sexta-feira, 28 de agosto de 2015

A AIDS vem a público

Em 28 de agosto de 1981 o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos publicou uma nota reconhecendo a alta incidência de infecções pulmonares de origem fúngica (pneumocistose) e de sarcomas de Kaposi (uma espécie de tumor hipodérmico causado por um tipo de vírus da herpes), doenças então muito raras, em pacientes homossexuais e usuários de drogas injetáveis.

A ocorrência dessas doenças chamava a atenção, porque são mais comuns em pacientes imunodeprimidos, e porque o aumento súbito da sua ocorrência se dava em pacientes dessas categorias especificamente. Os cientistas ficaram perdidos tentando associar o grupo com as doenças e o que poderia estar possivelmente causando a imunodepressão nessas pessoas. O primeiro grupo de estudos do governo americano a acompanhar o surto o designava como "Sarcoma de Karposi e infecções oportunistas", por falta de conhecimento sobre o quadro. Além da pneumocistose e do sarcoma de Karposi, os pacientes também apresentavam nódulos linfáticos inchados, fraqueza generalizada, dores musculares, falta de apetite, perda de peso, e propensão a outras infecções raras típicas de imunodepressão.

Refinando os dados sobre os pacientes, identificaram que, além de homossexuais e usuários de drogas injetáveis (sobretudo heroína), também estavam vulneráveis hemofílicos e haitianos. A imprensa começou a divulgar a nova síndrome como "deficiência imunológica relacionada aos gays". A imprensa brasileira enfatizava que essa nova doença parecia estar surgindo especificamente no seio das comunidades gays.

Com todos os dados que se conhecia, em 1982 fixou-se um nome mais abrangente: Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, cuja sigla em inglês é AIDS.

Foi apenas em 1983 que dois grupos de estudo identificaram um retrovírus presente no sangue de pacientes de AIDS capaz de atacar especificamente linfócitos do tipo T, que são linfócitos que sinalizam às demais células do sistema imunológico a presença de agentes infecciosos no sangue. De alguma forma, esse vírus desativava as células T sem destruí-las, impossibilitando a reação do sistema imunológico. Os dois grupos acreditavam ter identificado vírus diferentes, mas em 1986 concluiu-se que eles eram o mesmo, o vírus da imunodeficiência humana, ou HIV.

Entre 1981 e 1986, o HIV se espalhou rapidamente, devido ao desconhecimento sobre a sua causa, e as suas formas de contágio. Desde o primeiro momento, parecia claro que, fosse o que fosse, poderia ser transmissível pelo sangue. Como não se conhecia o vírus nem outra maneira de se detectar a doença pelo sangue apenas, muitos hemofílicos e pessoas submetidas a transfusões de sangue acabaram infectadas. Sem um tratamento adequado, os pacientes de AIDS definhavam rapidamente, e podiam morrer de doenças banais como um resfriado em poucos meses. A persistência da síndrome em homossexuais continuava chamando a atenção. Não tardou para que religiosos atribuíssem a AIDS a algum tipo de punição divina contra a sodomia e outros comportamentos ímpios (apesar de tudo, ainda há hoje quem defenda esta tese, negando mesmo a própria existência do HIV).

Cientistas suspeitavam de trocas de fluidos corporais, especificamente sêmen. Informações desencontradas e uma imprensa que vendia o pânico, fizeram com que os pacientes de AIDS fossem estigmatizados, excluídos do convívio social, mesmo hostilizados - "agora aguenta". Havia medo de contágio pelo toque, pela saliva, pelo ar. Isso também prejudicou gravemente as condições dos pacientes em tratamento. Eu sou uma pessoa que cresceu nos anos 80, e lembro da histeria que que se criou em torno da AIDS, e do temor constante entre as crianças da minha idade de "pegar AIDS" de objetos enferrujados (o que evitava que pegássemos tétano, na verdade) ou por contato físico, e que, se você se distraísse e "pegasse", era uma sentença de humilhação e morte certas. Nomes de grande notoriedade midiática - artistas, principalmente - sucumbiram à doença, conferindo-lhe notoriedade extraordinária e contribuindo para um pânico generalizado naquele primeiro momento.

Tão logo o HIV foi identificado como a causa da AIDS (e, na verdade, de um processo do qual a AIDS, ou o quadro de imunodepressão, é a etapa mais avançada), e ficou estabelecido que o contágio só é possível através de troca de sangue e sêmen, irrestrito aos antigos "grupos de risco" (homossexuais e usuários de drogas injetáveis), os veículos de comunicação passaram a exibir mensagens de governos e organizações não governamentais alertando para o uso estrito de agulhas e seringas descartáveis (eu passei a infância fazendo exames de sangue pelo menos uma vez por ano, e só a partir da segunda metade dos anos 80 as enfermeiras obedeciam ao ritual de abrir as novas agulhas na minha frente para mostrar que eram novas) e camisinhas nas relações sexuais, mesmo sem penetração vaginal. Os bancos de sangue passaram a ter um controle cada vez mais estrito (ainda assim, em 1986 o sociólogo Herbert de Souza, hemofílico, contraiu o HIV em uma transfusão), assim como a assepsia de materiais cirúrgicos e do seu descarte. Em 1987 entrou no mercado a azidotimidina, ou o AZT, um anti-retroviral que freava a reprodução do HIV no organismo e retardava o seu progresso. O AZT permitiu um aumento significativo na sobrevida dos portadores do vírus, porém não seria a cura; sua dose máxima é limitada pelo seu efeito tóxico sobre as mitocôndrias e outros efeitos colaterais no metabolismo humano, possibilitando ainda a reprodução do vírus em taxas menores.

De qualquer forma, o vírus HIV, transmissível por relações sexuais, transformou radicalmente o comportamento da geração que cresceu nos anos 70 sob a cultura da liberdade sexual. O "amor livre" foi sepultado por motivo de saúde pública. A geração que cresceu com medo da AIDS se tornou sexualmente mais conservadora, no que diz respeito à franqueza com que lida com o sexo e assuntos relacionados - não necessariamente à sua prática na intimidade. Essa falta de abertura quanto ao sexo vitimou principalmente mulheres, cujos parceiros sexuais mantinham seus casos com terceiras(os) em sigilo e praticavam sexo sem proteção em casa, disseminando o vírus para um grupo que, no começo da epidemia, parecia bastante "seguro". No continente africano, onde supõe-se que o HIV tenha evoluído de um vírus imunodepressor similar típico de outras espécies de primatas, a falta de informação e as crenças populares levaram ao mito de que o sexo com uma virgem poderia purificar um homem da doença. Atualmente, quase 5% dos adultos entre 15 e 49 anos na África subsaariana são portadores de HIV (chegando a um pico de 26% de toda a população adulta da África do Sul).

Com o correr dos anos, o conhecimento sobre o HIV e suas variedades, e sobre o próprio metabolismo humano permitiu o desenvolvimento de novas drogas que, combinadas, permitem aos portadores de HIV uma sobrevida longa e produtiva, sem o característico definhamento físico que estigmatizava os "aidéticos" até meados dos anos 1990 (alguns pacientes morrem de velhice ou doenças não relacionadas com a imunodepressão após 15, 20 anos com o vírus). Com isso, a geração que nasceu nos anos 90, e a geração do "amor livre" dos anos 70, perderam o medo da AIDS. Isso se reflete num aumento na transmissão do HIV entre adolescentes (que, segundo a análise de Drauzio Varella, "acham que ninguém mais morre de AIDS", e que caso aconteça é só tomar uns remédios distribuídos gratuitamente pelo SUS), e adultos acima dos 50 anos (cuja vida sexual é prolongada com o uso de medicamentos estimulantes, e se iniciaram sexualmente numa época em que não existia um hábito de se usar camisinhas, necessárias, na sua visão, apenas quando existia o risco de gravidez). Tudo isso a despeito das outras doenças sexualmente transmissíveis com efeitos nocivos, como herpes, gonorreia, hepatite C e sífilis, para as quais o tratamento não é simples. Isso se traduz nos dados de pesquisas sobre novos infectados no Brasil: um acentuado declínio entre meados dos anos 1990 e 2001, e um novo aumento contínuo a partir de 2005 até 2015. Homens heterossexuais acima de 13 anos de idade compõe atualmente a maior proporção de portadores de HIV no país por gênero/idade/orientação sexual.

Há em torno de 734 mil soropositivos no Brasil, e cerca de 400 mil destes recebem do Sistema Único de Saúde o coquetel anti-retroviral e por ele realizam exames periódicos. Cerca de 5,7 óbitos para cada 100 mil habitantes em 2013 eram em decorrência da AIDS, proporção que vem decrescendo nos últimos 10 anos. Ainda não existe um remédio que elimine o HIV, ou neutralize o seu efeito imunodepressor.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Plateia e Micale - a derrocada persa

Em 27 de agosto de 479 a.C., gregos e persas se enfrentaram simultaneamente em duas batalhas, em Plateia e Micale, resultando em duas derrotas decisivas dos persas.

A guerra entre gregos e persas iniciada no ano anterior com a invasão liderada pelo rei Xerxes mudou completamente de direção quando grande parte da marinha persa foi surpreendida e destruída na batalha de Salamina, perto de Atenas, em setembro de 480 a.C.. Ali, o colossal exército persa, um dos maiores contingentes humanos reunidos para a guerra em toda a Antiguidade, perdeu o apoio naval, que era o que assegurava as linhas de suprimentos da Ásia para a Grécia (segundo Heródoto, o exército persa era tão numeroso que a sua sede secava rios inteiros em um dia), e temendo que os inimigos velejassem até o estreito do Helesponto e obstruíssem aquela que era a principal rota de fuga por terra para a Ásia (havia uma estrutura de pontes montada ali de quando os persas atravessaram para a Europa), Xerxes então ordenou seu recuo e a fortificação de posições defensivas mais ao norte. Ele mesmo recuou com o grosso de suas forças para a Ásia. Mardônio, seu general mais próximo, se prontificou a manter um destacamento em terras gregas, se locomovendo entre a Beócia e a Tessália, já conquistadas, para, no ano seguinte, dar seguimento à campanha de conquista da Grécia. Almirantes persas também se mobilizaram para manter uma parte da esquadra ancorada em Samos, perto da costa da Ásia Menor.

A guerra então entrou num impasse. Mardônio, acampado na Beócia, ao norte da Ática (a península onde fica Atenas), sabia que não conseguiria nada tentando avançar por terra contra Atenas, que voltara a ser ocupada e reconstruída pelos seus cidadãos após Salamina, ou mesmo contra o Peleponeso. A numerosa esquadra ateniense asseguraria a mobilidade que seu exército necessitaria para chegar onde quer que os persas surgissem. Os gregos, por seu lado, estavam tipicamente envolvidos em conflitos políticos entre suas principais cidades-estado; os lacedemônios (liderados por Esparta) estavam satisfeitos em manter todos os seus exércitos em casa, prontos para defender o Istmo de Corinto, e os atenienses se recusavam a empregar sua armada contra os persas sem o apoio de forças terrestres. Sabendo das notícias, Mardônio enviou o rei Alexandre I da Macedônia, um aliado por conveniência, para negociar uma aliança com os atenienses. Eles recusaram. Mardônio marchou para Atenas. A cidade foi evacuada e seus habitantes conduzidos para a ilha de Salamina, como fizeram no ano anterior. Ali, Mardônio tentou novamente propor uma paz que beneficiasse as duas partes mutuamente.

Os espartanos, que continuavam mantendo suas forças terrestres estacionadas no Peloponeso, ficaram sabendo dos eventos por emissários atenienses, que lançaram um ultimato: se Esparta não agisse, Atenas poderia aceitar a proposta persa. Em alguns dias, os espartanos, que já haviam despachado navios de aliados seus sob comando do rei espartano Leotíquides II para combater os remanescentes persas no Mar Egeu, marcharam em direção ao Istmo. Atenas juntou sua esquadra aos aliados e adicionou 8 mil soldados ao exército que avançava para o norte.

Mardônio então desocupou Atenas e recuou até Tebas, onde a planície aberta favorecia a sua cavalaria contra as falanges gregas. Enquanto isso, a esquadra persa se movia da ilha de Samos para continente, perto do Monte Micale. Eles ancoraram, montaram uma paliçada na praia, e se juntaram ao exército deixado ali na região sob o comando de Tigranes.

