criativo e industrioso como governante, Ciro, mesmo sendo um estrangeiro, seria quase sempre aceito como seu novo senhor.

Na Babilônia não foi diferente. Depois de Nabucodonosor II expandir seu império até a fronteira com o Egito, conquistando o que restava da Palestina, seu filho foi morto e o trono usurpado um punhado de vezes. A administração imperial ruiu diante da displicência de Nabonido. Os babilônicos podem ter percebido essa decadência associando-a ao fato de Nabonido ser um devoto do deus lunar Sîn, negligenciando Marduque, o deus patrono da cidade da Babilônia. Como ele passasse a maior parte do tempo retirado em um oásis longe da cidade, seu filho Belsazar atuava como regente. A arrogância de Belsazar se mostra no momento em que Babilônia está sitiada pelos exércitos persas, e o soberano resolve promover um enorme banquete, enquanto os persas cavavam para desviar o rio Eufrates do seu curso e abrir caminho a pé até os portões da cidade. Nabonido estava lá, impotente, e fora preso no começo de outubro, quando o general Gobrias entrou na cidade sem resistência. No dia 29 Ciro chegava da sua vitória mais recente, em Opis, no rio Tigre (Nabonido estava na capital fugido do avanço persa), e proclamava-se "Rei da Babilônia, Suméria e Acade, Rei dos quatro cantos do mundo".

Ciro foi um personagem celebrado ao longo da História. Ao forjar um império na Pérsia que se tornaria um centro de irradiação de cultura para metade da Ásia, suas obras, seus editos e seus feitos foram cuidadosamente preservados. Seu túmulo é uma das últimas estruturas ainda de pé onde antes existia a antiga capital de Pasárgada. Mesmo que, depois de séculos, a escrita cuneiforme (com a qual os documentos persas eram registrados em mais de uma língua) deixasse de ser inteligível, a memória de Ciro como fundador de impérios, pai de nações, libertador e salvador continuaria a ser perpetuada. E um dos conduítes em que a memória do reinado de Ciro, especialmente da sua conquista da Babilônia, atravessou o tempo e perdurou na cultura ocidental é o Antigo Testamento. A documentação produzida pelos babilônicos e pelos persas é uma oportunidade rara de contextualizar uma parte significativa do Antigo Testamento e da História do Judaísmo e fixá-las no tempo.

Os judeus emergiram como uma das doze tribos hebraicas que habitavam a Palestina, e, por razões religiosas e políticas, individualizou-se das demais tribos, emancipando-se do antigo reino de Israel após a morte do rei Salomão. O reino de Judá, com capital em Jerusalém, perdurou firmando ou quebrando alianças alternadamente com seus vizinhos do norte (Israel), do oeste (Moabe e Amon) e do sul (Edom e Egito, do qual, boa parte do tempo, era um reino-cliente). 

Para os poderes da Ásia, a Palestina era vital para manter em cheque a influência do Egito na região, bem como uma possível cabeça-de-ponte para ambições maiores no antigo reino africano. Em cerca de 734 a.C. o rei assírio Tiglate-Pileser conquistara Israel e destruíra sua capital Samaria. Este é um evento relatado duplamente nos segundos livros de Reis e Crônicas. Os livros também falam da captura do povo e sua deportação para a Assíria. A Assíria, segundo suas próprias fontes (que detalham que foram precisamente 27290 israelitas deportados), realizava deportações em massa sistematicamente, com o objetivo de diluir qualquer unidade étnica que poderia ajudar os povos cativos a se organizarem em revoltas contra o poder vigente. É uma lógica que perdurou por longo tempo, com finalidades diversas. Os escravos africanos na América tiveram dificuldade em articular algum tipo de resistência contra seus senhores por terem sido dispersos nas colônias, e colocados juntos de indivíduos de outras etnias, com línguas e tradições diversas, e frequentemente alguma rivalidade histórica. 

Os israelitas foram levados a Assíria em pelo menos duas grandes levas, com talvez uma terceira ocorrendo já dentro do território Assírio para o leste, eliminando qualquer possibilidade de articulação entre eles. As tribos do norte começam a desaparecer do registro bíblico a partir deste evento, embora a Mishná dê a entender que, séculos depois, os judeus ainda tivessem notícia das tribos israelitas no exterior. As Tribos Perdidas de Israel se tornariam tema de lendas espalhadas pela Ásia. Em 1605 o missionário jesuíta Matteo Ricci encontrou uma comunidade de judeus vivendo na China com cerca de 10 a 12 famílias, cuja notícia na Europa rapidamente fez crescer a crença popular de que haviam sido encontradas as Tribos Perdidas.

Judá sobreviveu à Assíria, e fez o jogo diplomático do novo império caldeu que a sucedera (o Império Neo-Babilônico). Em troca da proteção da Babilônia, o rei de Judá Joaquim concordou em enviar filhos da nobreza judaica como reféns à corte de Nabucodonosor. Este estado de coisas durou até que uma revolta pró-Egito irrompeu em Judá e provocou uma expedição punitiva dos caldeus. O rei Jeconias, filho de Joaquim, foi deposto pelas armas e sucedido pelo seu tio Zedequias. Zedequias também procurou apoio no Egito e provocou uma segunda invasão babilônica, na qual Nabucodonosor tomou Jerusalém e destruiu o Templo de Salomão (e neste momento chama a atenção que a Arca da Aliança, a relíquia máxima dos antigos hebreus, guardada no centro do Templo não é mencionada na narrativa, nem seu paradeiro é citado posteriormente). Os sobreviventes, entre eles Zedequias, o profeta Jeremias, bem como os cativos de todas as outras cidades de Judá arrasadas nas semanas anteriores, foram conduzidos à Babilônia. Nem todas as cidades foram destruídas, e uma parte dos judeus pode ter ficado para trás, mas um contingente significativo de cerca de 20 mil pessoas foi levado. Isto aconteceu provavelmente em 586 a.C.. Quatro anos depois o administrador de Judá apontado pela Babilônia para manter a terra produtiva, Gedalias, um judeu, foi assassinado, causando uma fuga em massa para o Egito e, possivelmente, mais deportações.

Porém, diferente do que aconteceu na Assíria, de alguma forma os judeus conseguiram manter-se coesos enquanto unidade étnica e nacional. Durante o exílio a tradição oral começou a ser transcrita (com a invenção do alfabeto hebraico), e surgem aí os primeiros livros da Torá e a estabilização da teologia hebraica, que vinha por muito tempo oscilando entre o politeísmo e o monocultismo, fato lamentado no próprio texto bíblico como razão para a queda de Jerusalém e o cativeiro na Babilônia. A exemplo da hierarquia religiosa babilônica, os escribas se tornam doutores e autoridades na religião, e assumem um papel elevado na sociedade judaica. Os judeus tinham uma certa autonomia nos domínios neo-babilônicos, participando ativamente da vida econômica do império. Alguns, como Daniel (um dos jovens nobres levados no primeiro momento) e Ester tiveram seu lugar na corte. Mesmo assim, os judeus eram cidadãos de segunda classe em uma terra estranha, e assim permaneceram por mais de quarenta anos.

Os judeus tinham confiança em seus profetas. O último de seus grandes profetas, Isaías (cujo livro parece ter sido escrito, se não por três autores, pelo menos em épocas diferentes), previra o fim do cativeiro na Babilônia e a restauração do Templo em Jerusalém. Quando Ciro tomou a cidade, aprisionou seu rei, e autorizou os judeus a retornarem a Judá (a província babilônia de Yehud, incorporada ao império persa), ele se tornou um salvador também para eles. Mesmo Ciro observando rigorosamente os ritos religiosos locais enquanto esteve na cidade (algo lembrado num texto babilônico conhecido como Crônicas de Nabonido), e retendo para si uma firme fé no Zoroastrismo, o cumprimento da profecia do início do livro de Isaías fez com que ele, Ciro, viesse a ser chamado no mesmo livro por Messias:

Assim disse o SENHOR ao seu Messias, a Ciro, de quem tomo pela mão direita para abater as nações diante de si, e afrouxar os cinturões dos reis, a abrir as portas diante dele, e as portas não se fecharão” (Is 45.1)

Messias significa “ungido pelo Senhor”, e é uma palavra associada aos reis hebraicos ou seus sumo-sacerdotes, que eram ungidos com óleo sagrado durante a coroação. Ciro é o único personagem não hebraico a ser chamado Messias em toda a Bíblia, não apenas por ser um rei, mas por ser um ungido espiritualmente pelo Senhor. Era o salvador que redimira os judeus dos seus pecados e os reconduziriam à Terra Prometida, como as profecias previram. O profeta Esdras vai adiante, e descreve o que teria sido o Edito de Ciro, em que libertava os judeus do cativeiro. Ele abre seu livro alegando ter sido o Edito obra de inspiração do seu Deus:

No primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia (para que se cumprisse a palavra do SENHOR, pela boca de Jeremias), despertou o SENHOR o espírito de Ciro, rei da Pérsia, o qual fez passar pregão por todo o seu reino, como também por escrito...” (Ed 1:1)

Eventualmente, em períodos mais tardios, vivendo sob administradores menos piedosos, entre persas e gregos, os profetas novamente se voltaram para a promessa da vinda de um Messias entre eles, que redimiria pecados, unificaria as tribos, reconstruiria o Templo e operaria milagres, mas, do ponto de vista dos judeus, este ainda está por vir.

Ciro era engenhoso, e sempre tinha um plano em mente. Sua política de tolerância e promoção das identidades dos povos sob seu domínio, e pesados investimentos em infraestrutura e melhorias na qualidade de vida, resultava em populações leais e satisfeitas, minimizando a necessidade de uma presença militar repressiva em um território que se transformava no maior império que o mundo vira até então. Existe um registro na Babilônia de uma ordem sua para que todos os povos retornassem às suas terras. Os judeus em particular retornariam para um território tradicional que, convenientemente, era a porta de entrada para o Egito. Ciro precisava desse território para fortificar suas defesas contra o reino rival com o menor custo possível (era preferível ter a estreita faixa de terra do deserto do Negueve entre ele e o Egito do que, por exemplo, ter que defender toda a linha a leste dos rios Jordão e Orontes, ou do Eufrates), ou para usá-lo como base para uma campanha na África. Para firmar a aliança com os judeus, autorizou a construção do Templo em Jerusalém.


De qualquer forma, os judeus tinham negócios na Babilônia, e eles não retornaram todos ao mesmo tempo. O afluxo de judeus para Yehud foi gradual ao longo de cerca de vinte anos. Quando chegaram lá, tiveram que disputar espaço com as populações locais, judeus e samaritanos remanescentes ou caldeus e demais estrangeiros que ocuparam aquele vazio, que viviam entre as ruínas de Jerusalém e nas outras cidades que existiam. Por esta razão, passaram-se quase vinte anos até que a situação se estabilizasse. Foi apenas durante o reinado de Dario, em 521 a.C., e sob o estímulo financeiro do governador local Zorobabel, que as obras de reconstrução do Templo começaram (ele foi terminado em 516 a.C.). A pedra fundamental do Segundo Templo, colocada no exato local onde repousava a Arca da Aliança, ainda está lá, no interior do Domo da Rocha, mesquita construída em 691 sobre os seus escombros. Teria sido naquele local, ainda em escombros, que Maomé teria recebido a visita em sonho do anjo Gabriel, revelando-lhe os mistérios o Islã.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

In hoc signo vinces

Em 28 de outubro de 312, o imperador romano Constantino venceu seu concorrente Maxêncio na Batalha da Ponte Milvia, a noroeste de Roma, abrindo o caminho para a unificação do império dividido anos mais tarde sob Constantino. No dia que antecedeu esta batalha, Constantino teve uma visão tida pelos cristãos como reveladora, e que o teria levado, ao final da vida, a se converter ao Cristianismo.

O Império Romano estava dividido oficialmente em duas metades - Ocidente e Oriente - administradas em quatro setores - o primeiro incluía Itália, Espanha, e África; o segundo França e Grã-Bretanha; o terceiro os Bálcãs e a Grécia; o quarto a Ásia e o Egito. Cada metade era dirigida por um co-imperador sob o título de Augusto, e afora os setores onde estavam as capitais imperiais (Milão, no Ocidente, Nicomédia, no Oriente), os Augustos eram auxiliados por administradores com alto grau de autonomia, também co-imperadores, sob o título de Césares. Esta divisão foi uma ideia desenvolvida pelo Imperador Diocleciano menos de 20 anos antes que deu maravilhosamente certo, dando fim à longa e destrutiva crise política que assolava Roma desde o século II. Diocleciano foi tão bem sucedido que foi um dos únicos imperadores que viveram o suficiente para se aposentarem e morrerem de causas naturais - em 305 deixou o cargo para plantar verduras na sua vila na atual cidade de Split, na Croácia.

