terça-feira, 17 de maio de 2016

A espada e o escudo da Europa

O trabalho tem me atropelado desde janeiro, quando deixei de escrever regularmente. Desde então tenho trabalhado a 100% da capacidade em 100% do tempo, me deixando sem espaço para escrever profundamente sobre qualquer assunto. E não foi por falta de vontade: desde o começo de abril estamos passando pelo período em que os exércitos do sultão otomano Mehmed II cercaram Constantinopla até a sua queda, em 29 de maio (em 22 de abril tentei preparar um texto marcando o momento em que os defensores bizantinos ficaram bestificados ao ver as naus turcas sendo transportadas por terra ao redor da imensa corrente de ferro que ele mantinham bloqueando o rio ao norte da cidade, com direito a remadores remando o ar e tudo, sem tempo de sequer chegar ao clímax da história). O cerco a Constantinopla de 1453 é um dos meus episódios favoritos da História (vide parêntese anterior!) e algo que me dá muita satisfação em ler e refletir a respeito. É um fardo obrigar-me moralmente a terminar qualquer tarefa à qual sou designado e da maneira mais espetacular possível, enquanto emprego tão pouca dedicação ao que verdadeiramente me dá prazer. Mas por outro lado, Goethe disse que depois de cumprir seus deveres, resta-te outro ainda: o de te mostrares satisfeito.

Então, vou aproveitar o gancho que os turcos deixaram pendurado sobre a Muralha de Constantino (antes que os bizantinos saiam à noite para derrubá-la de lá) e não vou deixar passar que em 17 de maio os turcos, vendo que seus canhões (um deles um imenso canhão de bronze projetado por um engenheiro húngaro para ser o maior já feito) não conseguiam abalar as defesas, e que os poucos defensores da cidade resistiam tenazmente aos ataques frontais (nos dias 7 e 12, os bizantinos conquistaram duas vitórias desesperadas contra assaltos à muralha), estavam testando alternativas. No dia 16, soldados turcos começaram a cavar túneis com destino às muralhas. A intenção era entrar na cidade por baixo das muralhas, já que era impossível escalá-las ou derrubá-las. Mas um desses túneis acabou interceptando um outro túnel que vinha de dentro da cidade, e ali os defensores os emboscaram.

Bizantinos contavam com engenheiros do seu lado que coordenavam reparos, a escavação de túneis de interceptação e a instalação de armadilhas contra tentativas de infiltração subterrânea (promovendo a inundação de túneis com água e entulho). As muralhas eram reparadas à noite com sacos de areia e pedra estilhaçada pelos bombardeios incessantes durante o dia.

No dia 17, os turcos já estavam com parte da sua frota estacionada dentro do rio chamado Corno de Ouro (o rio que deságua ao norte da parte antiga de Istambul, que até então era o fio de conexão da cidade com o interior em situações de cerco por terra e por mar), mas ainda assim inconvenientemente imobilizada pela corrente que bloqueava o rio. Essa corrente ficava presa à muralha e era levantada e descida conforme conveniência. Nesse dia os turcos tentaram cortá-la em uma das suas pontas, mas os parcos defensores da parte norte da muralha os fustigaram até fazê-los desistir. Eles haviam tentado a mesma coisa no dia anterior.

Enquanto isso, os otomanos montavam uma grande torre de cerco, que seria usada no dia seguinte para tentar escalar a muralha e levar a luta ao seu passadiço. Seus planos foram frustrados por defensores bizantinos, que atearam fogo à estrutura durante a noite.

Os bizantinos deixaram claro que não se entregariam facilmente, e realmente não existia uma alternativa óbvia para o sultão ali. Tomar a cidade era geopoliticamente fundamental - embora o Império Bizantino estivesse havia séculos à míngua, Constantinopla era uma fortaleza cristã que dominava a passagem do comércio entre o Mediterrâneo e o Mar Negro, e dominar Constantinopla significava dominar o grosso do comércio da Europa com a Ásia. Além disso, a cidade servia como ponto de apoio para as Cruzadas (e mesmo que elas já não tivessem o objetivo e a capacidade de penetração em território muçulmano na Ásia, ela continuava lá como uma possibilidade). Além do significado simbólico de ser o último resquício do que um dia foi o Império Romano (nós costumamos sinonimizar os bizantinos como "gregos" devido à língua e origem étnica de suas casas dominantes, mas os otomanos, nas suas crônicas, os chamavam de "romanos"). O próprio Mehmed II a descrevia como "a espada e o escudo" da Europa.

Os turcos já avançavam sobre a maior parte da Grécia, e tinham controle sobre tudo entre a Macedônia e a Sérvia, a Bulgária e partes da Romênia e Hungria, além de tudo que um dia fora bizantino na Ásia, mas Constantinopla não se entregava. Manter um grande exército parado num lugar por muito tempo é uma estratégia defensiva que os antigos gregos já conheciam bem, pois foi o que tentaram na célebre Batalha das Termópilas (que fracassou quando os atacantes persas descobriram um caminho para se infiltrar na retaguarda espartana e forçá-la a abrir caminho). Esse impasse criava inquietação no acampamento turco, cuja tenda real fora montada onde seria construído depois o palácio imperial de Topkapi (hoje o principal museu de Istambul). Havia os que acautelavam o sultão a abandonar o cerco para evitar dissenções e revoltas entre seus soldados.