Quando a frota grega chegou a Samos e não encontrou os persas, Leotíquides os conduziu para o continente, onde reequipariam os navios para a futura batalha. Foi com surpresa que encontraram os persas na costa do Monte Micale. Na ocasião, Leotíquides mandou um porta-voz potente o mais perto da praia para exortar os iônios (os gregos da margem asiática do Egeu) a não colaborarem com os persas. Talvez os persas tenham entendido a mensagem, porque, por desconfiança, eles desarmaram e designaram para funções menos importantes os seus principais aliados iônios. Desembarcados, os gregos avançaram em formação em direção ao acampamento inimigo. Os persas, ao invés de se manterem seguros atrás da sua paliçada, saíram a campo para enfrentar as falanges. No combate corpo a corpo, os gregos, mais bem armados e organizados, levaram vantagem. Aparentemente, os atenienses e seus aliados próximos avançaram mais rapidamente pelo lado direito para tentar vencer a batalha antes que os espartanos, formando um bloco à esquerda, chegassem ao campo. Pressionados em um dos flancos, os persas recuaram. Seus aliados debandaram. Quando os espartanos chegaram, o combate era travado dentro da paliçada, e sua formação ainda permitiu que atacassem também pela retaguarda. Os sâmios e os milésios, que estavam com os persas no início mas haviam sido afastados do corpo principal do exército por desconfiança, afinal se juntaram ao demais gregos para desequilibrar a batalha (os milésios guardavam uma passagem nas montanha, uma rota de fuga, e teriam massacrado os aliados dos persas enquanto fugiam naquela direção). Os navios persas foram destruídos, os generais persas mortos, e os soldados que sobreviveram fugiram para Sardes. A batalha também pode ter mudado de direção em favor dos gregos devido a rumores dos acontecimentos em Plateia, naquele mesmo dia.

Na Grécia, os lacedemônios marcharam com os atenienses e demais aliados até as encostas ao sul do rio Asopo, onde os persas esperavam na outra margem. Seria preciso atravessar o rio para chegar aos inimigos, passando por uma chuva de flechas, de maneira que os gregos se detiveram em terreno mais elevado. Os persas tampouco tinham esperanças de chegar incólumes até as linhas gregas morro acima, mesmo em vantagem numérica. O impasse durou mais de uma semana. No oitavo dia, Mardônio enviou um destacamento de cavalaria para capturar, com sucesso, um comboio de suprimentos. Dois dias depois, outra incursão persa capturou a única fonte de água potável nas montanhas. O exército grego então se preparou para mudar sua posição poucos quilômetros mais a oeste, para mais perto de Plateia, à noite. Mas, talvez devido à escuridão, ou à distância entre os diferentes destacamentos e alguma dificuldade de comunicação, o movimento foi desordenado. Os atenienses chegaram a Plateia, alguns outros ainda estavam espalhados pela planície, e os espartanos continuavam nas montanhas guardando a retaguarda quando o sol nasceu. Vendo a desordem e pensando que os gregos haviam desistido da batalha, Mardônio ordenou um ataque total.

A linha grega estava fragmentada, mas cada fragmento era capaz de responder ao ataque persa em perfeita ordem. Como os persas também se dividiram em relativa desordem para atacar os gregos, estes conseguiram resistir à primeira investida. Os espartanos e tegeus, mesmo sob ataque da elite da infantaria persa, começaram a pressionar de volta os inimigos morro abaixo. Mardônio, que comandava esta companhia do alto de um cavalo branco, foi cercado e morto, causando confusão e a debandada do corpo principal do exército persa. Indianos, bactrianos e sacas, que perseguiam o miolo das demais tropas lacedemônias, ao ver que os persas estavam sendo derrotados, também começaram a bater em retirada antes mesmo de entrarem em combate. Os atenienses, que combatiam tebanos - como eles, compostos por hoplitas organizados em falanges - conseguiram, com a ajuda de última hora dos plateus, aliados históricos de Tebas, empurrá-los de volta para o rio e dispersá-los. O centro grego conquistou rapidamente o acampamento persa, massacrando os refugiados no local. É possível que, após a vitória, Pausânias, o comandante espartano, tenha se apoderado de uma pira sobre uma montanha, que fazia parte do sistema de comunicação a longa distância (que inspirou uma famosa cena vista em O Senhor dos Anéis - O Retorno do Rei), e enviado um sinal que teria sido propagado até as proximidades de Micale, avisando os gregos na Ásia do sucesso em Plateia.

As derrotas simultâneas em Micale e Plateia marcam a virada da guerra entre persas e gregos. A partir dali, os gregos tomariam a iniciativa e empurrariam o que restou dos ocupantes persas de volta para a Ásia (ou os massacraria onde estivessem). A armada estacionada em Micale também daria fim à ocupação persa na Trácia. No fim, até Alexandre expulsaria os persas da Macedônia, chegando a termos com os vizinhos gregos. Na Ásia, a derrota em Micale desencadeou uma série de revoltas entre os iônios. Os atenienses forjariam uma vasta aliança (a Liga de Delos) para combater a ameaça persa no Egeu, e além, atacando Chipre e Egito. Essa Liga de Delos ganharia contornos de um verdadeiro império ateniense, que despertaria a desconfiança e a hostilidade dos espartanos, mergulhando a Grécia num longo e destrutivo período de guerra civil (alimentada pelo ouro persa).

Heródoto, o primeiro historiador, reconta uma anedota: após a conquista do acampamento persa perto de Plateia, Pausânias teria entrado numa tenda e pedido aos serviçais persas que lhe trouxessem um banquete digno de Mardônio, e aos cozinheiros lacônios uma refeição digna dele. Os persas trouxeram animais exóticos assados, cozidos, frutas recheadas, temperos, e todo tipo de iguarias refinadas que eles traziam consigo da Ásia. Os lacônios lhe ofereceram um caldo preto, feito com carnes, ossos, miúdos e todo tipo de planta comestível que pudesse ser encontrada, que todo espartano tomava enquanto estava acampado. Comparando as duas mesas, ele teria rido e convocado seus colegas generais, e proclamado: "Homens da Grécia, eu vos trouxe aqui porque desejo mostrar-vos a tolice do líder dos medos (persas) que, com tamanhas provisões como vocês veem, veio aqui para tomar de nós nossas poucas posses."

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A Batalha de Manzikert

Em 26 de agosto de 1071, um exército bizantino liderado pelo imperador Romano IV foi derrotado por forças turcas comandadas pelo sultão seljúcida Alp Arslan, diante da cidade armênia de Manzikert.

Os turcos seljúcidas vinham há um século pressionando o Império Bizantino na Ásia, cujas fronteiras mal conseguia defender contra árabes e persas. Esses seljúcidas remontavam suas origens a um certo Seljuq, líder tribal turco leal ao Império Khazar, que conduziu seus seguidores para o sul, até o Khwarizm, no norte do Irã, onde se converteram ao Islã. Oferecendo-se a lutar pelos samânidas, a dinastia governante da Pérsia, esses turcos acabaram envolvidos numa prolongada guerra contra os Ghaznávidas, outro clã turco que controlava um vasto território centrado no Afeganistão. A própria Pérsia samânida acabaria colapsando sob uma invasão de um terceiro clã turco, os qarakarânidas. O vácuo de poder na região seria preenchido pelos seljúcidas, que controlavam as principais cidades do norte da Pérsia. Na virada do milênio, o que era uma tribo guerreira acabou formando seu próprio império.

Na década de 1040 os seljúcidas começaram a expandir para o oeste, invadindo a província bizantina da Ibéria, ao sul do Cáucaso. Em 1048 as duas forças se enfrentaram pela primeira vez em Kapetron, que resultou no recuo dos turcos e numa trégua. Esta trégua levou os imperadores bizantinos a adotar restrições no orçamento militar, fazendo debandar um contingente de 50 mil armênios, e substituindo soldados conscritos por mercenários nas fronteiras. E, ainda assim, aumentando impostos (nesse período, o frágil imperador Constantino IX procurou assegurar apoio da nobreza com isenções de impostos, e a população teve que pagar a conta). A crise econômica e militar levou o controle do Império Bizantino na Ásia rapidamente à ruína, e ela viria justamente pelas mãos dos turcos seljúcidas.

Os seljúcidas tinham à sua disposição hordas de turcomanos que não tinham todo esse compromisso com a diplomacia internacional. Para manter os turcomanos sob controle, o novo sultão Alp Arslan os conduziu em campanhas contra a Armênia e a Geórgia, agora mal defendidas, anexando os dois países. Em 1067 eles já haviam alcançado o centro da Anatólia. No ano seguinte, com a morte do ineficiente Constantino X, o novo imperador bizantino Romano IV decidiu retomar a iniciativa e recuperar territórios perdidos. Alp Arslan capturou o principal comandante bizantino em Iconium e assinou uma nova trégua - sua real intenção era abrir caminho para a Síria, controlado pelos rivais islâmicos fatímidas. Em 1071 emissários bizantinos foram recebidos pelo sultão para renovar o acordo. Com isso, Alp Arslan sentiu-se seguro para levar um exército a Aleppo.

Romano pretendia aproveitar a ausência do sultão para retomar a Armênia.

Romano em pessoa liderava uma coalizão de bizantinos, franceses, búlgaros, normandos, suecos, armênios, mercenários turcos e aldeões recrutados pelo caminho. Um exército de mais de 40 mil soldados, engrossado por mercenários estrangeiros. Muito rapidamente os problemas começaram a ocorrer: enquanto avançava ainda em seu próprio território, soldados francos pilhavam vilarejos. O imperador (que trazia consigo uma ostentosa entourage de cortesões e tesouros particulares enquanto os soldados enfrentavam uma marcha difícil pela montanhosa Ásia Menor) também estava cercado de rivais políticos a quem precisava bajular com promessas de glórias e conquistas.

A despeito da dificuldade do terreno, Romano avançava sem resistência em direção a Manzikert, ao norte do Lago Van, já no coração da Armênia (hoje, leste da Turquia). O imperador dividiu o exército em dois, enviando um segundo contingente para a fortaleza de Khliat, reduzindo, porém, a força principal à metade. O que aconteceu com a outra metade do exército é desconhecido (é provável que eles tenham desertado). Romano estava muito seguro, porque não sabia que Alp Arslan já havia retornado de Aleppo (com reforços da Síria), e acompanhava com batedores toda a movimentação bizantina.

Romano eventualmente capturou Manzikert em 23 de agosto, enfrentando apenas a resistência de arqueiros turcos. Enquanto estava na cidade, Romano recebeu notícia de um exército turco nas proximidades. Nos dois dias seguintes, negociações de paz falharam (possivelmente porque Romano não acreditava que aquele era o corpo principal do exército seljúcida, que deveria estar na Síria), e rápidas incursões bizantinas foram rechaçadas. No dia 26, os bizantinos saíram em formação de combate para encontrar os turcos. A linha turca, por sua vez, fazia uma crescente, cujo centro recuava à medida em que os bizantinos avançavam - seus flancos então fustigavam os flancos inimigos, quase cercados dos dois lados. A cavalaria, no centro, avançava e recuava, atraindo o centro bizantino ainda mais para o interior do semicírculo. Assim os dois exércitos ficaram dançando até o anoitecer, quando Romano ordenou um recuo.

Ali a sorte mudou drasticamente. A retaguarda, responsável por cobrir a retirada de Romano, era comandada por Andronikos Doukas, um rival político. Quando houve a ordem para recuar, Doukas ignorou a posição do imperador, deu meia volta e retornou com seu destacamento para o acampamento além da cidade. Vendo a confusão da retirada inimiga e seu centro vulnerável, Alp Arslan aproveitou a oportunidade e ordenou um ataque total. Neste momento, a lealdade da maioria dos mercenários sob Romano falhou e fugiu (curiosamente, os mercenários turcos se mantiveram leais até o fim). Romano e sua guarda pessoal constituída por vikings suecos foram cercados e capturados. No final, cerca de 4 a 8 mil soldados morreram do lado bizantino - todos os que não fugiram.

Romano foi levado à presença de Alp Arslan. Ele foi obrigado a se ajoelhar e beijar o chão (um ato que os romanos e bizantinos exigiam de emissários bárbaros em seu território como sinal de submissão). Durante uma semana de cativeiro, em que os dois compartilharam a mesa, Romano concordou em ceder territórios aos turcos, a pagar grandes somas em resgate (de si mesmo e de quem quer que estivesse em poder deles). Depois disso, foi enviado de volta a Constantinopla.

Os turcos não aproveitaram imediatamente os novos territórios para conquistar o resto da Anatólia. Foi a guerra civil que se seguiu entre os partidários de Doukas e o enfraquecido e humilhado Romano que abriu as portas para o avanço turco. Alp Arslan morreu em 1072, assassinado por um prisioneiro khwarizm enquanto comandava uma expedição ao Turquestão, as terras de seus ancestrais na Ásia Central. Mas imediatamente antes disso, liberou seus comandantes turcomanos para conquistar o que pudessem da Ásia Menor, e estabelecessem ali seus próprios governos provinciais. Em cinco anos, praticamente toda a Anatólia, desde o século VIII a.C. lar do povo grego e há muito o centro econômico do Império Bizantino, estaria em poder dos seljúcidas. Os bizantinos, com a ajuda das Cruzadas vindas do ocidente (embora "ajuda" não descreva muito bem a ação dos cruzados na região algumas vezes), conseguiriam recapturar algumas áreas na fímbria ocidental da Anatólia, apenas para perdê-las novamente para outra tribo turca, os otomanos, no século XIV.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O homem sem sombra

Em 21 de agosto de 1838 faleceu de tuberculose Adelbert von Chamisso, escritor e naturalista franco-alemão que viria a ser bem sucedido nas duas carreiras.