O equilíbrio da tetrarquia de Diocleciano dependia do respeito e reverência à precedência dos Augustos sobre os Césares, e entre os Augustos, do mais antigo sobre o mais recente. Era função do Augusto mais antigo nomear novos Césares, tanto do Oriente quanto do Ocidente, e eleger, entre os Césares, qual seria o próximo Augusto. Quando Diocleciano deixou o trono (ele assumira a metade oriental do império), seu colega Maximiano, Augusto do Ocidente, também se retirou da vida pública. Não havia mais nada que impedisse a ambição dos novos Augustos e Césares. Galério, novo Augusto do Oriente, "usurpou" a prioridade sobre Constâncio Cloro, do Ocidente, e nomeou os novos Césares, duas "crias" suas, esperando com isso garantir sua supremacia política naquele momento. Constâncio morreu em 306, e suas tropas na Grã-Bretanha elevaram seu filho Constantino ao lugar do pai. Galério, confuso, engoliu a raiva e regularizou a situação, nomeando-o César, dando-lhe controle sobre a Bretanha e a Gália. Em Milão, mais tarde naquele ano, Maxêncio, filho do antigo Augusto Maximiano, também foi aclamado imperador pela Guarda Pretoriana, sob rumores de que Galério pretendia taxar as propriedades na Itália (tradicionalmente isenta de impostos sobre a terra), precipitando uma guerra civil.

Embora a guerra civil tenha se iniciado entre Galério e Maxêncio, este tinha como rival Constantino - se Constantino podia ser imperador por ser filho de um, então ele também podia. Constantino, no entanto, preferiu se manter à margem do conflito, movendo-se com diplomacia. Entre 307 e 308, manteve-se na Gália, combatendo invasores germânicos ao longo do Rio Reno. Em 308 Galério convocou uma reunião em Carnutum, nos Alpes austríacos, reunindo inclusive Diocleciano e Maximiano (que, no meio disso tudo, retornara à ativa, mas fora impedido de tomar para si o título de Augusto pelo próprio filho) para resolver o impasse sobre quem era o que. Galério promoveu um antigo companheiro seu a Augusto do Ocidente, causando revolta em vários dos candidatos, inclusive Constantino.

Em 310, o império estava repartido, e eram todos contra todos, e Maxêncio ainda tinha controle sobre a Itália. Maximiano passou a servir sob Constantino na Gália, e o traiu, espalhando boatos da sua morte, esperando ser ele mesmo aclamado imperador - mas as tropas se mantiveram leais, e Maximiano teve que fugir, cometendo suicídio após ser capturado e exposto publicamente. Maxêncio, a despeito da rivalidade com o próprio pai, preparou-se para uma campanha contra Constantino para vingá-lo. Ao mesmo tempo, Constantino, que devia seu direito ao trono ao seu pai, e este a Maximiano, agora reivindicava a ancestralidade de um certo Cláudio II, imperador entre 268 e 270. Agora, por ter sangue real que precedia a todos, tinha mais direito ao trono do que o próprio Galério. Ele também passou a associar a si uma antiga previsão registrada pelo poeta Virgílio de que Apolo herdaria o mundo de seu pai Júpiter - seu deus de adoração deixou de ser o velho Marte, deus da guerra, para ser Sol Invictus, deidade cada vez mais popular em Roma associada a Apolo, também um deus solar.

Qualquer esperança de ordem da tetrarquia foi liquidada quando Galério morreu em 311, provavelmente de uma terrível gangrena abdominal. Os mandatários romanos do momento estavam todos ocupados uns contra os outros - Licínio, da Europa oriental, marchava contra Maximino Daia, baseado na Ásia. Maxêncio perdia apoio na Itália, porque apesar de alegar seu direito à púrpura imperial, sua administração era desastrada, bancada por altos impostos comerciais, de maneira que até os cristãos, que sob Maxêncio tinham liberdade até para eleger seu Papa, não o toleravam mais. Diante da postura hostil de Maxêncio na fronteira com a Gália, Constantino firmou uma aliança com Licínio e invadiu a Itália, vencendo batalhas com pouca resistência e sendo recebido de portões abertos na capital administrativa de Milão. Outras cidades chaves também se renderam - Verona, Modena, Ravena, e até a inexpugnável fortaleza de Aquiléia. Reforçado por legiões que se uniram à sua causa pelo caminho, em outubro de 312 ele se aproximou de Roma.

Maxêncio estava esperando em Roma com o grosso do seu exército, e suprimentos suficientes para sobreviver a um longo cerco. Em 27 de outubro, ao ouvir dos adivinhos que se marchasse para a batalha, o "inimigo de Roma cairá", Maxêncio atravessou o rio Tibre ao norte de encontro a Constantino.

Ali aconteceu um evento que se tornaria uma pedra angular na história do Cristianismo. Constantino estava acampado ao norte de Roma, quando, ao entardecer do dia 27, ele teve uma visão. A descrição desta visão varia de fonte para fonte. A versão que ficou popular no mundo romano da época é de que ele olhou para o céu, e viu o sol assumir a forma de uma cruz, e ele teria visto ou ouvido uma mensagem em grego ("Εν Τούτῳ Νίκα", em latim "in hoc signo vinces", em português "com este símbolo conquistarás"). À noite, ele teria sonhado com o "deus cristão" (Jesus Cristo), que mostrou a ele um símbolo específico que deveria ser pintado nos escudos dos seus soldados, para sua proteção. Outra versão inclui a aparição do signo e da mensagem de Jesus durante a visão. O tal símbolo é um monograma que combina as letras gregas Chi e Rho (X e P), que são as duas primeiras letras de "ΧΡΙΣΤΟΣ", "Christos", Cristo em grego.

Se Constantino pintou ou não o monograma nos escudos dos soldados ou o levou no seu estandarte, é debatível. A natureza cristã da visão é uma construção posterior feita pelos seus biógrafos, um deles o bispo Eusébio de Cesaréia, que alegava ter ouvido sobre a visão do próprio Constantino; é possível que a visão de natureza solar tenha sido tomada pelos romanos pagãos como um sinal de Sol Invictus ao seu favorito. De fato, Constantino continuou cunhando moedas associando a sua imagem ao deus solar até bem tarde na sua carreira. De qualquer forma, o episódio todo ajudou a elevar a moral das tropas e a confiança do seu general.

A batalha se desenrolou no dia 28 de outubro diante da Ponte Milvia (que pode ser atravessada a pé até hoje), que liga Roma à Via Flamínia, que vem do norte da Itália, e por onde marchava Constantino. Aparentemente, Maxêncio, que tinha um exército maior, posicionou seus soldados numa ampla linha, com o Tibre às costas, porém muito próximos ao rio, de modo que não tinham muito espaço para manobrar em caso de recuo. O ataque de Constantino sobre as relutantes tropas inimigas foi decisivo, provocando este recuo e fazendo muitos caírem no rio. Maxêncio tentou recuar para Roma e organizar uma resistência dentro de suas muralhas, mas grande parte de seus homens fugiam pela Ponte Milvia ou pelos campos, e o pontilhão de madeira construído para auxiliar no movimento das tropas da cidade para o campo de batalha colapsou sob os soldados em fuga. Maxêncio morreu afogado no Tibre tentando atravessá-lo a nado.

Constantino então tomou efetivamente o controle sobre toda a metade ocidental do império. Enquanto co-imperador com Licínio, Constantino, cuja mãe era cristã (ela teria lhe oferecido cravos retirados da cruz verdadeira, um dos quais teria sido incorporado ao seu elmo), assinou com o colega o Edito de Milão, reconhecendo o Cristianismo como uma religião tolerada dentro do Império Romano e restaurando a propriedade a romanos cristãos, tomadas por Diocleciano durante um período de perseguições religiosas do seu reinado. Eventualmente Licínio venceria Maximino Daia e tentaria assassinar Constantino, o que levou os dois a uma longa guerra, vencida pelo último em 325, restaurando provisoriamente a unidade do Império. Ele o expandiu sobre a Dácia (na Romênia, província perdida no século III) e o Cáucaso, o defendeu com sucesso de francos e godos vindos da Alemanha e estava preparando uma grande campanha contra os persas quando morreu. Ao longo do seu reinado, reformulou a antiga cidade grega de Bizâncio e a transformou na nova capital imperial, Constantinopla, e promoveu discussões religiosas entre as diferentes correntes do cristianismo, como o Concílio de Nicéia.

Embora tenham sido esculpidos estátuas e bustos, e erigido monumentos em honra a Constantino incluindo neles referências ao deus solar durante toda a sua vida (incluindo o magnífico Arco de Constantino, próximo ao Coliseu), sua proteção aos cristãos e promoção do Cristianismo não passaram despercebidas. Mesmo sendo oficialmente pagão (como de costume entre os imperadores desde o início, desempenhava concomitantemente o cargo de Pontifex Maximus, ou sumo-sacerdote da Roma pagã), o lábaro que ia à frente do seu exército durante a guerra com Licínio ostentava o monograma Chi-Rho. O símbolo era um dos vários usados por cristãos primitivos para denotar a sua fé, mas após Constantino passou a ser largamente associado ao Cristianismo e usado amplamente, antes da popularização da cruz romana como símbolo. No seu leito de morte, em Nicomédia, convocou bispos locais para batizá-lo, prometendo viver uma vida cristã caso fosse salvo. Na sua morte, Constantino deixou a igreja cristã extraordinariamente fortalecida e com peso político considerável. Depois de Constantino, o único imperador pagão no Ocidente ou no Oriente foi seu sobrinho Juliano (por causa das suas perseguições aos cristãos, conhecido como Juliano, o Apóstata), cimentando uma relação entre o poder secular e o poder eclesiástico que seria típico da Europa e alhures (interferindo, em maior ou menor grau, na laicidade dos Estados Nacionais modernos), abrindo caminho para o Cristianismo se tornar a religião hegemônica do mundo ocidental.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Brasil na Primeira Guerra Mundial

Em 26 de outubro de 1917, o presidente Venceslau Braz assinou a declaração de guerra à Alemanha e aos Poderes Centrais, colocando o Brasil na Primeira Guerra Mundial ao lado da Tríplice Entente.

Com o advento da Primeira Guerra Mundial, em agosto de 1914, o governo brasileiro optou por declarar-se neutro. Havia vários motivos para isso. Um dos principais era a fragilidade da economia brasileira, predominantemente agrária e dependente dos mercados europeus e norte americanos - os barões do café eram lentamente substituídos no cenário político pelos novos industriais, principalmente paulistas, mas ainda seriam a base de sustentação da República até o fim dos anos 1920. O governo de Venceslau Braz (o presidente que comandou o país durante quase todo o período da guerra) chegou a abaixar os impostos de exportação de produtos agrícolas conforme os clientes europeus começaram a ter limitações econômicas para importá-los. Tomar partido de um lado significaria perder o mercado do outro. Com o correr da guerra, no entanto, países como o Reino Unido proibiram a importação de café, para reservar à marinha mercante que ainda sobrevivia espaço para artigos mais vitais (tanto alimentos como insumos para a indústria bélica), estrangulando a economia nacional. Outra razão era a adesão à Convenção de Haia, onde um dos acordos ratificados pelo Brasil previa a busca de soluções pacíficas para conflitos internacionais - como não havia sido provocado ou ameaçado diretamente pelo conflito na Europa, o Brasil, como também os Estados Unidos e demais países independentes da América, se abstiveram de entrar na guerra no primeiro momento.

Durante a guerra, a Alemanha impôs um bloqueio aos portos da Entente, patrulhando as águas com navios, mas especialmente com submarinos, cuja tecnologia os alemães haviam aperfeiçoado e investido mais do que qualquer outro país nos anos anteriores. Em certo momento, o bloqueio passou a se estender a todo navio, militar ou mercante, que pudesse ter como destino algum país inimigo. Patrulhas ostensivas no Atlântico depois de 1916 resultaram em diversos ataques a navios mercantes de nações neutras que comercializavam com a França ou a Inglaterra. Em maio de 1916, o navio mercante brasileiro Rio Branco foi afundado por um submarino alemão, mas como ele estava sob bandeira britânica, com tripulação norueguesa, e navegando em águas territoriais na zona de guerra, o governo não considerou o ataque uma agressão. Mas o ataque ao cargueiro a vapor Paraná em abril de 1917, carregado de café, resultando na morte de três brasileiros, fez a atitude do governo mudar.