Com o fracasso das minas e a impossibilidade de cortar as correntes no Corno de Ouro (e boatos de que reforços vinham do ocidente na forma de uma Cruzada convocada pelo Papa), o sultão, com apoio de parte dos seus conselheiros, designou Zaganos Pasha para liderar uma última investida. Nunca ficou muito claro como, se Pasha teria comprado a lealdade de algum soldado, ou se algum defensor local foi mortalmente descuidado, mas um portão-falso que era usado pelos bizantinos para se esgueirarem para fora das muralhas foi deixado convenientemente destrancado. No dia 28 o acampamento turco ficou em silêncio, enquanto em Constantinopla, na catedral de Santa Sofia celebrava-se uma missa com a presença do imperador Constantino XI Paleólogo, e os sinos de todas as igrejas da cidade badalavam em desafio. No dia seguinte, pela porta destrancada, os turcos infiltraram-se durante um tumultuoso ataque frontal. Ali chegaram ao interstício entre as duas muralhas que compunham o complexo de defesas local, e finalmente a luta corpo a corpo se espalhou pelas ruas. Diz-se que o próprio imperador foi visto de espada na mão esperando seu fim. A resistência em uma luta franca foi insignificante, e ao fim do dia a destruição já era tão grande, que o sultão quebrou sua promessa de três dias de butim e ordenou o fim dos ataques.

Constantinopla, rebatizada em turco Istambul (uma corruptela do grego εἰς τὴν Πόλιν, "eis tim pólin", ou "à cidade", como eles se referiam a ela), teve suas igrejas reconsagradas, incluindo a colossal catedral de Santa Sofia, transformada numa mesquita. O clero ortodoxo (que resistira firmemente às tentativas de união promovidas entre o imperador e o Papa enquanto o primeiro buscava apoio no ocidente) obteve permissão para ficar, mas o eixo da ortodoxia cristã se deslocou mais para o norte, para o emergente principado de Moscou. Venezianos e genoveses, donos de impérios comerciais próprios que, por mais por afinidade do que por convicção apoiavam os bizantinos, fizeram seus acordos para manter seus negócios no novo Mediterrâneo controlado pelos turcos. Para estes, a vitória reforçada pelo simbolismo da sua conquista serviu para pacificar e unificar as tribos turcas que viviam de maneira mais ou menos federada no centro da Anatólia, enquanto o prestígio do sultão espalhava-se pelo restante do mundo islâmico não-turco, permitindo a expansão subsequente do domínio otomano sobre a África e Arábia. A nova capital também passaria a ser o trampolim para novas conquistas e a consolidação de um império turco na Europa mesmo hoje, de forma tão reduzida.

Do ponto de vista da Europa cristã, a queda de Constantinopla, por mais indiferença que as nobrezas locais, ocupadas com seus próprios conflitos locais (guerras de sucessão no Sacro Império Romano, guerras entre repúblicas e reinos italianos, a Guerra dos Cem Anos entre França e Inglaterra, a Reconquista na Espanha), tivessem aos apelos do imperador e do Papa, foi recebida como um soco no estômago. De fato, os turcos permaneceram uma ameaça por terra e por mar pelos séculos seguintes. Enquanto isso, mestres arquitetos e artistas diversos emigraram de Istambul e do centro do Peloponeso (onde, até a queda de Constantino XI, seus irmãos comandavam uma resistência armada), e influenciaram intelectualmente o início da Renascença na Itália e a revitalização da cultura clássica grega durante esse período. De fato, muitos historiadores marcam o fim da Idade Média em 1453, após a tomada de Constantinopla.

Porém, na minha opinião, a consequência mais importante da conquista turca foi o estabelecimento do Mediterrâneo como um ambiente hostil ao comércio europeu. Enquanto turcos, venezianos, genoveses, austríacos e napolitanos confrontavam-se uns contra os outros, e Inglaterra engalfinhava-se com a França por questões dinásticas, um jovem país costeiro no extremo oeste do continente emergia como nova potência comercial à medida em que aproveitava sua posição para explorar o oceano em busca de novas rotas para o oriente: Portugal enviava expedições tateando a África em busca de uma passagem pelo sul até a Índia que não dependesse da boa vontade dos turcos ou de quaisquer outros maometanos que existissem pelo caminho (e além dos turcos, ainda havia curdos, persas, uzbeques, turcomanos, mongóis, afegãos, e todo tipo de etnia e seguidores do islã entre o Bósforo e o Ganges... além de boa parte do próprio norte da África, caso eles tentassem). O desenvolvimento técnico que se seguiu, e o conhecimento acumulado sobre as correntes oceânicas e a astronomia em diferentes latitudes, levou às expedições que, 40 anos depois, levaram os europeus à América.