Chamisso nasceu na França (seu sobrenome era grafado originalmente "Chamissot"), mas devido à Revolução, sua família emigrou para Berlim. Seguindo carreira militar na Prússia, ele permaneceu ali quando sua família recebeu permissão para retornar à França. Enquanto servia, estudava ciências naturais e arriscava uns versos. Dispensado do exército em 1807 e desempregado, recusou um emprego como professor para seguir Madame de Staël, uma socialite francesa, patrocinadora de escritores e poetas diversos, para seu exílio na Suíça. Convivia permanentemente com a dualidade de ser um francês em terra alemã (e em 1810, em visita a Paris, um alemão em terra francesa), tendo que lidar com o idioma alemão escrito enquanto pensava em francês e sonhava com as terras de seus pais. Sua dualidade também era vivida nos seus campos de interesse: simultaneamente a literatura e a botânica. Aos 35 anos embarcou numa expedição científica russa de volta ao mundo, onde coletou abundantemente espécimes minerais, vegetais e animais, realizou observações geológicas, meteorológicas e etnológicas. Se tornou um naturalista altamente respeitável. Além de um poeta de renome.

Sua vida e sua carreira foram estranhamente sumarizadas de forma profética no seu primeiro livro, Peter Schlemihl, de 1813.

O personagem-título era um infeliz (Chamisso o descrevia como alguém que é capaz de cair de costas e fraturar o nariz) que encontra o Diabo. O Diabo estava de posse de uma bolsa, a Bolsa de Fortunato, uma bolsa sem fundo de onde sempre se podia tirar dinheiro. Em troca dela, ele queria a sua sombra. Peter gostou da barganha e fez a troca. O Diabo prometeu que retornaria dentro de um ano. Embora agora se tornasse fabulosamente rico, o fato de não ter uma sombra alarmava as pessoas. Ele era visto pelas costas, excluído dos círculos sociais, destratado até por quem não tinha nada. Ele foge com dois empregados para uma pequena cidade, onde ele procura cativar os locais com demonstrações de generosidade, tomando cuidado para não revelar seu segredo. Ele se apaixona por Minna, filha de um notável local. Um dia antes de pedir sua mão em casamento, um dos seus empregados ameaça contar seu segredo (ou o segredo que ele acredita saber, que Schlemihl seria na verdade um rei... mas Peter não sabe disso, e a ameaça o deixa desesperado). Neste momento surge novamente o Diabo, que se oferece para devolver sua sombra em troca de sua alma. Ele lhe oferece uma visão do pai de Minna se recusando a dar a mão da filha a um homem sem sombra. Com seu segredo de fato revelado, Peter resiste e decide fugir novamente (deixando grande quantidade de ouro para o outro criado que lhe foi fiel).

O Diabo insiste em persegui-lo e assediá-lo, mas Peter resiste obstinadamente, até que ele joga a bolsa mágica num precipício e abre mão do benefício do primeiro contrato. O vínculo é desfeito e o Diabo desaparece. Perambulando sozinho até gastarem-se completamente as suas botas, ele acaba comprando um par de "botas de sete léguas", que lhe permitem viajar rapidamente, transpor montanhas e mares, e atravessar oceanos e continentes. Escolhendo o Egito como morada, ele decide aproveitar a nova habilidade para estudar a flora e a fauna de todo o mundo. Durante uma longa travessia, caiu doente no mar da Noruega, e despertou num hospital. Ele repara que o hospital levava o seu nome, e descobre que o seu fundador é o seu antigo criado fiel e sua antiga noiva, agora viúva, passa seus dias cuidando dos doentes. Nenhum deles sabe que Peter está internado ali. Ele entreouve uma conversa entre os dois, em que falam da infelicidade e da redenção e que, como eles, seu "velho amigo" devia também estar vivendo dias melhores. Quando se recupera, ele retorna ao Egito, deixando uma carta de agradecimento no seu leito: "Seu velho amigo está vivendo dias melhores do que antes, e embora ele tenha que pagar um preço, é o preço da conciliação".

"Schlemihl" provém do ídiche, quer dizer algo como "azarado", ou "tolo" no sentido de alguém que faz um mal negócio. Peter se livra da sua sombra, de algo inerente à sua existência física, em troca de riquezas infinitas, e a ausência dessa sombra torna o homem, mesmo rico, um estranho onde quer que vá. Chamisso deixara a França quando criança, mas nunca se sentira totalmente integrado à sociedade alemã (alguns dos seus primeiros poemas foram criticados pelo uso rude da língua alemã, que ele ainda estava tentando aprender), tampouco se sentia à vontade no seu país natal, vivendo como um alemão. Peter é o Eu de Chamisso, em cujos momentos de fraqueza surge um diabo para tentá-lo, cede às ânsias de um ego inflado e de uma carência afetiva que nunca é suprida - seus dois criados são o seu "bom" e o seu "mal", e ambos, a seu tempo, assumem o papel de uma figura paterna, terna e temida (Chamisso mal conheceu seu pai, mas projetava esse papel em seus mentores, como Humboldt e seu amigo Julius Hitzig). A melancolia do personagem solitário, e a própria melancolia que assombrava o naturalista/poeta refletem, segundo Sigmund Freud, a idealização da infância, do passado (com sombra), do tempo que o narcisismo infantil considerava perfeito - o mesmo narcisismo que levou Peter a trocar a sombra por riqueza infinita. E em um momento de confusão total, foge, corre o mundo até encontrar a paz, curiosamente rodando o mundo, estudando sua natureza, como viria a fazer no futuro - o livro é de 1813, e a expedição russa zarpou em 1815.

Peter Schlemihl foi traduzido para o francês e se tornou por um longo período um dos livros mais populares da Europa. Ele foi comentado por diversos autores (como Freud), e sobreviveu no século XX em peças de teatro e filmes (um deles estrelado por DeForest Kelley, o Doutor McCoy de Jornada nas Estrelas) em várias línguas. O tema também inspirou a obra de autores como Hans Christian Andersen. Frauenliebe und -liebe, uma coletânea de poemas líricos de Chamisso, foi musicado pelos compositores alemães contemporâneos Schumann, Loewe e Lachner. O legado do naturalista está em seus tratados minunciosamente bem escritos sobre floras locais e as descrições de suas espécies, bem como exemplares preservados em herbários do mundo, e inúmeras espécies e dois gêneros batizados em sua homenagem. Uma ilha no Alaska, descoberta durante a expedição russa, é conhecida como Ilha Chamisso.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Outono em Praga

Em 20 de agosto de 1968, os primeiros 200 mil de meio milhão de soldados do Pacto de Varsóvia, sob comando soviético, invadiram a antiga Tchecoslováquia para forçar a reversão das reformas empregadas pelo governo de Alexander Dubcek desde o início daquele ano, período conhecido como Primavera de Praga.

A Tchecoslováquia foi ocupada pela União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial, e eventualmente foi mantida na sua zona de influência como parte dos acordos entre os aliados no final da guerra. Assim, em 1946 o Partido Comunista da Tchecoslováquia elegeu a maioria no congresso tcheco, e em 1948 os comunistas tomaram o poder e anularam, na prática, a pluralidade partidária, assegurando assim sua hegemonia. Sem representatividade e com a mídia sob controle estatal, a oposição recorria às ruas, e protestos eram duramente reprimidos.

Após a morte de Joseph Stalin, a União Soviética passou por um período de reformas, ou desestalinização, abandonando projetos personalistas e perigosamente impopulares (ou simplesmente nocivos), e reabilitando presos políticos. A desestalinização se espalhou pelos países do Pacto de Varsóvia, inclusive na Tchecoslováquia, onde uma nova Constituição foi promulgada. Agora declarada socialista, a Constituição previa a entrega do poder, dos meios de produção, a planificação da economia, a extinção do poder executivo nacional da Eslováquia (dissolvido num Conselho Nacional local), serviço militar compulsório, e outras medidas centralizadoras.

A economia, porém, não ia bem. Durnte o regime de Stalin, o país foi forçado a transformar seu sistema industrial, até então saudável, em um modelo em miniatura do parque industrial soviético. O primeiro plano quinquenal transformou a indústria de bens de consumo em algo voltado à metalurgia pesada, para atender às demandas da indústria bélica soviética durante a Guerra da Coréia. Com uma economia absolutamente dependente da União Soviética, e um crescimento que não justificava o montante investido, ela rapidamente naufragou. O Secretário Geral do PC tcheco, Antonín Novotny, proclamou que reformas precisariam ser feitas, incluindo a descentralização da atividade econômica. Como a ideia era boa, mas o progresso era lento, o sindicato dos escritores começaram a sugerir que a literatura tcheca deveria, também, ser independente das diretrizes do Partido. Novotny ordenou que os escritores rebeldes fossem punidos. Ele rapidamente perdeu seu apoio político, a ponto do premier soviético Leonid Brezhnev, ao ser consultado pelo camarada, preferir se colocar ao lado da oposição.

Dubcek, um reformista, assumiu a liderança do Partido, e, efetivamente, do país, em janeiro de 1968. Ele criticava o crescimento da burocracia estatal para resolver assuntos triviais, o que afastava o povo das tomadas de decisão e tornava a máquina morosa demais diante da dinâmica econômica dos países logo além da fronteira. Para aproximar o Estado do povo, Dubcek estabeleceu planos de liberalização da liberdade de imprensa, de expressão, de reunião e movimento, a descentralização dos meios de produção (tentando fortalecer nichos especializados, especialmente a indústria de bens de consumo), a equanimidade política entre as repúblicas tcheca e eslovaca, e o fortalecimento da diplomacia com o ocidente. Como o país se declarava socialista, supunha-se que a classe burguesa havia sido enfim eliminada, o que possibilitaria que os trabalhadores fossem proporcionalmente remunerados de acordo com suas capacidades e funções. Ele previa que, em dez anos, seria possível realizar novamente eleições diretas num sistema aberto ao pluripartidarismo. Porém, a ideia original era de que essas reformas todas fossem controladas e supervisionadas pelo Partido. A sua divulgação, contudo, inflamou a população, que passou a exigir reformas imediatas, sobretudo quanto às liberdades civis.

Ao longo do ano, a liberdade de expressão e imprensa deu voz a opositores dos membros mais conservadores do Partido Comunista Tchecoslovaco, e às "forças externas" que atrasavam o progresso do país (a União Soviética). Na TV, comentários sobre política pontuavam a programação, e debates sobre a história recente da Tchecoslováquia questionando o período stalinista, seus presos políticos e vítimas iam ao ar. O sindicato dos escritores formou uma comissão independente para investigar os crimes cometidos pelo regime contra escritores durante a tomada de poder dos comunistas em 1948. Jornalistas uniram-se aos esforços.

A euforia que o novo estado de coisas provocava na Tchecoslováquia se tornou notícia no mundo. No bloco comunista, a Hungria, a Polônia e a Romênia se mostravam simpáticas às reformas tchecas (os líderes dos dois primeiros, contudo, alertavam que a abertura à imprensa criava um ambiente similar ao que levou à revolta húngara de 1956, que terminou esmagada sob os tanques soviéticos). Brezhnev era evidentemente contra um ambiente em que se questionasse a hegemonia soviética, e no princípio tentou negociar em acordos bilaterais a anulação de algumas reformas. Dubcek fazia promessas vagas de controlar a imprensa e esmagar tendências burguesas (a ideia de uma democracia pluripartidária era particularmente alarmante), sem efeito prático, então os soviéticos começaram a considerar uma intervenção militar. Foi durante a noite do dia 20 de agosto que 200 mil soldados e 2 mil tanques entraram no país e tomaram rapidamente o aeroporto de Praga, onde desembarcaram as demais tropas. As forças tchecas não revidaram, e a ocupação foi completa no dia seguinte. Os soviéticos divulgaram um documento extraoficial (e provavelmente apócrifo) do PC tcheco pedindo a intervenção militar. Nenhum partidário de Dubcek assumiu a autoria do pedido.