No Brasil, durante a guerra, duas "facções" surgiram entre a população: os que eram contra a guerra e o militarismo, que incluía pacifistas, comunistas, anarquistas, associações comerciais e outras organizações civis, e os que eram a favor da guerra, entre nacionalistas e militares. O naufrágio do Paraná provocou uma polarização radical entre as duas correntes. Manifestações pró-guerra foram vistas em diversas cidades do país nos dias que se seguiram, iniciando-se no Rio de Janeiro. Em várias delas, as manifestações espiralizaram de forma violenta para um anti-germanismo radical, onde manifestantes atacavam estabelecimentos comerciais, fábricas, restaurantes, e propriedades de alemães ou descendentes. Por conta da forte colonização germânica, Porto Alegre e Petrópolis tiveram alguns dos episódios mais violentos, pouco depois da declaração de guerra (atos semelhantes aconteceram também nos meses que antecederam a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial). Lauro Müller, Ministro de Relações Exteriores de descendência alemã, renunciou, e o Brasil cortou relações diplomáticas com a Alemanha. As manifestações pró-guerra, contudo, não chegaram a se equiparar às manifestações anti-guerra, em frequência e número de participantes.

A partir de abril de 1917, três outros navios mercantes brasileiros foram atacados. Três dias depois que o cargueiro Macau foi torpedeado próximo à costa da Espanha, em 23 de outubro, Venceslau Braz declarou guerra oficialmente à Alemanha.

O envolvimento do Brasil na guerra foi tímido. Venceslau, que já havia enfrentado crises internas violentas, como a Revolta dos Sargentos de dezembro de 1915 (uma tentativa de golpe civil-militar para a implantação do parlamentarismo), a Guerra do Contestado (movimento camponês na fronteira de Santa Catarina e Paraná, inspirado em certo nível no messianismo nacionalista do mito de Dom Sebastião), relutava em enviar tropas para a Europa. O exército foi rapidamente aumentado com a incorporação de novos recrutas, mas não contava com equipamentos suficientes, e a rápida evolução das táticas na Europa deixavam os brasileiros, com sua experiência baseada em conflitos domésticos, extremamente defasados. Um corpo de sargentos e oficiais (20 tenentes sob o general Napoleão Aché) foi enviado ao front ocidental, mas não chegou a entrar em combate (mesmo assim, um terço dos oficiais foram promovidos por bravura). Foi também enviada uma missão médica para auxiliar no combate à Gripe Espanhola, que atacava com força a população civil em toda a Europa.

A marinha brasileira estava em melhores condições de oferecer ajuda efetiva aos países da Entente: contando com dois couraçados com poder de fogo considerável (um deles o Minas Gerais, embarcação na qual se iniciou a Revolta da Chibata de 1910), dois cruzadores, quatro contra-torpedeiros, um navio auxiliar e um rebocador. Esta força (cognominada Divisão Naval em Operações de Guerra) seria designada inicialmente para patrulhar a faixa equatorial do Atlântico entre o Nordeste do Brasil e o extremo oeste da África. A missão chegou a afundar um submarino alemão próximo ao Senegal, mas se deteve nas proximidades de Dacar por 4 meses devido ao caos causado pela Gripe na tripulação. Quando a frota chegou a Gibraltar para atuar no cenário do Mediterrâneo, o armistício já havia sido assinado.

Rodrigues Alves, o sucessor indicado pelos paulistas à presidência em 1918 (que venceria oficialmente as eleições com 99% dos votos), encomendara um relatório ao deputado Pandiá Calógeras com recomendações a serem adotadas a partir do final de 1918, quando assumiria. O Plano Calógeras consistia de um envio massivo de tropas brasileiras à França, às expensas de empréstimos junto a bancos americanos que seriam pagos com indenizações das nações derrotadas. As tropas, mal equipadas, seriam treinadas e armadas pelos próprio franceses. Rodrigues Alves não pôde tomar posse em novembro de 1918 por ter contraído a Gripe Espanhola, da qual morreria em janeiro seguinte. O armistício impediu que o Plano Calógeras fosse colocado em prática.

O governo tirou proveito da guerra para empreender dois objetivos: o primeiro, obter seu butim. Como enviara homens para o conflito, o Brasil ganhou o direito de participar das reuniões que definiriam o Tratado de Versailles, e recuperaria, a título de indenização, o pagamento com juros dos carregamentos de café perdidos no mar, bem como 70 navios alemães e austríacos capturados nos portos brasileiros desde 26 de outubro de 1917. O segundo benefício para o governo foi, após o ato da declaração de guerra, a instauração de um estado de emergência nacional, que deu poder ao Governo Federal de perseguir e prender os opositores mais vocais entre os que eram contra a guerra - especialmente anarquistas e comunistas inflados pelo êxito da Revolução Russa - sem, contudo, tomar ações proporcionais contra manifestantes anti-germânicos mais violentos. Por causa desse desequilíbrio de ações, os opositores acusavam o governo de usar a guerra como pretexto para imprimir perseguições políticas e distrair o povo dos problemas do país com retórica nacionalista.

A economia brasileira também foi aquecida com a nova demanda por alimentícios e a recuperação dos mercados de café. Também havia, durante a guerra, grande demanda por matérias primas e insumos para a construção, o que acelerou o processo de industrialização, principalmente em São Paulo. Após a guerra, esta demanda disparou devido às obras de reconstrução no Velho Continente, de maneira que a indústria brasileira, aproveitando-se do novo influxo de divisas vindas da agricultura e da chegada de imigrantes europeus fugidos da guerra, sofreu um crescimento sem precedentes - o que, no futuro, com o fortalecimento da nova burguesia industrial, abalaria as fundações da República Velha.

Neste dia também: A Revolta de Asen e Pedro

sábado, 24 de outubro de 2015

Baibars, o mameluco

Em 24 de outubro de 1260, após o assassinato do sultão Qutuz, o ex-escravo turco Baibars tornou-se sultão do Egito.

Baibars era um turco do povo Kipchak, nascido provavelmente na Rússia ou na Ucrânia durante as conquistas mongólicas, em 1223. Seu nome significa no idioma kipchak "Senhor das Panteras", ou "Rei Pantera". Ele teria sido capturado ainda criança e vendido como escravo. De alguma forma fora parar na Síria onde, dizia, passara a infância fugindo pelas montanhas. Eventualmente, acabaria vendido a um oficial mameluco (elite multiétnica turca que, à época, consistia na elite militar do Sultanato Aiúbida) e enviado ao Egito, onde foi treinado e escalado para a segurança pessoal do sultão aiúbida As-Salih - sua sagacidade e sua aparência física destacada (era loiro de olhos claros) possivelmente compensavam a visão prejudicada por um olho com catarata. Conquistando postos de comando no exército aiúbida, teria participado das últimas batalhas do período da Sexta Cruzada, que anularam qualquer possibilidade do reino cristão de Outremer, na Terra Santa, de retomar a iniciativa contra os muçulmanos por conta própria.

Em 1260, Baibars estava no apogeu da sua carreira militar. Um mês e meio antes do golpe, liderara o exército egípcio no que talvez tenha sido a batalha mais significativa daquele século, em Ain Jalut, no Líbano. Ali, Baibars derrotou os mongóis.

Em 1260, mensageiros sob as ordens de Hulagu, comandante mongol no Oriente Médio, entregaram ao sultão mameluco Qutuz a seguinte mensagem:

"Do Rei dos Reis do Leste e do Oeste, o Grande Khan. A Qutuz o Mameluco, que fugiu para escapar às nossas espadas. Deverias pensar no que aconteceu aos outros países e te submeter a nós. Ouviste sobre como conquistamos um vasto império a purificamos a terra das desordens que a maculavam. Nós conquistamos vastas áreas, massacrando todos os povos. Não podes escapar do terror de nossos exércitos. Para onde fugirias? Que estrada usarias para escapar de nós? Nossos cavalos são velozes, nossas flechas afiadas, nossas espadas como relâmpagos, nossos corações duros como as montanhas, nossos soldados numerosos como grãos de areia. Fortalezas não nos deterão, nem exércitos nos pararão. Tuas preces a Deus não servirão contra nós. Não somos comovidos por lágrimas nem tocados por lamentações. Apenas aqueles que imploram por nossa proteção estarão a salvo. Apressa a tua resposta antes que o fogo da guerra queime. Resiste e sofrerás as mais terríveis catástrofes. Nós esmigalharemos tuas mesquitas e revelaremos a fraqueza de teu Deus, e então mataremos tuas crianças e teus velhos juntos. No momento és o único inimigo contra quem temos que marchar."

Provavelmente Qutuz já sabia que a mensagem era verdadeira. O avanço mongol sob Mongke Khan, neto de Genghis Khan, em direção ao Oriente Médio alterou drasticamente o equilíbrio de poder na região. As entidades geopolíticas que disputavam a supremacia entre a Mesopotâmia, a Síria e a Palestina (o Império de Kwarizm, no Irã, o Califado de Bagdá, no Iraque, e o próprio Sultanato Aiúbida, concentrado na Síria mas abrangendo também o Egito) na época da Sexta Cruzada simplesmente deixaram de existir. Os mongóis obliteraram Kwarizm, conquistaram Bagdá (causando uma devastação tamanha em toda Mesopotâmia que a agricultura da região até hoje, mesmo com toda a tecnologia moderna, ainda não recuperou sua produtividade), e semanas depois Damasco, levando o Sultanato Aiúbida ao caos. Os generais mamelucos rapidamente preencheram o vácuo de poder causado pela perda da Síria e instauraram no Egito um sultanato próprio (embora os governadores de Aleppo continuassem a governar localmente pretendendo serem sultões aiúbidas legítimos). Desde 1259, reinava no Cairo o sultão Qutuz (outro ex-escravo capturado por mongóis, possivelmente em Kwarizm). Na ocasião da sua ascensão, ele não foi capaz de salvar a Síria da repentina invasão mongol, apesar do pedido desesperado do governador de Aleppo, que recebera mensagem semelhante. Qutuz, no entanto, respondeu assassinando os mensageiros e espetando suas cabeças em espigões nos portões do Cairo. Como acontecera em ocasiões semelhantes, de forma especialmente trágica em Merv (a maior cidade do mundo no seu tempo, reduzida a escombros e cadáveres) e Bagdá, o desafio provocou a ira mongol.

A morte repentina de Mongke Khan foi um golpe de sorte para Qutuz e todos os reinos que esperavam, apreensivos, o inexorável ataque mongol. Hulagu tivera que recuar da Síria com a maior parte das suas forças em agosto de 1259 para participar da assembléia que elegeria o novo Grande Khan (ele era um dos candidatos, mas seu irmão Kublai foi eleito). Hulagu havia deixado algo próximo a 10 mil homens no oeste do Eufrates para prosseguir com as conquistas no Oriente Médio, visando Jerusalém, ponto de apoio para uma campanha no norte da África. Qutuz reunira um grande exército no Egito e marchara para a Palestina. Kitbuqa, general encarregado por Hulagu nesta campanha, marchou para o sul a partir do Líbano, reforçado por exércitos de reinos cristãos que se submeteram pacificamente aos mongóis, como a Geórgia e a Armênia Cilícia. Os cristãos de maneira geral apostavam nos mongóis contra os muçulmanos. Os cruzados remanescentes na Terra Santa, contudo, estavam proibidos pelo Papa de se aliarem aos mongóis, o que os colocava em situação perigosa. Mesmo assim, eles proibiram os mamelucos de marcharem pacificamente pelo seu território, forçando-os na direção do Vale de Jezreel. Em 3 de setembro, perto de Ain Jalut, no Líbano, os dois exércitos se encontraram.

Baibars volta à cena neste momento. Trazendo consigo algumas forças da Síria, se uniu a Qutuz e participou da definição da estratégia para esta batalha. Suas peripécias na juventude lhe deram um conhecimento de terreno que ninguém, entre mamelucos e mongóis, tinha, o que lhe deu uma posição de grande proeminência na movimentação egípcia. Ele distribuíra as forças egípcias nas montanhas e florestas, e lideraria um modesto destacamento de cavalaria rápida. Era Baibars quem se apresentava para a batalha diante dos mongóis. Kitbuqa despachou seus aliados cristãos à frente. Os dois lados combateram longamente, Baibars evitando expor demais suas forças, recuando sempre que podia, e contra-atacando à longa distância. Kitbuqa perdia a paciência, e enviou um ataque massivo ao pequeno exército mameluco. Mesmo com a cavalaria mais veloz do mundo, os mongóis não os alcançavam pelas trilhas, permitindo que Baibars os fustigasse e fugisse repetidamente, atraindo os mongóis cada vez mais para longe da planície. Kitbuqa não desconfiou de uma armadilha, e continuou pressionando. Quando chegaram às terras altas, Baibars fez o sinal, e milhares de mamelucos saíram de seus esconderijos e se abateram sobre os mongóis em todas as direções. Ao invés de se renderem, os mongóis lutaram com mais ferocidade para tentar romper o cerco, mas os mamelucos tinham como corpo principal do seu exército uma cavalaria pesada armada com longas lanças e espadas que, no combate à curta distância, não deram margem de manobra para os arqueiros leves da estepe asiática. Na retaguarda haviam canhoneiros, armados com canhões portáteis que serviam para assustar os cavalos inimigos, impedindo um movimento coordenado. Ao final do dia, quase todos os mongóis estavam mortos. Kitbuqa teria se retirado com ferimentos, e morrido ao se recusar a receber tratamento médico típico da hospitalidade muçulmana (ele era cristão).

Baibars caiu nas graças dos emires egípcios. Após a batalha, a caminho do Damasco, ele teria requisitado ao sultão o governorado de Aleppo para si, mas Qutuz nomeou o emir de Mosul para o cargo. Qutuz assegurou o controle sobre Damasco e a autoridade efetiva sobre a maior parte da Síria, e retornou para o Cairo. Nesse caminho, Baibars teria conspirado com os emires, agora seus aliados, e no dia 24 de outubro, pelo menos três deles apunhalaram o sultão. Como Qutuz não tinha filhos, os emires elegeram Baibars seu sucessor.

Baibars faria juz à fama nos anos seguintes debelando a Sétima Cruzada e mantendo a Nona em cheque (a Oitava Cruzada teve a Tunísia como alvo), além de conquistar o antigo reino cristão de Makuria, no Sudão, e infligir mais derrotas aos Mongóis no leste da Turquia. Também investiu pesadamente em infraestrutura para comunicação, transporte, produção agrícola e distribuição de alimentos, que ajudaram o sultanato mameluco a ter uma vida relativamente longa.

Mas seu maior feito, pelo qual seu nome seria lembrado, foi a vitória em Ain Jalut. Foi a primeira derrota mongol desde que começara o avanço sobre o mundo islâmico. O mito da invencibilidade mongol caiu, e na região, tanto os turcos mamelucos do Egito quanto seus vizinhos seljúcidas ao norte mantiveram os mongóis sob controle, impedindo seu avanço até o Mediterrâneo e ao sul da Europa e África, com consequências imprevisíveis para os mundos islâmico e cristão. Como sultão, ele também estabeleceu relações próximas com o Khanato da Horda Dourada, cujo khan Berke era também muçulmano. Em 1262, Hulagu em pessoa voltara ao Oriente Médio para esmagar os mamelucos, mas Berke iniciara uma série de ataques ao norte do seu território, distraindo sua atenção e impedindo uma campanha com força total no Levante. Baibars morreu em Damasco em 1277, possivelmente envenenado.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

O mundo antes da Criação

Eu vou apelar um pouco. Hoje a efeméride se refere, na verdade, ao 23 de outubro, mas no Calendário Juliano. Em 1650, o arcebispo de Armagh, James Ussher, publicou um livro com seus cálculos que apontavam para este dia, no ano de 4004 a.C., às 9 horas da noite, como a data precisa em que Deus criou o mundo (corresponde, na verdade, ao 5 de novembro do atual Calendário Gregoriano, se eu não estiver enganado). Foi o apogeu das discussões dos teólogos cristãos acerca da idade da Terra, antes do desenvolvimento da geologia e da arqueologia a partir do século XVIII. Na época, a tese satisfez várias correntes opostas, e se tornou uma data quase universalmente aceita (até hoje, mesmo sem citar a obra de Ussher ou mesmo conhecê-la, muitos religiosos recorrem automaticamente ao 4004 a.C. para determinar a idade da Terra).

Bom, existem evidências de que não apenas o mundo, mas a própria existência humana no planeta predata o ano 4004 a.C.. Aqui eu aproveito para fazer um apanhado do mundo no quinto milênio antes de Cristo:

-A Revolução Agrícola já corria a pleno vapor no Oriente Médio (usando aqui a ampla definição moderna de "Oriente Médio", bem entendido), especificamente no médio curso do Rio Nilo. Ali, a chamada Cultura Badari (porque foi descoberta sob a cidade de El-Badari) construiu casas de madeira, das quais tempo só nos legou vestígios. Domesticou o trigo e a cevada, plantando-os nas férteis terras aluviais expostas durante as vazantes anuais do rio, e armazenavam o excedente de produção em poços escavados na terra seca. Também criavam bois, cabras e ovelhas. Essas pessoas produziam ferramentas de pedra polida, como machados, facas, foices, mas também faziam ferramentas finas com lascas de sílica (usadas possivelmente para esculpir figuras em barro e marfim de hipopótamo e elefante, que deixaram para trás), e dominavam técnicas rudimentares de cerâmica. Usavam conchas obtidas pelo comércio com povoações no Mar Vermelho e pedras coloridas também obtidas em algum lugar não determinado (mas certamente não próximo a El-Badari, onde não existe esse tipo de material) como adorno, e essas peças decorativas eram enterradas com seus donos quando morriam.

-No norte da Europa, ao leste do Mar Báltico, tribos de caçadores-coletores  (é possível que eles ainda caçassem casualmente os últimos mamutes da Europa) deixaram para trás fragmentos de um tipo de cerâmica muito particular, chamada cerâmica de pente, por causa das marcações em finas linhas paralelas na superfície das peças, como se tivessem sido "penteadas" enquanto estavam frescas. E isso é um fato extraordinário, porque geralmente se supõe que a arte da cerâmica necessariamente se desenvolve junto, ou posteriormente à agricultura, pressupondo que a finalidade primária de um vaso de cerâmica seja o armazenamento e o transporte de grãos do campo até a aldeia. Nesta região, o desenvolvimento da cerâmica, constituída de peças com capacidade para até 60 litros, veio antes da agricultura, e surgiu logo depois, ou ao mesmo tempo que esta arte floresceu no Oriente Médio. Este desenvolvimento paralelo sem um mesmo fator causalístico pode sugerir, embora essa teoria esteja tão fragmentada quanto as próprias peças da cerâmica, que já poderia haver algum contato entre aquela região e o Oriente Médio através das bacias hidrográficas da Rússia, rotas de comércio consagradas desde a Antiguidade por onde se escoava todo tipo de produto produzido na Escandinávia, como o âmbar por exemplo. A presença desta cultura, precedendo as migrações indo-europeias do terceiro milênio a.C. e uralo-altaicas posteriores, poderia explicar a origem dos nomes de rios e montanhas, que não tem significado em nenhuma língua conhecida hoje ou no passado naquela área.

-No Japão do ano 4004 a.C., a cerâmica já era uma tradição mais antiga para os nativos quanto era o próprio mundo para o arcebispo Ussher. Em 12000 a.C., os caçadores-coletores que já habitavam o japão desde 40000 a.C. passaram a produzir peças de cerâmica onde armazenavam nozes, tubérculos e frutos obtidos nas florestas. Era o fim da última era glacial, e o derretimento das geleiras e aumento da umidade atmosférica e das chuvas permitiram a expansão das florestas do fundo dos vales mais baixos para as encostas das montanhas, dando aos antigos grupamentos humanos do Japão novas possibilidades para sobreviência. Perto da virada do sexto milênio, já se cultivava feijão e abóboras. A cerâmica chamada Jomon (significa algo como "marcado por cordas", porque era o método de decoração aplicada à cerâmica fresca) se desenvolveu sem paralelos no Extremo Oriente por milhares de anos, até que, por volta de 300 a.C., povos agrícolas cultivadores de arroz do continente chegaram ao Japão e mesclaram-se com as populações locais, transformando irreversivelmente sua arte e seu modo de vida.

-Ao longo do Rio Yantse, na China, as populações nômades começavam a assentar-se nas suas planícies aluviais e a cultivar painço nessa terra (o arroz, carro chefe da sua economia em tempos posteriores, estava sendo domesticado naquele período no sul, no vale do rio Mekong, de onde se espalhou rapidamente para o norte e o oeste). As lendas chinesas sobre a origem da sua civilização apontam para mil anos depois a época em que o lendário Imperador Amarelo, entre outros feitos vitais para a civilização, projetou e executou a construção de canais de drenagem para o Rio Yantse que possibilitaram o assentamento permanente às suas margens e o acesso à sua água para irrigação mais para o interior. Porém, essas obras já estavam em curso em 4004 a.C., provavelmente levadas adiante pela cooperação espontânea entre os agricultores e habitantes das aldeias locais, que sofriam com as cheias periódicas do volumoso rio. Aldeias de casas redondas ou mais ou menos retangulares, com o piso de terra batida escavado alguns centímetros abaixo da superfície e paredes de vime e barro e telhados de madeira e palha. Este povo já confeccionava tecidos de seda.

-Na Mesopotâmia, as populações que desde o sétimo milênio a.C. domavam gradualmente as cheias dos rios Tigre e Eufrates (construindo canais de drenagem à maneira das populações do Yantse), atingiram um estágio de cultura material conhecido como Período de al-Ubaid, em alusão a um dos primeiros sítios onde esta cultura foi identificada. A cultura ubaidi se epalhou pelo centro do Iraque até a antiga linha do litoral, onde ficaria a futura cidade suméria de Eridu (os sedimentos trazidos pelos rios da Mesopotâmia fizeram o continente avançar consideravelmente sobre o Golfo Pérsico ao longo dos séculos, de modo que o sítio de Eridu está a mais de 200 quilômetros do mar). Navios de junco faziam a comunicação fluvial entre as várias aldeias da região, estabelecendo uma rede ágil de comunicação. Se o Épico de Gilgamesh, compilado pelos sumérios no quarto milênio antes de Cristo, é uma rememoração de eventos do período formativo daquela civilização, um capítulo da história indicaria que essa rede de comunicação chegava até o Líbano, onde o herói-título e seu companheiro Enkidu mataram o monstro Humbaba e abriram acesso às ricas florestas de cedro da região.

-É no Oriente Médio que estão algumas das cidades habitadas continuamente mais antigas de que se tem notícia (ou seja, não são cidades construídas sobre outras mais antigas, abandonadas por algum motivo no passado). Em 4004 a.C., cidades como Damasco e Aleppo, na Síria, Sidon, no Líbano, e Susa, no Elão (atualmente no Iraque) já eram centros de cultura, comércio, religião e governo aos quais as áreas adjacentes e sua população já estavam submetidas. A cidade libanesa de Biblos era um assentamento semi-permanente desde 7000 a.C., e próximo a essa data, Jericó, localizado em um oásis muito disputado na Palestina, já estava protegida por fortificações. Na Turquia, o assentamento permanente de Çatalhuyuk foi fundado próximo a 7500 a.C., e, em 4004 a.C., já havia sido abandonado e esquecido havia pelo menos 1500 anos.

-No Mar Egeu, no arquipélago das Cíclades (entre Creta, a Grécia continental, e a Anatólia), seres humanos assentados ali desde o fim da última era glacial estavam produzindo esculturas em pedra muito características da região (uma mistura de elementos encontrados na Anatólia e na Grécia, onde as cidades de Argos e Atenas já prosperavam). Uma delas, conhecida como "Máscara Cicládica", a escultura de uma cabeça de mulher de um período posterior, seria representada na abertura dos Jogos Olímpicos de Atenas em 2004 como um símbolo do despertar da consciência humana no mundo grego.