Dubcek fez um apelo à população para que não resistisse. Mas incidentes isolados ocorreram nos primeiros momentos (72 tchecoslovacos morreram em confrontos). Muitos tchecos reagiram de forma pacífica: um grande destacamento polonês desistiu da operação e deixou o país depois de ficar um dia inteiro vagando sem achar seu ponto de encontro por causa de placas de trânsito pintadas ou invertidas. Muitas aldeias tentaram confundir os invasores mudando seus nomes (para Dubcek, ou Svoboda, Presidente da República e outro membro reformista do Partido). Alguns perseguiram carros identificados como do serviço secreto tcheco para forçá-los a mudar sua rota para manter o disfarce. O estudante Jan Palach ateou fogo ao próprio corpo no centro de Praga contra o fim da liberdade de expressão. A reação se espalhou pelo bloco comunista. Nicolae Ceausescu, Secretário Geral do PC romeno, discursou condenando a iniciativa soviética. Comunistas na Itália, na França e na Finlândia denunciaram a invasão. Mesmo em Moscou houveram manifestações contra a ocupação.

Embora essas demonstrações não fossem suficientes para repelir a invasão, a mobilização popular deixou clara aos soviéticos a importância de Dubcek para a estabilidade do país, e por isso, mesmo depois de preso e levado a Moscou, ele foi mantido no cargo. Ele foi forçado a assinar o Protocolo de Moscou, um compromisso do governo em reverter as reformas iniciadas e impedir o resto do seu programa. Dubcek permaneceu no comando do Partido até abril de 1969. Em 1970, com a volta da planificação da economia, da censura na mídia e da repressão, quase todas as reformas haviam sido revertidas. Dubcek foi expulso do Partido Comunista. Depois de 18 anos trabalhando no serviço florestal eslovaco, retornou a Praga em 1989, em meio à Revolução de Veludo, para testemunhar a renúncia dos líderes do Partido Comunista e o fim do regime no país.

A Primavera de Praga havia dado aos comunistas no ocidente a esperança de progressos através do socialismo soviético em direção ao socialismo pleno e transnacional previsto na doutrina leninista, mas a intervenção soviética, justo a soviética, serviu para afastar a esquerda comunista ocidental do modelo soviético, além de criar dissenções que levaram setores progressistas dessa esquerda marxista-leninista para o lado da social democracia, para o socialismo verde, para o maoísmo, de onde ainda se nutria grandes expectativas, entre outros. A Primavera de Praga - que começou de fato na primavera - inspira ainda hoje a arte e a política: movimentos pela democratização dos países árabes iniciados no Egito em 2010 foram apelidados de "Primavera Árabe". O surto de protestos pela proteção de direitos civis em 2013 nas capitais do Brasil chegou a ser apelidado de "Primavera Brasileira".

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Atentado contra a humanidade

Na tarde de 19 de agosto de 2003, um caminhão-bomba explodiu próximo ao Hotel Canal, em Bagdá, onde operava a delegação da ONU para a mediação de conflitos no Iraque no período de transição que se seguiu à queda de Saddam Hussein. A explosão feriu mortalmente o líder da missão, Sérgio Vieira de Mello. Dias após o atentado, o jihadista jordaniano ligado à Al-Qaeda Abu Musab al-Zarqawi assumiu a autoria do atentado e declarou que Vieira de Mello era, especificamente, o alvo da explosão.

Sérgio Vieira de Mello era filho de um diplomata, e seguiu com a família pelo mundo. Enquanto estudava na França, participou dos protestos estudantis de 1968, guardando uma cicatriz do lado direito de um golpe de cassetete de um policial como recordação. Por causa do seu envolvimento nos protestos e associação com estudantes socialistas franceses, evitou de regressar ao Brasil em meio ao Regime Militar. Arrumou emprego na Comissão para Refugiados das Nações Unidas. A partir daí atuou em zonas de conflito, como na guerra de independência de Bangladesh, na guerra civil do Sudão de 1972, na invasão turca ao Chipre, auxiliando refugiados da guerra civil no Zimbabwe. Ele chefiou a missão para refugiados em Moçambique e no Peru, e mediou pessoalmente as conversações entre a ONU e o Khmer Vermelho no Camboja.

Em 1999 a ONU conseguiu mediar entre Indonésia e Portugal um acordo para supervisionar um referendo em Timor Leste pela sua independência (Portugal abandonara a colônia em 1974 mas ainda era nominalmente a sua metrópole; a Indonésia se aproveitou do vácuo de poder para anexar o território ilegalmente). Vieira de Mello foi escalado para liderar a missão na colônia, e ao longo de três anos lidou com uma guerra civil entre milícias pró-Indonésia e nacionalistas timorenses. Acontece que a Indonésia é um país majoritariamente muçulmano. Al-Zarqawi via Vieira de Mello como responsável pela usurpação de território do "califado" (97% dos timoreses do leste são católicos, muçulmanos restritos a 0,3%).

Em 2004 Vieira de Mello foi escalado para liderar a missão de paz da ONU no Iraque, o que, àquela altura, era um cargo da mais alta importância na política internacional, visto que a região, uma das mais importantes na produção mundial de petróleo era o principal centro de instabilidade do Oriente Médio e alvo de interferência militar americana. Foi a Segunda Guerra do Golfo que atraiu jihadistas, inclusive a Al-Qaeda (ironicamente, mantida em cheque no regime de Saddam Hussein), de quem Al-Zarqawi controlava uma célula terrorista, para o Iraque com o intuito de minar alvos associados à ocupação americana, como colaboracionistas iraquianos, e até a ONU. O diplomata teria recusado o cargo de início, mas teria sido persuadido pelo presidente americano George W. Bush e sua Secretária de Estado Condoleezza Rice. Ele se tornou um alvo óbvio.

Vieira de Mello confiava numa relação direta e aberta como forma de desarmar possíveis inimigos. Coordenando a desativação de minas terrestres na Bósnia, ele se recusava a ir a campo com um colete à prova de balas. No Iraque, onde o Hotel Canal era usado como centro de operações das Nações Unidas desde o final da Primeira Guerra do Golfo, no começo dos anos 1990. A própria segurança do edifício andava relaxada o suficiente para surpreender os visitantes e jornalistas na turbulenta capital iraquiana. O caminhão-bomba se aproximou e aparentemente foi detonado pelo próprio motorista, que pereceu no local, antes de despertar suspeita. Um hospital próximo também foi atingido. Nove pessoas estavam no gabinete de Vieira de Mello naquele momento, ele, sete funcionários, e um visitante. Sete deles morreram na hora. O diplomata sobreviveu ao primeiro impacto, e enquanto reteve a consciência procurou acalmar o jornalista Gil Loeschner, também ferido e preso sob os escombros. Ele seria resgatado com vida por um soldado americano, mas Vieira de Mello não sobreviveu. Naquele momento, era tido em alguns círculos como o mais forte candidato à sucessão de Koffi Annan como Secretário Geral da ONU.

No total, 23 pessoas perderam a vida naquele atentado. No mesmo dia, um homem detonou uma bomba num ônibus lotado em Jerusalém vitimando 21 israelenses e dois judeus americanos, num atentado sem relação com o de Bagdá (este, no caso, planejado pelo Hamas). Em 22 de setembro, antes de Al-Zarqawi divulgar o vídeo assumindo a autoria do atentado, outra explosão de um carro-bomba perpetrada pelo seu grupo mirou a força-tarefa da ONU em Bagdá, matando uma pessoa e ferindo 19. O paquistanês Ashraf Qazi assumiu o posto do brasileiro no Iraque. O país, com uma unidade política frágil, continua até o momento a ser disputado violentamente entre diversas milícias locais, entre elas o Estado Islâmico.

Em 2008 a ONU declarou o 19 de agosto como Dia Mundial do Humanitarismo. A praça do Largo da Memória, no Rio de Janeiro, foi batizada como Praça Sérgio Vieira de Mello.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

O povo vai às ruas pelo Brasil

Em 18 de agosto de 1942, protestos em várias capitais brasileiras pediam a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial junto aos aliados.

Durante os anos 1930, Getúlio Vargas, inspirado pelo sucesso dos regimes fascistas na Europa, implantara de forma oficial sua própria ditadura no Brasil desde a instauração do Estado Novo em novembro de 1937. Tratava-se de um golpe de estado encabeçado pelo próprio Vargas que impedia o processo eleitoral previsto para 1938 com a justificativa da existência de um suposto plano comunista para tomar o poder, o Plano Cohen (um documento falsificado por um militar integralista, Olímpio Mourão Filho, insinuando ataques comunistas a membros do alto escalão do governo). Ali suspenderam-se direitos constitucionais, como o direito à greve e a liberdade de imprensa, extinguia a Justiça Federal de primeiro grau e o caráter federativo da nação (convenientemente, Vargas tinha uma nova Constituição pronta sobre a mesa para cimentar suas reformas). Instaurou-se um Estado de Guerra, que duraria até 1945.

A simpatia de Vargas pelo fascismo nunca foi disfarçada. Além de criar uma aparelhagem de propaganda nacionalista, perseguir comunistas e anarquistas e alimentar milícias (como os integralistas, que, contudo, logo sentiriam o peso da mão que os alimentava), Vargas tinha o cuidado de estabelecer relações diplomáticas amistosas com a Alemanha nazista, por exemplo - para onde extraditara a alemã, comunista, e de origem judaica Olga Benário, esposa do seu principal adversário político, Luis Carlos Prestes. O Brasil, contudo, tinha muito pouca autonomia no cenário internacional devido à fragilidade da sua infraestrutura, a indústria insipiente, a dependência do capital estrangeiro para alimentar uma economia baseada em comodities, o analfabetismo crônico da força de trabalho. Quando a guerra eclodiu em 1939, Vargas, que também era pragmático com relação à importância política e econômica dos aliados na Europa e dos Estados Unidos para o Brasil, declarou a neutralidade do país no conflito.

A despeito da relação de Vargas com o Eixo, submarinos alemães estabeleciam sua superioridade no Atlântico atacando navios militares ou das marinhas mercantes de quaisquer países não alinhados. Atacaram tão longe quanto o Rio da Prata. Entre 1939 e 1942, 14 embarcações brasileiras foram afundadas pelos alemães, matando 136 pessoas. A opinião pública a cada incidente se tornava cada vez mais intensa e exaltada. Natal era o porto brasileiro mais próximo da Europa e um dos alvos mais prováveis em caso de um ataque em terra contra o país, além de hospedar uma base militar aliada, de onde partiam os aviões americanos para a África e a Europa. A cidade organizava um esforço de guerra espontâneo de pré-recrutamentos, e do estabelecimento de uma economia de guerra local - racionamento de combustível, doações, divisões de trabalho entre civis para reforçar fortificações, etc. Em março de 1942, Vargas cedeu a pressões de todos os lados (inclusive dos americanos) e passou a vigiar de perto os imigrantes alemães, italianos e japoneses residentes no Brasil (uma rede de espionagem nazista foi desmantelada no Rio de Janeiro). Mas a neutralidade era mantida.

Quando chegou agosto, vários setores da sociedade civil, puxados pelas uniões de estudantes e alguns comunistas (em Natal, especificamente, um dos articuladores fora Vivaldo Vasconcelos, um dos organizadores da Intentona Comunista de 1935 naquela cidade), em várias partes do Brasil se mobilizaram em grandes atos públicos pela declaração de guerra contra a Alemanha. Foi a maior mobilização popular desde o início do Estado Novo.

Na semana que se seguiu, entre os dias 15 e 17, ocorreram mais seis ataques a navios ao largo da costa brasileira, todos operados pelo submarino alemão U-507. No dia 18 novamente a população ocupou as ruas, em número maior, exigindo a entrada do Brasil na guerra. No Rio de Janeiro, políticos de direita e esquerda, acadêmicos, jornalistas, líderes trabalhistas e populares ocuparam palanques e proclamaram seu repúdio à agressão nazista diante de dezenas de milhares de manifestantes. Enquanto isso, uns ou outros corriam as ruas convocando compatriotas a vingarem seu país. Colunistas de jornais insinuavam que os que ficassem em casa ou não deixassem seus postos estavam declarando seu apoio aos nazi-fascistas, e muitos, com receio do que ser considerado inimigo público podia acarretar naquele tempo, engrossaram a multidão. Assim, pelo menos em Belém e Porto Alegre (que eu tenha me informado, é provável ter ocorrido de forma mais generalizada), comerciantes que tentavam afastar a multidão de seus pontos acabavam agredidos e tendo suas lojas depredadas. Pessoas com sobrenomes alemães, inclusive judeus, também eram hostilizadas como "súditos do Eixo", mesmo em cidades onde grandes comunidades de imigrantes já estivesse integradas. Japoneses, que eram mais fáceis de serem reconhecidos, sofreram particularmente com agressões de nacionalistas exaltados. A facilidade com que o discurso nacionalista inflamava a população foi um resultado da retórica nacionalista historicamente empregada por Getúlio Vargas para mobilizar a população em torno de si contra "inimigos externos" (fossem quem fossem) para legitimar suas ações contra adversários políticos.