-No restante do Mediterrâneo e na Europa continental, as antigas culturas megalíticas, caracterizadas pela construção de grandes monumentos de pedra, como o famoso Stonehenge na Grã Bretanha, já estavam definhando e sendo substituídas gradualmente por culturas neolíticas, com o advento da agricultura. Isso aconteceu em Malta, onde a migração de povos vindos da Sicília trouxeram novas crenças e novos modos de vida. Mas na França, grandes menires (pedras compridas com a ponta abaolada assimetricamente, às vezes esculpidas neste formato, posicionadas verticalmente no solo, possivelmente com alguma função religiosa) continuaram a ser erguidos. Os menires de Carnac, na Bretanha francesa, distribuídos em linhas paralelas quase perfeitas, foram montados assim por volta da virada do quinto milênio. Alguns séculos antes, um povo em Goseck, no centro da Alemanha, construiu um complexo de paliçadas de madeira perfazendo círculos concêntricos, aparentemente com o mesmo desenho básico e a mesma função astronômica dos monumentos megalíticos erguidos mais a oeste.

-Na América ocorreu a domesticação do que viria a ser a principal fonte de alimento de todas as civilizações mesoamericanas até o século XX, o milho. Esta planta nativa do México era uma gramínea de médio porte cujas espigas portavam talvez uma dúzia de grãos carnosos. Processos de melhoramento genético promovido por cruzamentos mais ou menos controlados entre diferentes cultivares progressivamente transformaram esta planta no milho que temos hoje, com grandes espigas repletas de fileiras de sementes, com centenas de cultivares diferindo em tamanho, sabor, consistência, cor e teor de amido, representando, talvez, o caso mais drástico de manipulação genética de uma espécie selvagem pelo ser humano (com a tecnologia e o conhecimento que os nativos da América tinham).

-Embora se convencione a sinonimizar o período neolítico com "idade da pedra", porque os principais implementos e ferramentas eram feitos a partir de pedras e minerais, o cobre já era extraído do interior das montanhas, separado do minério, e trabalhado desde pelo menos 7500 a.C.. Objetos desse metal era elaborados pelos povos do leste e do sul da China durante o quinto milênio. No Irã, o uso de ferramentas de cobre levou ao abandono gradual da arte de confecção de objetos utilitários de pedra (ao final do quinto milênio, o que existia de ferramentas de pedra eram exemplares grosseiros e mal acabados, com função marginal diante dos instrumentos de cobre). Nas grandes planícies da América do Norte, o amalgamamento de cobre com outros metais pode ter sido desenvolvido na virada do quinto para o quarto milênio antes de Cristo (as datas plausíveis mais recuadas colocam os antigos povos dos Grandes Lagos como candidatos a serem os primeiros a fundir metal no mundo).

Sem entrar na questão biológica ou geológica envolvendo a idade da Terra, em 4004 a.C. o mundo humano (o que Arnold Toynbee chamava de Oikoumene, paravra grega que deu origem ao português ecumene, que significa algo como "o mundo conhecido") já era muito antigo e atingia um ponto crítico de complexidade social e tecnológica que levaria ao surgimento das primeiras grandes civilizações logo em seguida (a História propriamente dita, começa com a invenção da escrita na florescente Suméria por volta de 3200 a.C.,). Adão e Eva, no momento da sua criação, ou, vá lá, no momento em que foram expulsos do Jardim do Éden, teriam sem dúvida se surpreendido sobremaneira ao se dar conta que o mundo em que caíram já havia aspectos civilizatórios tão complexos, como, por exemplo, a cidade fortificada de Jericó ou as ruínas de Çatalhuyuk, ou minas de cobre no Sudão, ou observatórios astronômicos de pedra na França, que já seriam algo tão antigo para eles naquela época como as pirâmides do Egito são para nós hoje.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Sangue e lama

Em 21 de outubro de 1600 foi travada a Batalha de Sekigahara, no Japão, entre forças leais ao clã Toyotomi e Tokugawa Ieyasu.

A Batalha de Sekigahara foi o clímax do longo período de guerra civil conhecido como Período Sengoku ("Reinos Combatentes") que se esparramava desde 1467: os shoguns (comandantes-em-chefe do Japão e seus governantes de facto) da casa Ashikaga viram seu poder diminuir junto com a sua capacidade de administrar rivalidades políticas, causando convulsões sociais, revoltas de daimyos (senhores de terras) locais e confrontamentos diretos entre daimyos rivais. Como os imperadores, havia muito tempo, eram mais figuras cerimoniais do que atores no cenário político, a timidez dos shoguns Ashikaga na administração de conflitos transformou o Japão numa colcha de retalhos de feudos semi-independentes, permitindo a ampliação de poderes dos clãs mais poderosos do Japão, como Takeda e Hojo, às custas de senhores menores, que se aliavam ou se submetiam a eles ou eram destituídos de suas terras pela força. Em 1560 Oda Nobunaga surge no cenário político interferindo num ataque planejado por Imagawa Yoshimoto à capital do shogunato, Kyoto; ao passar pelo território do clã Oda, Nobunaga interceptou o exército de 40 mil homens de Imagawa com apenas 3 mil, atacando-os com metade desse efetivo pela retaguarda, e matando o seu comandante. Essa atitude ousada levou os comandantes de Imagawa a se unirem a Nobunaga, e sua reputação varreu o Japão.

Os Ashikaga, divididos em clãs, derrubavam-se uns aos outros em ações fratricidas, e os apelos dos shoguns e seus pretendentes atraíam daimyos para a guerra. Nobunaga garantiu a posse de Ashikaga Yoshiaki, e o seu apoio tornava o shogun um fantoche. O próprio Yoshiaki mobilizou secretamente daimyos rivais contra Nobunaga. Mais rivalidades posicionavam outros daimyos ao lado do clã Oda. Seus principais apoiadores eram Toyotomi Hideyoshi, um mero soldado que vinha ganhando o favor de Nobunaga desde a vitória sobre Imagawa, e Tokugawa Ieyasu, um pequeno daimyo que fora refém dos Oda na juventude, mas construíra um pequeno império para si absorvendo terras do poderoso clã Hojo. Em 1573 Yoshiaki tentou assassinar Nobunaga, mas acabou exilado. Nobunaga seguiria nos próximos anos esmagando toda resistência contra a sua autoridade, embora não assumisse o título de shogun, deixado vago.

Em 1582, Nobunaga derrotou o clã Hatano, e, apesar da promessa de poupar seu líder, o assassinou em seu palácio. Como represália, os Hatano assassinaram a mãe de Akechi Mitsuhide, outro dos comandantes de Nobunaga. Enlouquecido pela dor, ignorou um comando para se unir a Hideyoshi em batalha contra o clã Mori e ordenou suas tropas a tomarem o castelo dos Hatano, onde estava Nobunaga. Seu comando era de que "o inimigo está lá", deixando dúvida sobre se o inimigo era Nobunaga ou os Hatano. Ao saber da traição, Nobunaga teria cometido seppuku (suicídio ritual) antes de ser encontrado e morto. Hideyoshi então selou uma trégua com os Mori, e correu para vingar Nobunaga assassinando Mitsuhide e destruindo seu exército. A súbita morte de Oda Nobunaga tornou a situação tensa: Toyotomi Hideyoshi e Tokugawa Ieyasu, seus sucessores naturais por mérito (haviam outros Oda envolvidos, mas nenhum tinha o prestígio para conduzir uma aliança tão ampla), tinham cada um seus próprios apoiadores. Mas pela celeridade em vingar Nobunaga, o próprio Ieyasu reconheceu a precedência do colega, embora sua origem camponesa impusesse algumas dificuldades - Hideyoshi assumiria o governo da maior parte do Japão como kampaku (uma espécie de regente provisório, mas com acesso direto à família imperial), nunca como shogun. Sua origem era tão baixa que apenas nesse momento ganhou um sobrenome (Toyotomi; Hideyoshi era uma corruptela de um apelido de infância).

Àquela altura, 2/3 da Ilha de Honshu já estavam sob controle da coalizão de Nobunaga, o restante sob controle de aliados, incluindo Tokugawa. Os últimos focos de resistência foram esmagados sem clemência. A administração Hideyoshi foi marcadamente personalista: baixou decretos proibindo o porte de armas por qualquer um que não fosse um samurai (enrijeceu também as regras para que um homem se tornasse um samurai e tivesse acesso a cargos públicos e militares, estagnando a mesma mobilidade social que permitira que ele chegasse ao governo), desviou rios para inundar vilas em territórios de daimyos rebeldes e redistribuiu suas terras para os aliados, perseguiu cristãos, inclusive crucificando 26 missionários e conversos em Nagasaki. Seu projeto mais megalomaníaco foi a invasão da península coreana e sua tentativa de anexação em 1592. Seu exército chegou a ocupar a maior parte da Coréia, mas o soberano do reino local de Joseon, com auxílio da China, os expulsou do país. Uma segunda invasão em 1598 ficou retida no sul do país e logo tiveram que dar meia volta, incapaz de furar a resistência combinada de coreanos e chineses.

Hideyoshi não viveu muito para ter sua autoridade abalada pelo fracasso na Coréia. Antes de morrer, nomeou cinco daimyos para um Conselho, que governaria até que seu filho Hideyori atingisse a maioridade. Por questão de respeito, e por ter sido companheiro próximo de Nobunaga desde o início, Tokugawa Ieyasu foi nomeado entre eles. O equilíbrio do Conselho foi quebrado poucos meses depois da morte de Hideyoshi, com a morte de outro conselheiro, Maeda Toshiie. Rivais de Tokugawa, com medo de que ele se aproveitasse da ocasião para tomar o poder deixado vago pelo velho Hideyoshi, se mobilizaram. Rumores de que planejavam seu assassinato, e o crescente recrutamento de soldados pelo clã Uesugi aumentaram as tensões. Ieyasu exigiu que o daimyo Uesugi Kagekatsu fosse a Kyoto se explicar diante do imperador, mas foi retribuído com acusações de traição. Ieyasu então correu para arregimentar aliados para levar um exército até as terras de Uesugi. Outro legalista, Ishida Mitsunari, convocou outro exército em resposta.

Mitsunari espalhou soldados por toda região central do Japão, isolando com uma faixa que ia de litoral a litoral o oeste do Japão, pretendendo usar a região de Gifu como centro de operações para a ocupação de Kyoto. Ieyasu partiu da sua capital, Edo (antigo nome de Tóquio). O exército ocidental perdeu tempo em Gifu e avançou pouco em duas semanas. Um dia de chuva e uma marcha difícil o forçou a montar acampamento em Sekigahara, enquanto sua pólvora era deixada a secar. Ieyasu seguiu naquela direção. Na manhã do dia 21 de outubro, um grupo de batedores de Ieyasu desceu a planície de Sekigahara sob forte neblina, e se surpreendeu ao praticamente bater de cara com vigias do lado inimigo.

As forças ocidentais consistiam de 120 mil soldados, posicionados defensivamente com um arco de colinas às suas costas e flanqueados por dois rios. O próprio Mitsunari estava chegando de Osaka com mais 4 mil homens. Ieyasu vinha com 75 mil soldados, e a seu favor algumas unidades de arcabuzeiros com pólvora seca (o uso de arcabuzes, que provara ser vital nas vitórias de Oda Nobunaga nos anos anteriores, era uma contribuição dos comerciantes portugueses à arte da guerra japonesa). Apesar de grande desvantagem, foi Tokugawa quem tomou a iniciativa, avançando com carga total sobre os inimigos. À esquerda de Tokugawa estava posicionada a unidade do exército ocidental sob comando de Kobayakawa Hideaki. Nos meses que antecederam a batalha, Tokugawa seguia em conversações com daimyos legalistas, oferecendo-lhes terras caso passassem para o seu lado em qualquer momento, e este Hideaki era um deles. Como hesitasse em atacar um lado ou outro, Ieyasu ordenou seus arcabuzeiros a atirar naquela direção para forçar uma decisão, e ajustar então a sua própria estratégia. Hideaki mudou de lado, distraindo as forças legalistas sob Otani Yoshitsugu, que controlavam aquela área. Outros daimyos ocidentais, vendo a fragilidade da sua ala direita, também mudaram de lado.

O colapso da ala direita e a carga dos vira-casacas paralisou o exército ocidental, virando o jogo para Tokugawa. Os que restavam estavam posicionados sobre as colinas a oeste, mas um de seus comandantes recusou uma ordem de Mitsunari (que, por uma questão de ordem, não era o comandante do exército naquele dia) de avançar para a planície, impedindo a movimentação de outras unidades. Perto do fim, este comandante, Kikkawa Hiroie, passou para o lado de Ieyasu. O exército de Mitsunari se dispersou e fugiu em todas as direções. Mais de 30 mil pessoas, inclusive muitos generais e daimyos foram mortos nas terras encharcadas de Sekigahara.