A resposta de Getúlio Vargas às agitações viria três dias depois, com o reconhecimento do estado de guerra entre o Brasil e os países do Eixo. Foi criada a Força Expedicionária Brasileira, que, contudo, só passaria a recrutar um ano depois (veteranos da FEB desdenhavam o ímpeto nacionalista dos estudantes que foram à rua no 18 de agosto, criticando o baixo número de voluntários durante o processo de recrutamento) e partiria para a Europa em 1944.

Contudo, foi menos a agressão alemã contra a marinha mercante, e menos a pressão popular, e mais a promessa de investimento americano no estabelecimento das instalações da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda (de quem os aliados se comprometiam a comprar material para seu esforço de guerra), entre outras promessas de ajuda econômica, que levou o governo a tomar posição.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Um cardeal a menos

Em 17 de agosto de 1498, Cesare Borgia renunciou ao cardinalato em Roma. Foi a primeira vez na História em que um cardeal renunciou espontaneamente ao cargo.

No século XV, o Papado era, como hoje, uma instituição religiosa, a liderança espiritual do catolicismo, cujo alcance e influência, em termos proporcionais, eram muito mais abrangentes do que a atualidade na Europa. Além disso, o Papado também era uma instituição política importante: como hoje, o Papa também é o chefe de Estado de uma monarquia eletiva, que hoje é a pequena cidade-estado do Vaticano, mas que, naquele tempo, compreendia uma faixa de terra que atravessava a Itália de costa a costa (e alguns enclaves feudais aqui e ali), com capital em Roma, os Estados Papais. Como senhor de terras, as relações seculares entre o Papa e os demais reis, duques, doges e etc. podia chegar facilmente às vias de fato, e não poucas vezes o Papa teve que liderar exércitos para defender seu território contra invasores, ou confirmar sua autoridade, sempre contra outros católicos.

A confusão entre as relações institucionais talvez tenha sido, se não a causa, um veículo para o estado de coisas em que o Papado se encontrava no final do século XV: membros do clero, a quem o celibato era obrigatório, tinham suas amantes e seus filhos, e essas relações pessoais e familiares influenciavam pesadamente na ordenação, na indicação de cargos, e na própria eleição do Papa - apenas 4 dos 27 cardeais aptos a votar no Conclave eram clérigos de carreira quando Alexandre VI foi eleito, sendo os demais indicados ao cardinalato por relações de parentesco, por indicação de algum nobre (ou eles mesmos nobres), ou em reconhecimento pelos serviços de suas famílias à Igreja. Além disso, uma grande parte da verba arrecadada com impostos sobre as atividades econômicas das terras submetidas ao Papado sustentava, como em qualquer outro reino europeu, luxos incompatíveis com o que se esperava dos mensageiros de Cristo. Reformistas se levantaram dentro da Igreja repetidas vezes, e estes foram alguns dos fatores que finalmente levaram ao movimento da Reforma Protestante.

Nesses meandros emergiu a família Borgia (originalmente, "Borja"), cujo patriarca, Alfonso, filho de um nobre espanhol, foi apoiador do Papa de Roma durante o Cisma da Igreja em 1429, sendo eleito mais tarde Papa Calixto III. Calixto era tio de Rodrigo Borgia, cuja carreira na Igreja avançou rapidamente após a eleição do tio, chegando a vice-chanceler apostólico aos 26 anos. Rodrigo também "herdara" o bispado de Valência, deixado vago por Alfonso, e poucos dias antes da morte de um de seus sucessores, Inocente VIII, ele conseguiu transformá-la em uma sé metropolitana, tornando-o arcebispo.

Rodrigo Borgia acabaria eleito Papa, sucedendo Inocente VIII como Alexandre VI em 1492. Acontecia que Alexandre, desde pelo menos 1470, quando já era cardeal, tinha um caso notório com Giovanna de Cattanei, com quem teve pelo menos 4 filhos (os quatro reconhecidos por Alexandre como seus). Cesare era o segundo deles, nascido em 1475. Apesar do escândalo (além de tudo, Giovanna era casada), Alexandre VI não tinha embaraços para lidar com o assunto. Ao ser eleito, ele criou 12 novos cardeais, nomeando seus filhos Giovanni (o mais velho) e Cesare, além de Alessandro Farnese, irmão de outra amante, Giulia, e futuro Papa Paulo III. Cesare tinha 18 anos. Assim mantinha a cúria sob controle, o que lhe foi de grande utilidade quando tanto Milão quanto a França ameaçaram intervir contra ele (ambos tinham outros candidatos a Papa em mente).

Cesare crescia à sobra do irmão Giovanni, nomeado Duque de Gandia e Condestável do reino de Nápoles, um jovem e capaz comandante militar. Cesare mesmo demonstrava potencial, de modo que cronistas contemporâneos e historiadores posteriores conjecturavam uma rivalidade entre os dois. Os dois compartilhavam da mesma amante, que também era esposa de seu irmão mais novo Gioffre. Um dia, Giovanni saiu para cavalgar, mas o cavalo retornou sozinho com um estribo cortado, e seu corpo foi resgatado do rio Tibre com a garganta cortada. Rumores insinuavam o envolvimento de Cesare, mas investigações na época indicavam roubo (embora uma bolsa com moedas de ouro tenha sido encontrada com o corpo). É mais provável que Gioffre tenha sido o mandante do crime. De qualquer maneira, com o caminho aberto para sua carreira militar, Cesare optou por renunciar ao cardinalato para servir no norte da Itália, no recém conquistado Ducado de Milão (o rei da França, seu aliado, lhe concedeu o título nobiliárquico de Duque de Valentinois, em referência à sua ascendência valenciana, embora isso não lhe concedesse direito a terras, já que Valência não pertencia à França). Ele atuou com muito sucesso em várias campanhas das guerras italianas do seu tempo, em Milão e em Nápoles. Seu prestígio atraiu os serviços de Leonardo da Vinci, de quem foi patrono durante alguns anos.

Cesare ainda se envolveria em outro caso de assassinato, desta vez de Perotto, um camarista, amante de sua irmã Lucrécia. Seu corpo também foi resgatado sem vida do rio Tibre depois que Cesare descobriu que ela estava grávida. Ele também teria planejado a morte por envenenamento do cardeal Adriano de Corneto, mas teria envenenado acidentalmente seu próprio pai, causando sua morte em 1503 (ele mesmo se envenenara na mesma ocasião, mas se recuperara meses depois). A morte de Alexandre e do seu sucessor Pio III (eleito enquanto mercenários leais a Cesare ocupavam o Conclave) tirou o apoio político do qual gozava. O Papa Júlio II e o rei Fernando II de Aragão conspiraram de todas as formas contra ele. Cesare foi preso, se tornou um fugitivo, e terminou morto em uma emboscada aos 29 anos.

Embora continuassem perseguidos pela nobreza italiana (que via os Borgia, de origem espanhola, com desdém e invejava sua influência) os Borgia continuariam, nominalmente, ou através de seus casamentos, parentes e afilhados, como membros da nobreza européia e atores da alta política e dos negócios durante todo o Renascimento e a Era dos Descobrimentos

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Tensão Brutal

Em 11 de agosto de 1965, uma abordagem policial a um motorista embriagado no bairro de Watts, no sul de Los Angeles, degenerou rapidamente em conflitos raciais que durariam quase uma semana.

Tudo começou quando o jovem negro Marquette Fryes foi parado por um patrulheiro enquanto dirigia aparentemente embriagado. Enquanto era autuado e o carro apreendido, seu irmão, Ronald, que vinha de carona, correu até a sua casa na vizinhança e trouxe sua mãe, Rena Price, proprietária do carro, para ver o que podia fazer. Rena repreendeu veementemente Marquette por dirigir alcoolizado. Mas neste momento, alguém (ninguém sabe precisar quem) empurrou Rena e golpeou Marquette. Rena reagiu pulando sobre um policial, enquanto outro sacou sua arma. Vários policiais chegaram para prender os três. Nisso, rumores na vizinhança de que policiais estavam agredindo Rena e uma outra mulher grávida fizeram com que os moradores locais, todos negros, se juntassem em volta. Alguns insultos foram seguidos de pedras e outros objetos jogados contra os policiais, evoluindo para confronto generalizado. Durante aquela noite, a polícia foi chamada várias vezes para conter a turba enfurecida. Ao longo dos 6 dias seguintes, cerca de 30 mil negros ocuparam as ruas em Watts, alguns depredando, queimando e saqueando estabelecimento de comerciantes brancos, além de seus carros (motoristas brancos eram parados, arrancados de seus carros e surrados na rua), causando destruição num raio de quase 120 km². Reuniões entre o governo e representantes da comunidade fracassaram. A Guarda Nacional enviou milhares de soldados para conter os tumultos. Foram 34 mortos, mais de mil feridos e 3400 presos.

O que gerou uma reação tão violenta, e racialmente direcionada (embora o ato da abordagem policial inicial, incidentemente de um oficial branco, tenha sido legítima) é debatido até hoje. Mas pelo menos um processo é fácil de distinguir: a segregação racial e social na cidade de Los Angeles desde pelo menos a década de 1920, gravemente acentuada por uma permissividade do poder público local quanto à ocupação urbana dos migrantes negros vindos do sul do país, e a tendência da polícia a atuar com violência contra minorias étnicas.

Em 1940, devido à II Guerra Mundial, muitos negros do sul dos Estados Unidos foram convocados e levados para o oeste do país para treinamento e embarque de tropas para o cenário do Pacífico, ou para trabalhar na indústria bélica (6 companhias de aviação tinham suas sedes na cidade). Los Angeles, que possuía pouco mais de 30 mil habitantes negros (num universo de quase 1,5 milhão de habitanteS), teve essa população quintuplicada em apenas uma geração.

Los Angeles era uma cidade majoriariamente branca, onde as minorias negra e latina viviam em regime de segregação por baixo dos panos: embora não existissem leis que proibissem negros ou latinos de usufruir dos mesmos espaços públicos, o poder público local se mantinha passivo quanto a atividade de gangues brancas intimidando e atacando outras etnias que estivessem circulando em áreas majoritariamente brancas.

O súbito influxo de imigrantes negros começou a despertar o interesse do mercado imobiliário. Inicialmente, os proprietários brancos se recusavam a vender ou alugar imóveis para negros, restringindo aos negros (e latinos e asiáticos) o acesso a no máximo 5% dos imóveis disponíveis na cidade, de maneira que os negros eram forçados a morarem em regiões subdesenvolvidas na periferia. A carência de serviços públicos, a insegurança e a insalubridade nessas comunidades eram notórias. Com a imigração nos anos 40, algumas empresas imobiliárias começaram a investir em bairros pouco populosos ocupados por brancos e construir casas e apartamentos abertos aos negros. Os vizinhos brancos, então, aceitavam vender suas propriedades abaixo do preço de mercado, que eram revendidas pelo valor mais alto possível, devido à alta procura, aumentando os lucros dessas imobiliárias, ao mesmo tempo em que alimentava um ressentimento entre brancos "que restringiam e oprimiam", e negros "que estavam tomando seu lugar". A parte sul de Los Angeles, onde essa tendência foi muito acentuada, ocorreram inúmeros casos de violência racial ao longo dos anos 50 - atentados a bomba, casas de negros incendiadas ou marcadas com cruzes em chamas em seus quintais. A polícia tendia a ser mais delicada em casos de violência perpetrados por moradores brancos do que negros ou latinos (em 1951, na noite de natal, cinco jovens latinos e dois amigos brancos foram presos e duramente espancados durante uma abordagem policial onde o grupo, acusado de beber ilegalmente, já havia provado aos policiais terem idade suficiente para isso).

Em 1963, foi aprovada uma lei proposta pelo deputado negro William Rumford pretendia proibir donos de imóveis brancos de recusarem a venda ou aluguel a clientes negros, latinos ou asiáticos. Porém, em 1964, durante um plebiscito que incluía entre os ítens a serem consultados junto à população uma proposição ("Proposição 14", devido à sua posição na cédula) que acrescentaria uma emenda à Constituição da Califórnia, impedindo que o estado ou qualquer órgão público, interferisse ou limitasse venda ou aluguel de propriedades no estado (incluindo aí critérios baseados em raça, estado civil, religião, orientação sexual e condição física, com base no princípio da liberdade de associação), neutralizando a lei anterior e restabelecendo a segregação de fato. Após os eventos em Watts, o governador Pat Brown apoiou junto à Suprema Corte do estado a revisão da Proposição 14. Ela foi julgada inconstitucional em 1966 - isso rendeu a Brown a derrota nas eleições seguintes para o conservador Ronald Reagan.

O que quer que possa ser apontado como a causa direta para a explosão de violência em Watts, o relatório de uma comissão liderada por um ex-diretor da CIA recomendou que, para evitar futuros problemas semelhantes, Los Angeles deveria resolver com urgência problemas de educação infantil, melhorar as relações entre polícia e a comunidade, investir em moradia para população de baixa renda, qualificação profissional, saúde, transporte público, além de parcerias com o setor privado no desenvolvimento econômico e no acesso a informação e com lideranças das próprias comunidades para a implementação de planos de melhoria locais.