Cumprindo sua promessa, Tokugawa Ieyasu autorizou a redistribuição de terras de inimigos entre os aliados, inclusive os que desertaram a seu favor. Os derrotados perderam seu prestígio político, seus títulos e suas posses. Tokugawa foi reconhecido pelo imperador como shogun em 1603. A resistência leal à casa Toyotomi ainda resistiu por algum tempo, sendo finalmente debelada no cerco ao castelo de Osaka em 1615.

Embora tenha sido percebida na época apenas como uma disputa interna entre vassalos da casa Toyotomi, Sekigahara marcou o início do fim do Japão medieval. Os shoguns do clã Tokugawa remodelariam a estrutura social e política do Japão, modernizando-o até certo ponto, quando uma onda conservadora os levaria a repelir qualquer contato com o mundo exterior (à exceção única de uma missão diplomática holandesa na baía de Nagasaki) até que, em 1854, os Estados Unidos abriram relações com o Japão com canhões. Ironicamente, descendentes de clãs ocidentais prejudicados pelos Tokugawa foram alguns dos articuladores da Revolução Meiji, que destituiu o cargo de shogun e restaurou o papel central do imperador na política.

Muitos dos personagens do Período Sengoku se tornaram figuras de reverência da História japonesa e do imaginário popular. Do sangue misturado à lama na Batalha de Sekigahara, além das raízes de um novo Japão, emergiu Miyamoto Musashi, então um jovem de 16 anos que sobrevivera lutando do lado legalista, para se tornar o samurai mais famoso do país.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Piratas do Caribe

Em 20 de outubro de 1720, a embarcação Revenge foi abordada por um navio inglês, e seu capitão, o pirata Calico Jack, preso, junto com a sua tripulação.

A partir do segundo quartel do século XVII, a colonização de América e Caribe ocorria a pleno vapor. As colônias se tornavam grandes centros de produção de matéria prima e manufaturados de pouco valor agregado para a Europa. No Caribe, a riqueza dos colonos locais vinha da cana-de-açúcar e derivados, principalmente açúcar, melado e rum. Do continente vinham ouro, prata, cobre e pedras preciosas. Mais ao norte começaram a prosperar as fazendas de algodão, cujo processamento em fios e tecidos motivaria o desenvolvimento técnico que determinaria o início da Revolução Industrial no final do século seguinte. O tráfego de navios mercantes de um lado a outro do Atlântico era intenso, não apenas de mercadorias e dinheiro obtido com a sua venda, mas também de recursos financeiros vindos da Europa, ou saindo das colônias na forma de impostos. A riqueza era tanta que mergulhadores se arriscavam no fundo do mar para tentar resgatar tesouros de navios naufragados (até hoje existem grupos de exploradores especializados em tesouros perdidos em naufrágios da época). Mesmo assim, o controle que as metrópoles tinham sobre o mar tão longe das suas capitais era relativamente frouxo. Principalmente quando qualquer uma delas - Espanha, França, Inglaterra, Holanda - se envolvia em alguma guerra no Velho Continente, o que acontecia praticamente o tempo todo (e frequentemente envolvendo as quatro nações em combinações de alianças antagônicas), e precisava mobilizar sua marinha. Navios com cargas valiosas com pouca proteção eram alvo fácil de piratas, sobretudo nas áreas de maior tráfego, como o Caribe, as costas da América do Norte, Central, e norte da América do Sul.

No Caribe a pirataria começou ainda na primeira metade do século XVII, a partir da Ilha Tortuga, ao norte do Haiti, para onde colonos especializados na caça de animais silvestres na ilha de Hispaniola foram deslocados durante o processo de "limpeza" desta ilha para a plantação de cana-de-açúcar. Em Tortuga, cujo litoral rochoso era fácil de ser defendido, esses colonos começaram a abordar navios, especialmente os que voltavam para a Europa com as valiosas cargas de produtos das colônias, as quais revendiam. Muitos se especializavam em apreender navios e suas tripulações e oferecê-los em troca de resgate, outros armavam-se com o butim para realizar saques em terra ou no mar. Alguns constituíam frotas imponentes, e eram protegidos, ou até encorajados, a engajarem-se na captura de navios de determinadas nacionalidades. Logo vários portos na Jamaica (principalmente Port Royal, então colônia inglesa, de onde partiam contínuos ataques a navios espanhóis), em Cuba, nas Bahamas, em ilhas menores do Caribe, e mesmo na Louisiana (atualmente nos Estados Unidos, mas à época sob domínio francês) se tornavam centros de pirataria e contrabando, onde embarcações e suas cargas podiam ser compradas, vendidas, ou conquistadas em disputas mais ou menos pacíficas, e onde tripulações podiam ser contratadas.

No final do século XVII, mudanças políticas na Europa, como a queda da dinastia Stuart, apoiada pela França, na Inglaterra, colocaram em oposição os piratas de Tortuga (comissionados pela França) e Port Royal (chancelados pela Inglaterra), ao mesmo tempo em que a Espanha era afetada por uma crise econômica que restringia a sua atividade comercial na América. Além disso, as colônias espanholas mais visadas, como Maracaibo na Venezuela e Tolú na Colômbia, já haviam sido exauridas por constantes ataques de piratas. Em momentos de crise na Europa, os administradores coloniais apostariam na atividade de piratas para aumentar o influxo de riquezas e uma maneira de manter o crescimento de colônias rivais em cheque, de maneira que eles eram tolerados localmente, embora as coroas determinassem a sua ilegalidade.

No início do século XVIII a guerra pela sucessão do trono espanhol, que envolvia de um lado e de outro as quatro potências coloniais, havia terminado, boa parte das suas marinhas de guerra desfeitas, e os marinheiros experientes e piratas empregados como mercenários passaram a explorar o renovado fluxo de comércio da América para a Europa. A oportunidade de emprego junto às companhias coloniais de comércio tirou muitos piratas da ilegalidade, e os que permaneciam em atividades criminosas já não eram mais tão bem quistos pelos administradores coloniais. Um dos últimos refúgios da pirataria foi o porto de Nassau, nas Bahamas, refundado por piratas ingleses abastecidos com um vasto tesouro recuperado de um navio naufragado na costa da Florida - a ilha de Nova Providência, onde fica Nassau, ficaria conhecida como "República dos Piratas". O novo governador, Woodes Rogers, ele mesmo um antigo capitão do mar mercenário, estabeleceu-se no comando das Bahamas em 1719.

Era em Nassau que o inglês Jack Rackham, conhecido como Calico Jack por causa do tipo de tecido que o vestia, tinha sua base de operações. Ele era contramestre do Ranger, um veleiro sob o comando do pirata Charles Vane. Em 1718, o Ranger estava abordando pequenas embarcações perto de Nova Iorque, quando encontraram uma caravela francesa, maior e mais bem armada. Vane optou por fugir, mas Rackham, expressando sua contrariedade diante do desperdício de um valioso butim, ensaiou um motim, apoiado pela maior parte da tripulação. Quando chegaram em terra, Jack convocou uma votação entre os homens, e Vane foi removido do cargo de capitão do Ranger. Vane ficou com outro veleiro menor de propriedade do bando e quinze marujos que o apoiaram. O capitão, que tentara emular as práticas e a fama do famoso Barba Negra, atraíra para si a inveja de outros piratas, e, depois que foi localizado naufragado numa ilha junto a Honduras por outro pirata, foi preso e entregue às autoridades.

Jack foi escolhido novo capitão do Ranger, e criou sua própria reputação. A começar por perseguir e capturar o tal navio francês. Em dezembro de 1718 capturou o navio jamaicano Kingston, com um grande carregamento que deixaria sua tripulação financeiramente confortável por algum tempo. Navegando o Kingston, Jack se aproximou demais de Port Royal, e os mercadores locais, ao verem a bandeira preta com uma caveira no mastro do navio, contrataram mercenários para persegui-lo e resgatá-lo. Jack fugiu para Cuba, para transferir a carga do Kingston para o Ranger. Quando os inimigos viram o Kingstom aportado, o capturaram e mandaram homens em terra para perseguir Jack e seus homens. Eles se esconderam nas matas, e evitaram a captura. Em outra ocasião, Calico Jack estava em Cuba em situação parecida, quando um navio de guerra espanhol, acompanhado de um veleiro menor inglês, que patrulhava a costa cubana, entrou no porto. Os espanhóis viram o navio pirata de Calico Jack no porto e se prepararam para capturá-lo, mas como a maré estava baixa, o grande navio espanhol não podia se aproximar. Quando caiu a noite, Jack e seus homens saíram em barcos a remo e abordaram o veleiro inglês. Quando amanheceu, os espanhóis decidiram bombardear o Ranger, levando-o ao fundo da baía - mas Calico Jack, de posse do novo veleiro, partiu sorrateiramente e escapou mais uma vez.

Em 1718, como consequência da demanda por marujos experientes na marinha mercante, o rei George I da Inglaterra ofereceu perdão a todos os piratas que decidissem abandonar a clandestinidade e se empregassem em navios mercantes. Calico Jack então aportou em Nova Providência para estudar o assunto. Em Nassau, ele se apresentou ao governador Woodes Rogers suplicando pelo perdão, alegando que ele e seus homens foram levados à pirataria por Charles Vane. Rogers e Vane tiveram problemas no passado (por duas vezes Rogers tentou capturá-lo em vão), e isso pode tê-lo convencido a conceder o perdão real a Jack.

Nesse meio tempo, se apaixonou por uma pirata irlandesa chamada Anne Bonny, na época casada com o pirata James Bonny. Quando as autoridades perceberam os dois juntos, Anne passou a ser procurada pela justiça por adultério, cuja punição seria o açoite. Jack, que já gastara grande parte da sua fortuna com a nova amante, oferecera enviar uma boa quantia ao seu marido para "comprar" o seu divórcio, mas Anne teria se recusado a ser vendida "como um animal". Os dois reuniram nova tripulação e fugiram de Nassau num veleiro roubado, e retornaram à pirataria. Anne permaneceu à bordo vestida de homem com o nome de "Adam", pois era comum os marujos se recusarem a trabalhar com uma mulher na tripulação. De alguma maneira não bem esclarecida, outra pirata chamada Mary Read também teria sido empregada na tripulação de Calico Jack. Anne teria visto um dos marujos e o achado bonito, até saber que era Mary, também vestida de homem. As duas participaram ativamente das abordagens a pequenas embarcações no Caribe, causando consternação principalmente entre os navios pesqueiros no litoral jamaicano.

Os problemas que Calico Jack estava causando na Jamaica fizeram Woodes Rogers publicar uma nova ordem de prisão ao pirata e sua tripulação, em setembro de 1720. Eles foram encontrados ancorados perto do porto de Bry, na Jamaica. O único relato contemporâneo a respeito (do ex-pirata, Capitão Charles Johnson, em um livro de 1722) conta que a tripulação do navio de Calico Jack (na época, o veleiro Revenge) estava embriagada, e durante a abordagem apenas Anne e Mary ofereceram resistência. Aparentemente, ao ser apresentado às autoridades ou antes, Jack teria tentado negociar a soltura das duas mulheres, mas elas se livraram da condenação por pirataria alegando estarem grávidas. Calico Jack e o resto da sua tripulação foram condenados à forca ("Se você tivesse lutado como um homem, não precisaria morrer como um cão", teria dito Anne Bonny), e expostos em gaiolas na entrada do porto de Kingston, como advertência contra a pirataria.

Com melhores oportunidades no comércio formal e sem a conivência dos governos coloniais, a era dos piratas no Caribe estava chegando ao fim. O último pirata a ser reconhecido como tal foi o franco-americano Jean Laffite, cuja longa carreira de aventuras no mar pode ter incluído o resgate de Napoleão, exilado na ilha de Santa Helena no Atlântico Sul em 1815 e levado-o para a Louisiania, onde existe um mito local de que tenha se refugiado até sua morte em 1821.

A bandeira de Calico Jack, preta com uma caveira e um par de espadas cruzadas, foi usada na série de filmes Piratas do Caribe, como a bandeira do navio Pérola Negra.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Independência ou morte no Piauí

Em 19 de outubro de 1822, um grupo liderado por membros da maçonaria declaravam a público na assembléia legislativa local que a cidade de Parnaíba, no Piauí, se tornava independente de Portugal.

A forma como a Independência do Brasil é normalmente ensinada nas escolas dá a entender que foi um processo suave, costurado entre as elites, em que o príncipe Pedro de Alcântara e seus parentes em Portugal estavam de comum acordo. As coisas não foram tão simples, e nem tão pacíficas. O grito de "Independência ou morte!" se fez ouvir ao longe, e levado mais a sério em algumas regiões específicas.

Com forte adesão no Sudeste, Pedro teve pouco com que se preocupar com relação a um contra-ataque português à capital do Rio de Janeiro, ou outras com grande presença militar leal à sua casa. Mas não foi a dificuldade logística de uma guerra ultramarina que fez com que João VI, rei de Portugal, abrisse mão da totalidade do seu território. As províncias nordestinas tinham uma relação mais intensa com Lisboa do que com o Rio, devido à facilidade de navegação entre Portugal e os portos de Salvador ou Recife - do Rio a Salvador os navios precisavam frequentemente enfrentar ventos desfavoráveis que atrasavam demais a viagem, e a jornada por terra era quase impraticável. Além disso, a carência de uma marinha de guerra no Brasil deixava os pontos mais distantes da sua costa vulneráveis. De maneira que a influência da coroa portuguesa e seus mandatários no Nordeste, especialmente no Piauí e no Maranhão, garantiram, provisoriamente, um certo controle sobre aquela parte da colônia. A resistência portuguesa na Bahia e no Pará só foram debeladas com o auxílio de mercenários ingleses, franceses, chilenos, argentinos e outros, ao custo de cerca de 6 mil vidas.

Em 7 de setembro, em São Paulo, Pedro declarou independência. No Piauí, o governo da província continuava nas mãos dos portugueses. A coroa, antevendo a movimentação de Pedro em direção à independência política desde o "Dia do Fico" (9 de janeiro), havia nomeado em agosto para o comando militar ("Governador das Armas", acumulando também as funções do Executivo) da capital piauiense de Oeiras, no centro da província, major João José da Cunha Fidié, veterano da resistência portuguesa contra Napoleão. Portugal também enviara grande quantidade de armamento para as tropas locais anos antes. A notícia da declaração de independência no Rio de Janeiro chegou dias depois. Na cidade de Parnaíba, no litoral, membros da loja maçônica local - o magistrado João Cândido de Deus e Silva, o coronel e magnata (para os padrões da colônia) Simplício Dias da Silva, e o poeta Leonardo Castelo Branco (um cientista amador que tinha ideia fixa em construir o moto contínuo) - se reuniram junto à Câmara local lotada para declarar a independência de Parnaíba no dia 19, esperando que o movimento se espalhasse para Oeiras e as demais cidades, assim como para o Maranhão, outro bastião português. Curiosamente, a sua declaração exaltava igualmente João VI e Pedro, e não necessariamente reconhecendo a legitimidade de Pedro como imperador do Brasil (mas como seu "Defensor Perpétuo"). No contexto do século XIX, a maçonaria e outras sociedades secretas eram veículos extremamente capazes de disseminar ideias revolucionárias e mobilizar pessoal e recursos para viabilizá-las. Segundo a analogia de Laurentino Gomes, ela cumpria o papel que viria a assumir a Internacional Socialista na difusão do socialismo, agindo com vigor total numa América que estava disposta a romper os laços com a Europa e a experimentar novos modelos políticos.

Sabendo da agitação em Parnaíba, Fidié mobilizou suas tropas em Oeiras e marchou para o litoral. Ele parou em Campo Maior, a meio caminho, onde ouvira rumores de rebelião, mas fora recebido com entusiasmo, principalmente por portugueses residentes. O idealismo dos maçons parnaibenses não resistiu à superioridade das tropas portuguesas, maiores e mais bem armadas; os insurretos fugiram para o Ceará antes da chegada de Fidié, em dezembro. O major português permaneceu em Parnaíba por algumas semanas (dizem que aproveitando o clima mais aprazível do litoral).

Enquanto isso, em Oeiras, os rumores sobre a independência do Piauí atiçavam o interesse dos seus partidários. O brigadeiro Manoel de Sousa Martins, ao perceber que a declaração em Parnaíba não surtira qualquer resultado prático, decidiu se aproveitar da ausência do major Fidié para ocupar o palácio do governo em janeiro de 1823. Fidié soube da conspiração um mês depois, e começou a marchar de volta a Oeiras com 1100 soldados, 11 peças de artilharia, e alguns reforços vindos do Maranhão. De Oeiras, os rebeldes se deslocaram para Campo Maior, mais ao norte, onde se declarara a independência de Portugal no começo de fevereiro, e havia indícios de uma fábrica de pólvora de propriedade de um cidadão de Oeiras partidário da independência. Ali, os independendistas, reforçados por 500 cearenses, convocaram mais de mil camponeses, armados com velhas armas de caça, facões e foices. Leonardo Castelo Branco retornou, vindo de Piracuruca com grande parte dos homens da cidade, onde declarara a independência em janeiro. Os rebeldes tinham a certeza de que era preciso deter os portugueses antes de chegarem a Oeiras, onde independendistas assumiam o controle. No dia 13 de março, os sertanejos marcharam para o norte, para as proximidades do Rio Jenipapo.

Fidié marchou para o sul e enfrentou uma escaramuça perto da Lagoa do Jacaré. Em seguida passou por Piracuruca. A cidade havia acabado de ser evacuada por Castelo Branco na noite anterior. No dia 13 pela manhã ele chegou ao Rio Jenipapo. A estrada se bifurcava, então direcionou a cavalaria por um caminho e ele e a artilharia pelo outro. Aconteceu da cavalaria encontrar os rebeldes primeiro. O encontro foi encarniçado, e os rebeldes, em maior número, resistiram à carga. Os piauienses que estavam entrincheirados mais atrás saíram ao ouvir os tiros. Eles ficaram perdidos procurando o inimigo e abandonaram sua posição. Enquanto isso, Fidié manobrava e alcançava as trincheiras, colocando ali atiradores, montando barricadas e posicionando os canhões. Os sertanejos estavam perdidos, mas não se entregaram, tentando atacar a posição de Fidié por todos os lados. Após várias baixas em 5 horas de combates, retiraram-se em desordem pelos campos, deixando prisioneiros para trás. Os portugueses, cansados sob o sol a pino, decidiram não persegui-los.

Apesar da derrota, durante este combate e ao longo dos dias seguintes, os piauienses conseguiram roubar ou destruir os suprimentos e a artilharia da unidade de Fidié. O governador se viu à míngua e incapaz de retomar Oeiras, então decidiu reagrupar na atual cidade de União, indo depois para Caxias, no Maranhão, onde os portugueses também lutavam para manter o controle. Ali, se viu cercado e forçado a se render. Foi preso, levado a Oeiras, entregue por Manuel de Sousa Martins às autoridades, preso no quartel da Ilha de Villegagnon, no Rio de Janeiro, até ser libertado por Pedro I e mandado de volta a Portugal. O Piauí, oficialmente independente, aderiu ao novo Império no dia 13 de maio de 1823. Mas as inquietações dos mais liberais diante do conservadorismo novo imperador ainda levariam o Piauí a se juntar a outras províncias do Nordeste a dar um passo adiante, criando a Confederação do Equador, esmagada por Pedro I em 1824.

Neste dia também: A Batalha de Zama

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Paz Porfiriana

Em 16 de outubro de 1909, agentes de segurança americanos desarmaram um suspeito de atentado contra a vida dos presidentes Porfírio Díaz do México e William Taft dos Estados Unidos durante uma reunião na cidade de El Paso, Texas.

Em 1909, o presidente Porfírio Díaz já governava o México havia sete mandatos consecutivos. Sua subida ao poder se deve, principalmente, à sua popularidade adquirida durante os anos de guerras que marcaram o fim da monarquia e a intervenção francesa no México (que apoiava a monarquia). Quando seu antigo conhecido Benito Juárez, já na presidência, foi reeleito em 1870, Díaz, que fora candidato derrotado, liderou uma sublevação mal sucedida em 1871. O reeleito Juárez faleceu e foi sucedido pelo vice, Lerdo de Tejada, que anistiou Díaz, mas logo teve que confrontá-lo em combate durante a Revolta de Tuxtepec - Díaz alegava que a presidência deveria ser ocupada por um presidente eleito. Depois da Batalha de Tecoac, Tejada fugiu do país, e Díaz tomou o seu gabinete, embora o presidente em exercício fosse o presidente da Suprema Corte, agora José Maria Iglesias. Díaz foi em frente para removê-lo também. Com Iglesias fugindo do país, novas eleições foram convocadas, e Porfírio Díaz foi eleito presidente com larga margem em 1877.

Quando assumiu a presidência, Díaz se deparou com um Estado cuja autoridade era extremamente precária fora das maiores cidades, de um país vastamente rural e subdesenvolvido, e arruinado desde a guerra contra os Estados Unidos em 1846, quando perdeu metade do seu território. Díaz subiu na carreira cercado de liberais radicais, mas era extremamente pragmático. Diante de tão grandes problemas, deixou de lado processos democráticos e tomou decisões personalistas para impor a ordem pública que passavam por cima de direitos civis - segundo ele mesmo, a política do "pão ou pau". Com sua rede de apoiadores entre os militares, implementou, com forte e disciplinada presença do exército e uma centralização crescente do controle sobre a polícia, a "Paz Porfiriana", que combateu bandoleiros, mas também esmagou movimentos populares anti-governistas. O reconhecimento oficial dos Estados Unidos, que oferecia asilo a Lerdo de Tejada, veio depois de um pagamento de 300 mil dólares. Díaz também cimentou sua posição na presidência beneficiando abertamente aliados políticos, apaziguando grupos em conflito concedendo-lhes privilégios específicos (dar um pouco a cada um passava uma falsa sensação de democracia), e alterando, ironicamente, a Constituição para permitir a reeleição. Exceto no mandato que o sucedeu em 1880, quando foi eleito presidente seu homem de confiança, Manuel González Flores, veterano que perdera um braço na guerra contra a França, Díaz (que foi ministro de Flores) governou inconteste o México até 1911.

Também fez um grande trabalho de propaganda em torno de sua imagem, e suprimiu as críticas da grande imprensa com a censura ou a troca de favores, de maneira que, depois de um tempo, poucos ainda se lembravam da sua cruzada contra a reeleição de Benito Juárez. A memória que existia era a dos dezesseis anos de caos político e social que se seguiram ao fim da Segunda República, de modo que a Paz Porfiriana representava um enorme progresso.

A posição de Porfírio Díaz era tão soberana que, em certo momento, se tornou, concomitantemente, líder da maçonaria mexicana, e conselheiro dos bispos católicos. Embora assegurasse o poder supremo e, de qualquer forma, atingisse consideravelmente seu objetivo de pacificar o país, a administração personalista de Porfírio Díaz estava na realidade fragilizando as instituições republicanas. Para neutralizar a oposição, escalou amigos próximos para todas as posições de poder, e estruturou os órgãos públicos para que respondessem diretamente a ele. Enfraqueceu o caráter federalista (que definiu o nome oficial do país, Estados Unidos Mexicanos), limitando a autonomia dos estados e suas legislaturas quanto às decisões da presidência. Com a vida pública centralizada nas decisões de um homem agindo conforme seus planos de momento, a população nunca sabia o que esperar. Menos ainda os homens de negócio. A pacificação do interior começou a atrair o interesse de investidores estrangeiros, visando investimentos na mineração, agricultura, em infraestrutura, indústria, e comércio. Para negócios agropecuários, promoveu desapropriações de terras pequenos proprietários e reservas indígenas, redefiniu seus limites, e as vendeu.

Em 1908, já idoso, Porfírio anunciou que se retiraria da política ao final do seu mandato. Talvez tenha se impressionado com a voracidade com que os políticos, então sob perfeito controle, começaram a se agitar para definir seus candidatos. Um deles, Bernardo Reyes, então governador de Nuevo León, foi preventivamente enviado em missão à Europa para que não estivesse no país. Eventualmente Díaz desistiu da aposentadoria e começou a investir em mais uma campanha eleitoral, aceitando a candidatura rival de Francisco Madero (eventualmente ele mandara prender Madero pouco antes do pleito). Sua popularidade, contudo, declinava à medida em que, aos 78 anos, já não tinha o mesmo vigor para conduzir a política do país.