As recomendações da comissão não foram seguidas imediatamente, nem em todos os seus pontos. Em 1992 Los Angeles, especificamente a parte sul da cidade, seria palco de outra explosão de violência racial, de maiores proporções. A senhora Price morreu em 2013 aos 97 anos sem nunca ter recuperado seu carro guinchado. Os eventos de Watts foram retratados sob a ótica de uma equipe de jornalistas no filme Tensão Brutal, de 1990, com James Earl Jones.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Magyares

Em 10 de agosto de 955, uma confederação germânica sob a liderança do rei Oto I da Frância Oriental dispersou uma horda magyar na Batalha de Lechfeld, no sul da Alemanha.

O movimento constante de povos nômades sempre causaram enormes impactos na demografia nos continentes em que ocorreram. Nas Américas e na África, onde as ondas migratórias não foram registradas por escrito (exceto na Mesoamérica, cujo último movimento importante de povos é a descida dos Aztecas vindos do norte em direção ao centro do México), elas são conjecturadas com base em arqueologia e linguística. Mas na Europa, na Ásia, e no norte da África (sobretudo Egito), as sucessivas ondas migratórias foram registradas em profusão. Em alguns momentos, o choque entre povos nômades em movimento e civilizações foi tão violento que pareceu que o mundo que se conhecia estava para acabar - muitas vezes essa sensação de estar perto do fim era o que urgia os cronistas e historiadores a registrarem tudo que pudessem. Por isso as migrações dos povos eurasiáticos são mais bem compreendidas, embora suas causas primárias - o que motivou esses povos a saírem de suas terras e se baterem contra fortalezas e exércitos melhor armados e organizados - raramente sejam conhecidas.

No século IX, o Império Romano do Ocidente já não existia, e a Europa Ocidental era dominada por povos germânicos romanizados - os francos governavam uma confederação importante de povos germânicos na França e parte da Alemanha, e já impunham um limite à invasão moura na Espanha; uma outra confederação germânica convivia num reino derivado do Império de Carlos Magno, a Frância Oriental, onde hoje é a metade ocidental da Alemanha. O Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino, ainda era relativamente saudável, ou pelo menos funcional, dominando terras na Itália, na Grécia e na Ásia, e tinha como principal preocupação os búlgaros empurrando suas fronteiras ao sul da do Danúbio. Esses búlgaros eram povos proto-eslávicos que se desprenderam do seu território original nas margens do Mar Negro e, ao longo do século VII assaltaram os Bizantinos e seus vizinhos ocidentais, até que um ramo fixou território no Danúbio e estabeleceu ali um êmulo do Império Bizantino - os khans búlgaros, designação para os chefes tribais de diversos povos eurasiáticos, governavam este Império Búlgaro como czares, "césares".

Os búlgaros, que se constituíam de várias tribos que compartilhavam da mesma língua, não estavam sozinhos. Acompanhando os búlgaros estava uma confederação distinta, de língua nem eslávica e nem sequer indo-européia, mas fino-úgrica, uma família linguística mais afim do turco e do mongol do que de qualquer outra língua europeia (exceto o suomi, ou finlandês, que compõe a família com o húngaro). Essas tribos viriam a ser conhecida no ocidente pelo nome da aldeia onde viviam, Onogur, na atual Bulgária - onogures, ongales, hunugures, unghrese (na Itália), ungar (na Alemanha), ungari, hungari (latim). Já o autônimo pelo qual se identificavam (e se identificam até hoje, a despeito desses exônimos em todas as línguas vizinhas) é magyar, nome de uma das tribos húngaras, possivelmente em uma referência obscura, talvez de um mito de formação nacional, a um certo Muaegris, um khan huno cuja tribo foi expulsa de território bizantino no século VI. Ao longo da história, o nacionalismo húngaro desenvolveu este mito para traçar a origem do povo magyar até Átila, o famoso khan dos hunos que desafiou o poder de Roma a partir da atual Hungria. Os bizaninos os chamavam em grego de "turcos".

Os magyares (ou magyarok, no plural em húngaro) viviam inicialmente subordinados ao Khaganato Kazar, um império turco ao norte do Cáucaso e na Rússia. A partir de 830 os kazares aparentemente sofriam uma crise econômica que gerou revoltas de diversos grupos étnicos e invasões estrangeiras. Entre os revoltosos estavam algumas tribos magyares, que, atacados por nômades turcos da tribo pechenegue, passaram para território búlgaro, através do qual entraram em contato com os reinos ocidentais. O acotovelamento entre os povos - pechenegues, búlgaros, avaros mais a oeste - a pujança material de Bizâncio e dos reinos germânicos, e a adequação das planícies na bacia dos Cárpatos para seus rebanhos direcionou os magyares para o centro da Europa. Por volta de 900, um certo Árpád liderou uma invasão em massa à quase desguarnecida antiga província romana da Panônia, então ocupada por pastores avaros e "romanos" (segundo a Gesta Hungarorum, do século XIII), e chegaram à "Cidade do Rei Átila", ou Aquincum, atual Budapest. Este Árpád é reverenciado como herói nacional, uma espécie de Moisés húngaro.

A exemplo dos hunos de Átila, a Hungria se tornou o centro de operações dos magyares, implementando ataques surpresas aos campos, cidades e castelos próximos na Grécia, Alemanha, na Itália e na França, com bandos alcançando até a Catalúnia, devastando e pilhando. Com uma cavalaria veloz e arqueiros montados sobre estribos, os ataques surpreendiam os exércitos europeus que, na alta Idade Média, eram uma mistura de infantaria leve composta de camponeses armados com o que podiam arranjar e nobres em pesadas armaduras, de maneira que os arqueiros montados húngaros, em ação coordenada, podiam massacrar rapidamente o inimigo mais lento. Com o centro da planície carpátia assegurado, os seguidos sucessos e os tesouros provenientes dos saques, subornos e tributos, permitiram uma expansão contínua das fronteiras húngaras em todas as direções por mais de 50 anos (os ataques ao Império Bizantino e aos territórios eslavos nos Bálcãs continuariam até pelo menos 971).

Em 955, Oto I, rei da Frância Oriental, soube de uma invasão de magyares na Bavária. Magyares já haviam atacado a Alemanha outras vezes, iniciando sempre a invasão do sudeste, fazendo uma curva na altura do Reno, passando pela França, virando ao sul para a Itália, e de lá regressando à Hungria antes que se pudesse reunir algum exército para lhes oferecer combate. Oto posicionou uma força a partir do Reno para forçar uma recuada da cavalaria húngara, enquanto movia outra força igual na sua perseguição, confrontando-os finalmente em Lechfeld, na Bavária. Com fileiras de veteranos pesadamente armados - as armaduras pesadas medievais se originaram de projetos básicos trazidos pelos alanos durante as invasões germânicas a Roma, desenvolvidos para suportar o ataque à distância de arqueiros montados - os germanos tentavam neutralizar sua desvantagem numérica. Com uma parede de metal e escudos, os saxões de Oto conseguiram encurtar a distância e provocar o combate corpo a corpo. Os magyares simularam uma fuga para induzir os germânicos a se dispersarem atrás deles, apenas para atacá-los em massa de volta, mas os defensores continuaram perseguindo-os em perfeita ordem. Os magyares debandaram, muitos tentaram se esconder em vilas e aldeias, mas os locais os massacraram. Vários líderes magyares morreram na batalha e durante a fuga. Embora as perdas de ambos os lados fossem proporcionais, a impossibilidade de vencer um exército naquele formato deve ter tido profundo impacto nas lideranças húngaras.

Foi a última vez que cavaleiros magyares tentaram invadir os reinos ocidentais. Também foi a última vez que uma tribo de nômades invadiu a Europa e se fixou por lá - os mongóis chegariam cerca de 3 séculos mais tarde, mas seriam gradualmente empurrados de volta para a Ásia pelos russos. Cerca de duas gerações depois da Batalha de Lechfeld, o rei Estevão I da Hungria se converteu ao catolicismo e recebeu a bênção do Papa (mais tarde seria canonizado). A Hungria gradualmente adotaria o estilo de vida das potências ocidentais, bem como sua tradição política, administrativa e militar - o exército, reunido sob duques e senhores feudais correspondentes, deixaria de contar com os arqueiros montados e adoraria a cavalaria pesada no seu lugar.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

A expedição Kon-Tiki e a ciência aventureira

Em 7 de agosto de 1947, a expedição liderada pelo norueguês Thor Heyerdahl, terminou quando sua embarcação, a balsa Kon-Tiki, se chocou contra recifes no arquipélago de Tuamotu.

Um assunto tradicionalmente quente nas ciências humanas é a origem dos povos americanos. Sabendo, pelo registro fóssil e arqueológico, que o homem moderno surgiu na África e seguiu um caminho para a Europa, para a Ásia, e chegou na Austrália, a presença humana na América antes da chegada dos europeus sempre intrigou muita gente. Houve, e ainda há, correntes que defendem uma rota migratória vinda da Sibéria, passando pelo congelado Estreito de Bering no Alaska, e chegando à América do Sul vinda do norte; outra corrente defende uma ou mais ondas migratórias vindas das ilhas do Pacífico, chegando na costa oeste da América do Sul e/ou Central, e de lá se difundindo para o resto do continente; outra, mais recente, defende a chegada dos primeiros americanos vindos da África subsaariana pelo Oceano Atlântico; e há os que defendem duas ou mais teorias.

Enquanto escrevia um projeto sobre espécies vegetais usadas como alimento, me deparei com vários trabalhos etnobotânicos e arqueobotânicos que apontavam para uma convergência no uso de determinadas espécies na América, na Ásia e na Polinésia: espécies de Lagenaria, uma cabaceira, e de algodão cultivadas por indígenas americanos teriam mais semelhança genética com espécies dos mesmos gêneros cultivadas na Ásia do que das suas outras parentes americanas. De maneira semelhante, a presença da batata-doce, espécie nativa da América, na dieta dos ilhéus do Pacífico descrita por navegantes europeus do século XVII indicaria algum grau de contato entre essas regiões tão afastadas do globo. Eu também trabalhava no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, para onde o famoso fóssil de Luzia - um crânio caracteristicamente africano, o mais antigo fóssil humano do continente - era guardado e estudado. Então naquele período, enquanto tentava me concentrar na botânica, eu entrei em contato com as várias teorias sobre a ocupação humana na América.

A ciência tem avançado bastante rápido nos últimos 50 anos para responder essas e outras perguntas. Mas até que o conhecimento e as metodologias chegassem ao refinamento atual, a disputa era muito acirrada, as correntes teóricas eram pesadamente influenciadas por tendências políticas e etnocêntricas, e atraía a atenção de leigos e exploradores. Um desses exploradores era o biólogo e etnógrafo Thor Heyerdahl. Enquanto fazia faculdade de biologia, Heyerdahl se interessou nos polinésios, acessando vasta literatura acerca de suas culturas, suas línguas seus mitos, e suas relações com outros povos. Seu primeiro contato com eles foi na ilha de Fatu Hiva, nas Ilhas Marquesas, Polinésia Francesa. Sua estada na ilha foi publicada em livro - veículo pelo qual se tornaria uma celebridade ao longo do século XX.

Embora tivesse atingido um nível de erudição a respeito dos polinésios, Heyerdahl não teve formação acadêmica em antropologia (assim como eu não tenho de História), de maneira que seus métodos e teorias foram repetidamente considerados equivocados - uma crítica comum aos seus projetos é de que ele selecionava teorias que queria provar, e moldava seus métodos especificamente para prová-las, sem testar outras hipóteses possíveis. No final da vida, isso o levou a uma expedição arqueológica infrutífera no Azerbaijão, acreditando, por meio de evidências que ele mesmo escolheu, que ali havia sido a origem dos povos proto-germânicos (aceitando que o mito de Odim conduzindo seu povo da terra de Asir representava a memória de um líder tribal conduzindo uma migração a partir do lugar com o nome mais próximo possível que ele encontrou). Não obstante, sua pesquisa literária o ajudou a reproduzir, por exemplo, embarcações típicas usadas no Rio Nilo no Egito Faraônico, no litoral do Golfo Pérsico do período sumério, e, mais importante aqui, um barco tradicional polinésio, com as tecnologias disponíveis respectivamente. Com um navio feito de papiro, por exemplo, ele conseguiu atravessar o Atlântico partindo do Marrocos (algo que os Egípcios não tentaram, mas demonstrando que poderia ser possível).

Ao contrário do que a maioria das pesquisas em diversos campos apontava, Thor era adepto de uma teoria que atribuía aos povos do oeste da América do Sul a colonização da Ilha de Páscoa e um contato difuso e ativo com as ilhas polinésias - ou, quiçá, teriam sido os ancestrais dos atuais povos polinésios. Os argumentos dessa teoria estariam espalhados em mitos americanos, como o de homens brancos barbados que teriam sido derrotados pelos ancestrais dos povos andinos e ido embora pelo mar - ele descrevia os nativos remanescentes dos Rapanui de Páscoa como de "pele branca", muito diferente dos polinésios de pele mais escura; o estilo de escultura dos moais (as colossais cabeças de pedra espalhadas pela ilha) que lembrariam os estilos contemporâneos encontrados no Peru; e um mito local que fala sobre dois povos que entraram em guerra em determinado momento, precipitando o colapso da civilização na ilha (um desses povos seria de imigrantes americanos). Para tentar provar essa teoria, Heyerdahl construiu, com base em literatura e em suas próprias observações, o Kon-Tiki (nome que homenageia o deus inca Viracocha, que teria sido o líder dos tais homens brancos em sua fuga pelo mar), uma balsa rústica no modelo polinésio que poderia ter sido construída com tecnologia neolítica.

Com uma tripulação de 6 homens, o Kon-Tiki partiu de Callao, Peru, no final de abril, e navegou pelo Pacífico aproveitando a Corrente de Humboldt por 101 dias, até atingir Tuamotu, quase 7 mil quilômetros a oeste. Thor Heyerdahl celebrou o feito como a prova de que precisava para demonstrar que os povos antigos da América do Sul poderiam ter colonizado as ilhas do Pacífico.

Do ponto de vista científico, a expedição só prova que um homem com treinamento militar (Heyerdahl serviu na Segunda Guerra Mundial) e outros com conhecimentos especializados em engenharia e comunicações eram capazes de levar uma embarcação rústica através do oceano com suprimentos planejados. O único elemento fiel ao que hipotéticos navegantes sul-americanos poderiam ter a disposição era o barco. Além de tripulantes munidos de conhecimento moderno aplicável à expedição, o Kon-Tiki zarpou rebocado por um navio alguns quilômetros além da costa; viajou com mais de mil litros de água potável, parte dela armazenada em latas; conquanto levasse alimentos frescos a bordo, como frutas e tubérculos (além de peixes que se reuniam sob as tábuas da balsa), a tripulação recorria a comida enlatada provida por um navio militar americano, com o qual os tripulantes mantinham contato via rádio. O teste da capacidade de navegação em si pode ser questionado porque Heyerdahl e outros membros tinham relógios de pulso, um instrumento extremamente útil para calcular longitudes, além do óbvio conhecimento do que a Terra é mais ou menos esférica e existia terras esperando além mar. Heyerdahl passou boa parte da vida se defendendo de críticas assim (na expedição do Marrocos à América, ele tentou anular o efeito da tripulação munida de conhecimento moderno escalando para tanto pessoas de várias nacionalidades e ocupações não relacionadas com navegação oceânica).

Recentemente, um levantamento genético entre amostras dos Rapanui da Ilha de Páscoa revelou uma similaridade de 76% com o genótipo polinésio, com 8% de influência americana e 16% europeia. A análise mais minuciosa aponta que a carga genética europeia era relativamente recente e poderia se dever ao contato com navegantes europeus (embora o grupo teste tenha sido escolhido entre aqueles que afirmavam não ter ascendência europeia na família), enquanto a carga americana deva ter entrado na composição entre os séculos XIII e XVI - quando a ilha de Páscoa já havia sido colonizada. Se houve esse contato entre Rapanui e nativos americanos, então pelo menos isso a expedição Kon-Tiki parece corroborar.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

A queda de Esparta

Em 5 de agosto de 371 a.C., Esparta sofreu um revés decisivo depois de se tornar o poder hegemônico do mundo helênico pós-Guerra do Peloponeso, ao ser derrotada por um exército tebano menos numeroso na Batalha de Leuctra.

A Guerra do Peloponeso foi uma guerra fratricida entre as ligas ateniense (Liga de Delos) e espartana (Liga do Peloponeso), rivalidade surgida durante a agressiva ascensão ateniense no Mediterrâneo na segunda metade do século V a.C., e alimentada com dinheiro persa que, vendo-se impossibilitado de conquistar a Grécia continental, procurou desestabilizar a região a seu favor apoiando Esparta. A guerra e eventos correlatos (como um surto de peste em Atenas em 430 a.C.) fragilizou a economia do mundo grego e as relações entre as metrópoles e suas colônias, especialmente na Itália e na França. Porém, com a vitória final de Esparta, dentro da Grécia propriamente dita aquela cidade-estado militarística se tornou o tênue núcleo de influência na política da região.

Tebas, por outro lado, manteve seu papel tradicional como a principal cidade da região da Beócia, o "antebraço" montanhoso de terra que liga tanto a Ática (a península onde se situa Atenas) e o Peloponeso (a península onde se localiza Esparta) ao resto da Europa. Durante as Guerras Pérsicas, Tebas se manteve pragmaticamente do lado dos invasores, vendo ali uma oportunidade de suplantar Atenas e Esparta como o poder máximo do mundo grego, com a bênção dos seus prováveis conquistadores. Os persas acabaram recuando, e Tebas viu a ascenção das duas cidades rivais. Com o advento da Guerra do Peloponeso, Tebas atuou do lado espartano em reconhecimento ao apoio destes quando Tebas deixou de presidir a confederação de cidades beócias, a Liga Beócia, em consequência da sua aliança com os persas.

Com o fim da guerra, Tebas começou a alterar as regras da Liga quanto à eleição de delegados para o conselho militar (os beotarcas), favorecendo a si mesma em detrimento das menores cidades federadas. Esparta insistia que todos os membros da Liga Beócia deveriam ter o mesmo tratamento, e atuou para dissolvê-la, chegando a ocupar Tebas com uma guarnição e designando delegados para administrar a cidade. Em 378 a.C. uma revolta resultou na expulsão dos espartanos e na deflagração de um conflito armado, inicialmente de proporções modestas. No primeiro momento, Esparta havia conseguido posicionar uma guarnição na cidade de Tespias, mas seu capitão, por conta própria, resolveu se aproveitar da situação para tentar um assalto ao porto ateniense do Pireu, trazendo Atenas para o conflito ao lado de Tebas.

As potências de Atenas e Esparta estavam novamente em guerra, enquanto Tebas lutava na Beócia para expulsar os espartanos e reconquistar sua influência na região. Em 373 Tebas reconquistou Plateia, pequena cidade beócia que teve papel importante na expulsão dos persas e era tida como aliada e em grande estima por Atenas. Por isso, muitos plateus se refugiaram lá, e suas queixas contra Tebas tiveram grande impacto na opinião pública. Logo Atenas procurou mediar um acordo de paz entre ela, Tebas e Esparta. No ato da assinatura, o general tebano Epaminondas alegou que ele deveria assinar por toda a Beócia, não apenas por Tebas. O rei espartano Agesilaus II resolveu o impasse excluindo Tebas do tratado, assinando a paz apenas com Atenas. Esparta entendia que precisava esmagar a rebeldia tebana para assegurar sua hegemonia. O estado de guerra continuaria entre as duas cidades, embora os combates fossem raros.

Esparta, que tradicionalmente possuía dois reis, enviou um exército de talvez 10 mil hoplitas de sua base avançada em Fócis, no sudoeste da Beócia, sob comando do rei Cleômbrotos. Os espartanos avançaram uma boa distância antes da notícia chegar a Tebas. Na ocasião, Tebas havia restaurado sua supremacia sobre a Liga Beócia, e eleito seus quatro beotarcas. Foi com a diferença de um voto entre eles que os beócios, sob comando de Epaminondas, relutantemente concordaram em mobilizar um exército para enfrentar Esparta.

Os dois exércitos se encontraram perto da vila de Leuctra, a pouco mais de 10 quilômetros de Tebas. O primeiro ataque, à distância, fez com que os tebanos que seguiam o exército (escudeiros, comerciantes, prestadores de serviço em geral) corressem para trás das filas. Os tebanos estavam em desvantagem numérica, e isso, incidentemente, fortaleceu as suas linhas. Um ataque da cavalaria espartana foi repelido, e o seu recuo causou uma certa confusão na linha espartana, impedindo um ataque direto. Epaminondas então tomou a ofensiva de uma maneira pouco ortodoxa para um exército grego - ao invés de compor as falanges como uma linha uniforme em largura e profundidade, com os melhores soldados à direita, ele concentrou suas forças no flanco esquerdo (colunas de 50 homens de profundidade, contra 12 do flanco espartano) sob liderança do colega beotarco Pelópidas, atacando em diagonal primeiramente por ali, quebrando o flanco direito espartano. Ali tombou Cleômbrotos, e começou a debandada do seu exército. A chegada de um reforço da Tessália persuadiu os espartanos a recuarem de volta à Lacedemônia, ao invés de reagrupar e tentar uma nova ofensiva.

A vitória em Leuctra permitiu a Tebas expandir sua influência inconteste não apenas na Beócia, mas em grande parte da Grécia, suplantando seus rivais históricos - a derrota desmitificou a superioridade militar de Esparta. O balanço de forças, contudo, continuou pendendo para um lado ou para o outro. Nove anos mais tarde, Tebas venceu novamente Esparta na Batalha de Mantineia (onde Epaminondas e Agesilaus se encontraram novamente), obliterando o controle espartano sobre o próprio Peloponeso, porém perdendo, por outro lado, o valioso Epaminondas. Com os dois lados enfraquecidos, haveria pouca resistência contra o avanço - pela habilidade militar e política - da Macedônia sobre a Grécia. Mais do que um novo equilíbrio de poderes, a batalha trouxe uma inovação para os exércitos gregos: a formação oblíqua de Epaminondas, que tornava seu exército muito mais flexível contra a rigidez formal da falange grega tradicional. Esse estilo de combate inspiraria Filipe II (que estudou em Tebas) e Alexandre, o Grande, e possibilitaria as suas contínuas vitórias contra gregos e persas e a consequente expansão do mundo grego sobre a Ásia e o Egito sob domínio macedônio.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Vida e lenda de Dom Sebastião

Em 4 de agosto de 1578, Dom Sebastião I de Portugal tombou na Batalha do Alcácer Quibir.

Sebastião ascendeu ao trono aos três anos de idade. Durante o período de regência de sua avó, a Imperatriz Catarina da Áustria, e do Cardeal Henrique de Évora, cunhado de Catarina, o Império Português interrompeu sua expansão colonial e entrou na defensiva. Com a proeminência do cardeal no governo, e a educação religiosa do jovem Sebastião entre os jesuítas, o governo português se deteve em assuntos religiosos ao invés de aprimorar a administração das suas colônias. Com Portugal na defensiva, outra potência marítima da época, o Império Otomano (que disputava o domínio do Mediterrâneo com Veneza, mas pouco se aventurava fora dele) arriscava ataques diretos, ou por meio de piratas, aos navios portugueses próximos à costa do Marrocos. Portugal já possuía algumas fortalezas na costa marroquina, porém era muito custoso mantê-las, já que as fontes de recursos mais próximas estavam de posse dos mouros.

Surgem aí, portanto, três motivos que convergiram para um plano geral de conquista do Marrocos - a expansão do cristianismo para o vizinho muçulmano mais próximo, a erradicação da pirataria muçulmana em águas portuguesas, e a viabilização da presença portuguesa já existente no norte da África. Dois eventos ainda estavam por vir que mergulhariam Portugal numa guerra afoita contra o reino africano.

Em 1562, uma enorme força marroquina liderada por Mulei Mohammed cercou a fortaleza portuguesa de Mazagão, na costa marroquina. Nos três meses de cerco, 25 mil soldados marroquinos pereceram, contra 17 defensores portugueses. A resistência insuflou a moral portuguesa e o ego de Sebastião, que ainda era uma criança.

O jovem rei, que assumiria o cargo em 1568 aos 14 anos, crescera convencido de que estava destinado a realizar grandes proezas como rei e em nome da cristandade. Ele advogava uma cruzada católica contra os mouros, e iniciou imediatamente preparativos para tal campanha. Ele próprio havia aceitado prontamente um pedido do Papa para uma cruzada contra os turcos no oriente (ele já havia mesmo articulado uma estratégia com seus aliados persas para um ataque em duas frentes), mas acabou sendo dissuadido com muito esforço. No entanto, por conta própria, acompanhado apenas por alguns fidalgos e poucos soldados, e sem qualquer planejamento, Sebastião navegou secretamente até as cidades marroquinas de Ceuta e Tânger (possessões portuguesas na época), com o espírito de usá-las como ponte para conquistar o país, fosse como fosse. Em Tânger, as defesas marroquinas, à visão do rei de Portugal em pessoa, recuaram pensando que ele estivesse acompanhado de um exército. Sebastião regressou frustrado, com a ideia fixa de conquistar o Marrocos. Contudo, para esta causa não encontrou apoio - Filipe II, rei da Espanha e seu primo, em conferência privada, não só não quis participar da campanha, como preferiu adiar o casamento de uma de suas filhas com o rei português, com medo de que ele realmente seguisse seu plano e a deixasse viúva.