Ao longo dos anos, investidores americanos haviam injetado bilhões na economia mexicana. Em 1909, havia investimentos no valor aproximado de 800 milhões de dólares em valores da época no México, e cerca de 70 mil cidadãos americanos morando no país. Mas a incerteza sobre a sucessão fez com que esses mesmos investidores se virassem ao seu governo para achar uma saída para a crise. Porfírio Díaz então convidou o presidente William Taft para um encontro em ambas as cidades de El Paso, no Texas, e Ciudad Juárez, em Chihuahua. Havia uma pendência entre os dois países com relação à fronteira que passava entre as duas cidades. Uma mudança numa curva do Rio Grande, por onde corria a fronteira original, levou à assimilação de território formalmente mexicano pelos americanos (incorporando-o à cidade de El Paso), gerando grande tensão na região. Mas Taft estava mesmo interessado nos planos de Díaz para a sucessão presidencial e em assegurar os investimentos americanos no país em longo prazo. Para Díaz era uma boa oportunidade de fazer uma aparição e renovar a sua popularidade naquele ponto importante da fronteira. O encontro entre Díaz e Taft seria o primeiro encontro entre presidentes do México e dos Estados Unidos.

Sob o clima tenso da região, Taft chegou escoltado por Patrulheiros do Texas (uma espécie de milícia sob jurisdição do governo texano), agentes do Serviço Secreto, FBI, e o corpo de segurança pessoal do presidente, além de 250 seguranças contratados por um empresário americano diretamente interessado nas discussões da ocasião. Díaz mobilizou 4 mil soldados mexicanos. O encontro aconteceu no dia 16 de outubro. Naquela manhã, Taft chegou a El Paso e tomou um café da manhã no Hotel St. Regis. Díaz chegou às 11:00, paramentado com uniforme militar e o peito coberto por medalhas. Foi apresentado formalmente a Taft, trajando um terno comum. Os dois se reuniram a sós por vinte minutos. Uma hora depois, passaram a Ciudad Juárez, a primeira vez que um presidente americano atravessou a fronteira mexicana, para outra reunião no prédio da câmara do comércio local (que havia sido redecorado de maneira a se parecer com o Palácio de Versailles), onde concederiam uma coletiva de imprensa, posariam para fotos, e em seguida participariam de um extravagante banquete. Ciudad Juárez foi decretada capital federal para o evento. No dia seguinte ambos os mandatários retornaram para seus países.

No mesmo dia 16, em Los Angeles, o jornal Herald reproduziu uma notícia publicada em Chicago de que havia sido descoberto (por uma carta anônima enviada ao jornal) um plano de anarquistas para assassinarem os presidentes Taft e Díaz em El Paso. Os envolvidos estariam se reunindo havia duas semanas para planejar o atentado. Jornais e agências governamentais nos Estados Unidos vinham recebendo cartas anônimas com ameaças, como "uma bomba está pronta para Díaz". É certo que o serviço de inteligência americano estivesse trabalhando com essa informação, e por isso tenha organizado um esquema de segurança tão forte. Mesmo assim, quando os dois presidentes deixavam El Paso, o chefe da segurança contratada e um dos patrulheiros texanos identificaram um homem parado com um pequeno revólver na mão em frente à câmara do comércio local, de onde o cortejo se aproximava. Os dois homens imobilizaram e desarmaram o suspeito a poucos metros dos dois presidentes, antes que pudesse disparar um tiro. Eu, pessoalmente, não consegui alguma fonte que confirmasse a identidade do suspeito, mas o serviço de inteligência americano estava procurando naquele momento por Alexander Berkman, escritor lituano e anarquista radicado em Nova Iorque que já havia cumprido 14 anos na prisão por uma tentativa de assassinato.

A carreira de Porfírio Díaz tomaria um novo rumo. Ele foi de fato reeleito em 1910 pela oitava vez, a sétima consecutiva, mas resistiria no poder por apenas alguns meses. Naquele ano explodiu a Revolução Mexicana. Seu concorrente à presidência Francisco Madero contestou o resultado das eleições e levantou apoiadores contra Díaz. Sua demanda pela devolução das terras dos pequenos agricultores trouxe as classes menos favorecidas para o seu lado. Em 1911 Ciudad Juárez caiu, e logo depois Porfírio Díaz se viu forçado a exilar-se na França, onde morreu em 1915. William Taft esperava sinceramente que o mandato de Díaz durasse mais do que o seu, porque considerava que uma revolução no México exigiria uma ação americana para proteger seus interesses, mas essa que intervenção seria extremamente complicada (Taft deixou a presidência em 1913, sem ter tomado qualquer ação). Voltando-se contra o próprio Madero logo no início, visto como "traidor" e "representante das elites" pelo movimento tornado vigorosamente popular, a guerrilha se prolongou por 10 anos com mais de um milhão de mortos. O interesse da imprensa americana elevou alguns dos seus líderes, como Pancho Villa e Emiliano Zapata à fama internacional.

A questão da fronteira foi resolvida com um tratado ratificado por ambas as partes em 1963.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Turcos em Viena

Em 15 de outubro de 1529, após quase 20 dias de resistência e dissenções internas, um grande exército otomano levantou o cerco à cidade de Viena e se retirou.

Desde meados do século XV, o Império Otomano avançava progressivamente pelo sudeste da Europa. Em 1453 tomou Constantinopla, rebatizada Istambul, e, a partir daí, anexou a maior parte de Grécia (deixando alguns rincões para seus aliados venezianos), Macedônia, Albânia, Sérvia, Bulgária. Assumiu o controle sobre os tátáros na margem norte do Mar Negro, e transformou a Transilvânia em um Estado-cliente. Em 1526 tomou a porção oriental da Hungria, incluindo a sua capital Buda (que compõe com a vizinha Pest a atual Budapeste). A conquista da Hungria se deu após a Batalha de Mohács, onde morreu o rei húngaro Luis II.

A porção ocidental da Hungria ainda resistia, sob a esfera de influência dos Habsburgo, a família reinante do Sacro Império Romano. Enquanto o sultão Suleimã nomeou um certo João Zapolya rei da Hungria, o Sacro Império reuniu seus príncipes e representantes em Bratislava e elegeu o parente mais próximo de Luís, o arquiduque da Áustria Fernando, seu cunhado e irmão do sacro imperador Carlos V. Com um concorrente apoiado pelo sultão, Fernando se apressou em assegurar sua posição reconquistando Buda e várias cidades centrais em 1527. Zapolya contava apenas com uma guarnição turca deixada lá. Porém, não demorou muito para que Suleimã respondesse marchando à frente de mais de 120 mil homens, reconquistando tudo que Fernando tomara e reinstaurando Zapolya no trono em quatro meses de campanha, em 1529. Como Fernando reinava em Viena, Suleimã decidiu avançar para a Áustria e capturar a sua capital.

Os quase cem anos de conquistas turcas na Europa, mesmo a tomada do último bastião do Império Bizantino, não causaram o pânico na cristandade européia que a marcha em direção a Viena provocou. Além do enorme contingente subindo pela Hungria, vários destacamentos percorriam a Bavária e a Boêmia ao sul e ao norte, espalhando terror e marcando a presença turca em territórios considerados seguros. Martinho Lutero, que declarara decididamente que os turcos muçulmanos eram uma punição divina pelos pecados dos cristãos, passou a exortá-los a combatê-los com vigor. O Sacro Império Romano estava ocupado na Itália e na França, mas Carlos V enviou mosqueteiros espanhóis. Landsknechte (lanceiros germânicos com roupas bufantes e coloridas e chapéus extravagantes típicos da Renascença que se empregavam como mercenários por toda a Europa) também se apresentaram. A população de Viena e das zonas rurais próximas organizaram suas defesas dentro da cidade. A Catedral de São Estevão foi usada como quartel-general.

Não se sabe o quanto os austríacos tinham consciência das dificuldades que os turcos enfrentavam em sua marcha para a Áustria. Suleimã partira da Bulgária em maio, com talvez 300 mil homens, peças de artilharia e camelos de carga. Em 1529, o verão nos Cárpatos foi especialmente úmido. Na Bulgária e na planície húngara formaram-se incontáveis atoleiros, onde os canhões afundavam e os camelos quebravam suas pernas. Os animais sequer chegaram à Hungria, e muito equipamento foi deixado para trás. Doenças também fizeram vítimas entre os soldados. Em um certo momento, o grão-vizir Ibrahim Pasha aconselhou ao sultão que adiasse a expedição, mas Suleimã considerava uma indignidade ter os seus planos contrariados pelo clima. Os turcos seguiram adiante. As batalhas travadas na Hungria em si não ofereceram grande dificuldade, devido ao pequeno contingente de defensores deixados ali por Fernando. Mas à medida em que se aproximavam da Áustria, os turcos enfrentaram guerrilheiros austríacos que entravam nos acampamentos à noite e atiravam bombas caseiras, incendiando as tendas (cerca de dois mil soldados turcos pereceram nesses ataques). Mas a perda da artilharia provaria ser decisiva.

Mesmo com as perdas e deserções, o exército otomano que chegou a Viena no fim de setembro tinha dez vezes mais homens do que seus defensores. Porém, boa parte estava doente e cansada, e das unidades em boas condições, um terço era de cavalaria leve, inútil em táticas de cerco. O sultão enviou emissários ordenando a rendição da cidade, mas eles voltaram sem resposta. Embora destruíssem os subúrbios da cidade praticamente desertos, sem seus canhões, os otomanos não tinham o que fazer além de cavar túneis para plantar explosivos sob as muralhas. Os defensores se esgueiravam à noite e destruíam esses túneis.

Ao longo das duas primeiras semanas, pouco progresso foi feito nas muralhas vienenses, e incerteza e inquietude tomaram conta dos otomanos, especialmente os janízaros, corpo de elite do exército otomano, que vinham aborrecidos desde Buda por não terem sido autorizados a saquear a cidade. Haviam notícias de que Carlos V selara a paz com a França e estava mobilizando reforços (havia rumores de que o próprio rei Francisco da França oferecera aliança ao antigo inimigo para uma cruzada contra os turcos). Fernando e sua corte haviam abandonado a cidade, deixando pouco a ser efetivamente conquistado com a sua queda.

No dia 12 de outubro Suleimã ordenou um ataque total, prometendo recompensas às tropas, mas o terreno encharcado pela chuva da noite anterior e a resistência dos mosqueteiros e lanceiros rechaçaram qualquer tentativa (o comandante da resistência vienense, o mercenário Nicolas von Salm, foi ferido por uma pedra nessa ocasião e morreu alguns meses depois). Para piorar, começou a nevar inesperadamente. Diante de um inverno precoce e sem previsão de tomada da cidade, Suleimã prudentemente ordenou a retirada das suas tropas e o retorno a Istambul. Ele não sabia que as muralhas de Viena, relativamente estreitas e reforçadas de maneira improvisada, poderiam ruir a qualquer momento.

Curiosamente, quando os turcos abandonaram o acampamento, deixaram também para trás muitas sacas de grãos de café, antevendo as dificuldades da marcha de volta para casa. Como não podiam tomar bebidas alcoólicas, os soldados muçulmanos tomavam café avidamente, aproveitando-se do seu efeito estimulante. Os vienenses recolheram tudo que os turcos deixaram de valor, inclusive o café, e rapidamente o gosto pela bebida se espalhou pela Europa Ocidental. O sacro imperador Maximiliano II posteriormente ordenou a construção do castelo de Neugebäude centrado no mesmo lugar onde ficava a tenda de Suleimã.

No final das contas, Suleimã, que até então sonhava em conquistar Roma, assegurou a posse da Hungria sob o títere João Zapolya. Na verdade, após esta campanha, o Império Otomano atingiu o auge da sua extensão territorial (o esplendor do império e a opulência da corte otomana fariam o sultão ficar conhecido no Ocidente como Suleimã, o Magnífico). A Áustria e o oeste da Hungria, sob autoridade de Fernando, estavam tão arrasados que ele se viu impossibilitado de organizar um contra-ataque imediato, mas em 1530 ele novamente cercou Buda. Suleimã ainda tentou levar a cabo uma nova campanha em 1532 em resposta, mas acabou perdendo tempo demais no cerco à fortaleza de Guns, desistindo em seguida de avançar até Viena. A fronteira entre os otomanos e os Habsburgo atingiram uma estabilidade que permitiu aos turcos se concentrar na busca pela supremacia no Mediterrâneo, levando-os a uma série de campanhas contra os poderes navais do sul da Europa, incluindo seus antigos parceiros venezianos. A incapacidade turca de avançar além da Hungria desmistificaria o seu poderio e encorajaria revoltas nacionalistas que irromperiam pela parte européia do império nos séculos que viriam. Outro cerco fracassado a Viena em 1683 marcou o início da decadência do Império Otomano - ou, talvez, o início da queda de um império comece do seu apogeu.