Por fim, em 1576, o sultão Mulei Mohammed (o mesmo comandante do cerco a Mazagão) foi deposto por seu tio, com apoio de um exército turco, e fez um pedido de ajuda a Dom Sebastião, prometendo-lhe mais concessões de terras no seu país, entregando-lhe, de pronto, a fortaleza de Arzila, que o rei anterior, João III, abandonara. Foi o pretexto para o rei português lançar sua tão sonhada cruzada que vinha preparando havia pelo menos 10 anos - a despeito da reação negativa de toda sua côrte, seus ministros, do clero, e de sua avó. Suas reuniões com ministros, contudo, não eram sobre a viabilidade de uma expedição ao Marrocos, mas para resolver os detalhes de como realizá-la de maneira eficiente.

Dom Sebastião partiu à frente de uma grande frota, com mais de 23 mil soldados (12 mil portugueses, os demais estrangeiros comandados por amigos seus e mercenários) e 40 peças de artilharia. O exército desembarcou em Tânger, onde juntou-se a Mohammed e 6 mil mouros, e seguiu por terra, passando por Arzila, em direção a Alcácer Quibir. A costa marroquina é árida, e a marcha por terra desgastou as tropas. De fato, Sebastião não se dera ao trabalho de dar ouvidos aos conselhos do aliado marroquino, e não fazia sequer ideia do tamanho do exército do seu inimigo, o sultão Mulei el-Malek. Perto de Alcácer Quibir, el-Malek surgiu um exército pelo menos duas vezes maior. Embora conseguisse avançar pelo centro, as linhas portuguesas foram cercadas pelos flancos pela numerosa cavalaria moura, e em 4 horas a batalha terminou com metade do exército português morto, e a outra metade capturada (cujos resgates custaram a ruína econômica da coroa portuguesa). Mulei el-Malek, que estava doente, morreu enquanto tentava montar seu cavalo. Mulei Mohammed se afogou enquanto tentava fugir cruzando o rio. Já Dom Sebastião foi visto pela última vez com seus amigos avançando com a espada em punho em direção ao inimigo.

Cerca de 100 sobreviventes conseguiram regressar a Portugal. Nenhum deles, nem os soldados resgatados posteriormente, contudo, produziu algum relato confiável do paradeiro de Dom Sebastião. Seu desaparecimento deixou o trono português vago, pois não tinha filhos (seria sucedido pelo velho cardeal Henrique, antes de passar para Filipe II da Espanha, que promoveria a União Ibérica). Logo se espalhou o boato, na própria côrte, de que Sebastião estava vivo e retornaria para governar o país. Mesmo que isso demorasse, o boato, transformado em mito, se tornou um motivo nacionalista na população durante a União Ibérica (embora Filipe tenha tentado mitigar o movimento alegando ter recebido dos marroquinos os restos mortais de Sebastião e os enterrado no Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa). Os trovadores João de Castro e Gonçalo Annes Bandarra deram ares místicos ao retorno de Sebastião, como a profetização de um Messias. O personagem tomou contornos similares aos do Rei Arthur, o rei-herói que deixou a Inglaterra para a misteriosa ilha de Avalon, mas voltaria para salvar seu país. No fim da União Ibérica, quando João de Bragança aparecia como o favorito ao trono português, era corrente a crença de que ele lutaria com Dom Sebastião ao seu lado para livrar Portugal do domínio espanhol (se tornando efetivamente Dom João IV). Dom Sebastião seguiu até pelo menos o século XX como um símbolo patriótico português, presente na literatura e na música. No Brasil, o mito de que Dom Sebastião retornaria para reclamar a coroa inspirou os movimentos populares de Canudos (Antonio Conselheiro via na monarquia brasileira, a única forma de governo legítima pela vontade divina, e que Dom Sebastião viria para restaurá-la) e do Contestado (corria a lenda de que Dom Sebastião lutava entre os revoltosos). Mais recentemente, o mito de Dom Sebastião foi evocado na novela brasileira Mandacaru, como figura que legitima a pretensão meio louca do cangaceiro Zebedeu a tornar-se rei da cidade de Jatobá.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Jesse Owens

Em 3 de agosto de 1936 Adolph Hitler assistia o atleta americano Jesse Owens vencer a competição dos 100 metros rasos nos Jogos Olímpicos de Berlim, o primeiro dos seus quatro triunfos naquela competição.

James Cleveland Owens, o mais novo de dez irmãos, ficou conhecido como "Jesse" quando, na escola, foi perguntado por um professor como se chamava, e ele respondeu "J.C." ("Jay Cee"). Começou a praticar atletismo no colégio, e conseguiu uma bolsa universitária para seguir treinando em alto nível.

Jesse, com 21 anos, chegava aos jogos com 4 recordes mundiais atingidos no ano anterior, num mesmo dia: nos 100 metros rasos (na verdade, igualando o recorde existente de 9,4 segundos), no salto em distância, e nas provas não olímpicas das 220 jardas (algo próximo dos 200 metros rasos), e 220 jardas com barreiras. Muitas crônicas posteriores o colocam como uma "zebra" nas Olimpíadas que venceu um adversário gigante, mas na verdade ele era o favorito em suas provas. Pouco antes das competições, ele recebeu a visita do empresário alemão Adi Dassler, fundador da Adidas, que, ciente do seu ótimo prospecto, ofereceu-lhe seus novos calçados para corridas, tornando-o um dos primeiros garotos-propaganda da marca.

A final dos 100 metros rasos (definida após três rodadas eliminatórias, na segunda das quais bateu o recorde olímpico com 10,3 segundos) contava com Owens, seu colega de faculdade e principal adversário Ralph Metcalfe, e seu colega de revezamento 4x100 metros, Frank Wykoff. O único alemão era Erich Borchmeyer, integrante do revezamento alemão medalhista de prata no 4x100 metros nas Olimpíadas de Los Angeles. Ele era a zebra. Owens correu novamente para 10,3 segundos, com Metcalfe em segundo um décimo atrás e o holandês Osendarp em terceiro, o alemão apenas em quinto. A análise aqui é fria e com base em dados oficiais conhecidos, a vantagem de se escrever em retrospectiva. Mas o Estádio Olímpico de Berlim, com capacidade para 100 mil pessoas, contagiada pela extensa propaganda nazista de exaltação da raça ariana, estava exultante esperando uma vitória alemã, e a vitória do atleta negro foi recebida com espanto.

A lenda segue. Diz-se que Hitler, furioso, teria se recusado a cumprimentar o vencedor e se retirou do estádio. Hitler, de fato, vinha comparecendo às premiações para cumprimentar apenas os atletas alemães. A organização dos Jogos advertiu que Hitler deveria cumprimentar todos os atletas no pódio, ou nenhum deles. Depois disso, o führer optou por não participar mais das cerimônias. O próprio Jesse Owens recorda que, após a sua prova, Hitler, de sua tribuna, e ele, na pista, trocaram olhares e acenos, e em seguida o líder alemão teria deixado o estádio seguindo sua agenda (ou, como supunha Jesse, por causa do mau tempo que se formava).

Owens tinha suas razões para ter outra impressão de Hitler, a ponto de, algumas vezes, procurar a imprensa para desmitificar sua relação com ele (nos anos 60 ele teria mostrado a um jornalista alemão uma foto dos dois apertando as mãos nos bastidores da premiação dos 100 metros, algo alegadamente testemunhado por uns poucos presentes). A família de Owens veio do Alabama, fugindo de um sistema fortemente segregacionista. Quando chegou na Alemanha nazista, ele e outros atletas negros tinham liberdade de circular nos mesmos lugares e se hospedaram nos mesmos hotéis que os brancos, mesmo alemães. Quando retornou aos Estados Unidos, depois de um desfile em carro aberto, ele teve que usar o elevador de serviço para chegar à recepção em sua homenagem no hotel Waldorf-Astoria, em Nova Iorque. Owens e algumas testemunhas alegavam que Hitler realmente o cumprimentara após os 100 metros rasos (ora à distância, ora com um aperto de mãos). O presidente Franklin Roosevelt nunca o convidou para a Casa Branca, ao contrário de outros medalhistas - em campanha pelo candidato à presidência Alf Landon, Owens ressaltava que Hitler não o havia esnobado, enquanto Roosevelt nem lhe enviara um telegrama. De qualquer forma, a contra-propaganda americana se aproveitou do momento para mitificar Jesse Owens, que por seus próprios méritos já deveria ter sido lembrado como um atleta extraordinário.

A competição seguiu. No dia seguinte, Jesse passara por uma eliminatória difícil no salto em distância. Seu principal adversário na prova, esta sim, era o alemão Luz Long, recordista europeu, com o japonês Naoto Tajima (recordista mundial no salto triplo) correndo por fora. Long quebrou o recorde olímpico nas preliminares, pressionando Owens por um bom resultado. O americano havia queimado duas tentativas e precisava saltar pelo menos 7,15 metros para seguir para a final e parecia desanimado. Long, que ansiava pelo duelo com Jesse, então teria se aproximado e recomendado que o adversário desse mais folga da tábua de salto na sua última passada, pois sua melhor marca era tão superior às dos concorrentes que ele poderia sacrificar alguns centímetros para se classificar se saltasse bem. Ele saltou para 7,64 metros. Na final, Long quebrou novamente o recorde olímpico no penúltimo salto, mas já ali fora superado por Owens em 7 centímetros. Pressionado, o alemão queimou o último salto, e Owens estabeleceu novo recorde olímpico com 8,07 metros. Assim que confirmou o ouro, Luz Long foi abraçá-lo e posar com o americano para fotos. Sua atitude desportiva foi reconhecida postumamente com a medalha Pierre de Coubertin.

No dia 5 Jesse conquistou o ouro com alguma facilidade nos 200 metros rasos. Ele quebrara o recorde olímpico nas duas primeiras etapas eliminatórias, e só viu seu domínio ameaçado pelo compatriota Mack Robinson, que baixou esse recorde nas semi finais. Na final Robinson repetiu o recorde, mas Owens quebrou a marca mundial de 20,7 segundos para ficar com o terceiro ouro.

Sua última participação foi no revezamento 4x100 metros. Naquela altura, o atletismo alemão, justamente no evento de maior visibilidade dos Jogos, vinha sendo o grande fracasso da delegação. Ao final dos Jogos, a Alemanha terminaria líder do quadro de medalhas com 33 de ouro contra 24 dos Estados Unidos. Mas no atletismo, foram apenas 5 conquistas em 29 eventos, contra 14 triunfos americanos. Albert Speer, oficial do alto escalão nazista, dizia que Hitler estava tão aborrecido pelas vitórias americanas (além de Jesse, havia outros atletas negros, que, segundo Hitler, tinham vantagens físicas por serem mais primitivos) que ele cogitava propor a proibição de negros nas próximas competições olímpicas. Aconteceu que o time de revezamento dos Estados Unidos, atual campeão olímpico, contava com dois atletas judeus, Marty Glickman e Sam Stoller. Na manhã anterior à competição, o técnico americano decidiu substituir os dois por Jesse Owens e Ralph Metcalfe. As razões para isso nunca foram esclarecidas, mas parece ter sido uma manobra para evitar problemas com as políticas agressivamente antissemitas o governo alemão (a justificativa exposta pelo técnico aos atletas era de que os alemães estavam poupando seus melhores velocistas para essa prova; Owens teria insistido para que a equipe original fosse mantida, porque ele já tinha 3 ouros e estava cansado, mas lhe deixaram claro que deveria fazer o que era mandado). De qualquer maneira, a equipe americana venceu com larga margem, quebrando o recorde mundial duas vezes. A Alemanha não conseguiu sequer defender a prata de 1932 e ficou em terceiro. Foi a quarta medalha de ouro de Owens.

Jesse Owens teve a carreira encerrada abruptamente pouco depois dos Jogos, quando recusou um convite para uma competição na Suécia junto com a delegação americana e retornou aos Estados Unidos para correr por dinheiro - tornando-se formalmente um profissional, e, portanto, não elegível para o esporte. Quando os jogos voltaram a ser disputados, em 1948, Owens, com 33 anos, já se aventurava como dirigente de baseball numa liga para jogadores negros, e participava de eventos promocionais - ficou célebre por correr contra, e vencer, cavalos de corrida em tiros de 100 metros. Em vários momentos incorporou seu papel como atleta negro e ofereceu declarações em prol das lutas pelos direitos civis dos negros americanos. Viciado em cigarros depois que parou de correr, morreu de câncer em 1980.

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