quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Príncipes sobre elefantes

Em 18 de janeiro de 1593, uma guerra entre os reinos de Burma e Sião, no Sudeste Asiático, terminou de maneira dramática.

Burma e Sião correspondem em linhas gerais aos atuais Mianmar e Tailândia, respectivamente. Sião era a principal potência na região até meados do século XVI, e costumeiramente empregava campanhas militares para garantir sua supremacia sobre os vizinhos. Porém, uma crise política na dinastia Aytthaya, de Sião, fragilizou essa posição, e o emergente reino de Burma partiu em campanha para expulsar os siameses da região burmesa de Tanintharyi, que corresponde ao litoral sul de Mianmar. Por cerca de 50 anos, os dois países se confrontaram, com resultados diversos - ora um submetia-se à vassalagem do outro, ora o oposto.

A quarta deflagração aconteceu em 1584, quando o rei Naresuan, da mesma dinastia Ayutthaya, declarou a independência de Sião, então sob controle de Burma. No momento, Burma havia estendido seu território em todas as direções, constituindo um império do qual Sião fazia parte. A morte do criador deste império, Bayinnaung, da dinastia Toungoo, causou um desequilíbrio político que seu sucessor, Nanda, nunca conseguiu recuperar. Além de Sião, Ava, cidade-estado no centro do atual Mianmar, também declarara independência (Ava seria invadida e reconquistada, e transformada em capital imperial poucos anos depois). Trabalhando como um equilibrista para manter os demais vassalos sob controle, o rei Nanda nomeou seu jovem filho Mingyi Swa para comandar uma campanha contra Sião. Foi sob sua supervisão que Naresuan declarou independência.

A campanha foi um fracasso em cinco etapas. No momento da revolta, Nanda enviou Swa com cerca de 11 mil homens, 900 cavalos e 90 elefantes para Sião, mas essa força nunca conseguiu fixar posição segura no país, e a chuva intensa causara enchentes que imobilizaram seus avanços - no vale inundado pelo rio Chao Phraya, no oeste da Tailândia, os burmeses quase foram exterminados por siameses em canoas. A segunda invasão, em 1586, parou na cidade fortificada de Lampang, no norte do país, a qual Swa não conseguiu tomar. Na terceira, Swa foi deixado no controle da capital burmesa Pegu, enquanto o rei Nanda comandava 25 mil homens num assalto à capital Ayutthaya (da qual a dinastia thai emprestava seu nome), mas depois de 4 meses ele retornou apenas com uma fração deste efetivo. Swa comandou uma quarta invasão ao norte de Sião em 1590, mas foi novamente repelido em Lampang (por esse segundo fracasso, Nanda o repreendeu publicamente e executou alguns de seus generais).

Em 1592, depois de 8 anos de vitórias consistentes, Naresuan sentiu-se segurou o suficiente para deixar Sião e empreender uma ofensiva contra Burma, atacando o litoral sul. Swa foi designado novamente para liderar o exército burmês (por segurança, Nanda nomeou outros aliados como seus imediatos) em ofensiva direta contra a capital siamesa. As coisas não deram certo; a batalha foi confusa, resultando na morte de Mingyi Swa, na retirada burmesa, e na consolidação de Naresuan como rei de Sião.

A maneira como os eventos de 18 de janeiro ocorreram varia de fonte para fonte, e são completamente diferentes segundo as duas versões oficiais opostas do conflito. Uma mais espetacular do que a outra.

Na versão burmesa (que teria ocorrido em 8 de janeiro de 1593), Swa conseguira alcançar as proximidades da capital Ayutthaya, onde seu exército encontrou o de Naresuan. Os dois comandantes lutaram sobre elefantes de guerra. Um dos elefantes montado por um nobre burmês estaria no cio, e no frenesi da batalha entrou em fúria, investindo contra Naresuan. O elefante foi contido, mas ao recuar investiu contra as linhas burmesas. A confusão fez com que Swa e sua escolta se deslocassem para campo aberto, onde foram alvejados por morteiros siameses. Swa foi morto por um projétil. Mas um dos mahouts (o nome de quem monta ou cuida de um elefante) que o acompanhava trouxe seu corpo para cima e o manteve escorado às suas costas para não revelar ao inimigo nem aos aliados que seu príncipe havia perecido. Sob a liderança de um príncipe morto, os burmeses continuaram pressionando os defensores até o fim do dia, quando Naresuan recuou para sua capital. Apenas à noite o comando burmês tomou conhecimento da morte de Mingyi Swa, e decidiu retornar ao seu país.

Na versão siamesa (que teria ocorrido em 18 de janeiro de 1593), os dois exércitos encontraram-se a oeste da capital. Burmeses em boa ordem teriam irrompido pelas escaramuças do exército nativo e tomado a ofensiva. Parte da retaguarda siamesa teria caído, e Naresuan, seu filho mais novo e sua escolta teriam ficado cercados. Num momento de desespero, o rei siamês se dirigi a Mingyi Swa, desafiando-o a um combate pessoal sobre elefantes. Swa teria se sentido constrangido em recusar o desafio. Manobrando seus elefantes de guerra, os dois lutavam com espadas; Naresuan foi golpeado em seu elmo, mas revidou com uma estocada no coração do rival, matando-o na hora. Enquanto isso, seu filho fazia o mesmo com um nobre burmês. Os burmeses começaram a atirar com armas de fogo, derrubando alguns mahouts que protegiam Naresuan, mas a desordem teria permitido que parte desgarrada do exército siamês se reagrupasse e avançasse para resgatar seus líderes.

Uma análise moderna dos relatos de época oferece uma terceira versão, também dramática: Swa e Naresuan lutaram a última batalha em elefantes, mas nunca chegaram a duelar. Naresuan teria ficado cercado, mas um dos elefantes burmeses teria entrado em pânico e atacado suas próprias linhas, deslocando Swa de sua posição. Neste momento, Naresuan ou alguém próximo, que estava ao alcance do comando burmês e não tinha escolha, disparou uma arma e alvejou mortalmente o príncipe inimigo, causando desordem e o recuo das forças invasoras.

A guerra terminou em 1594 com a conquista por Naresuan do sul de Burma (ele também havia empreendido ao mesmo tempo uma campanha para anexar o Camboja). Os conflitos armados entre Burma e Sião perduraram por mais 250 anos, até 1855, pouco depois do rei tailandês Rama III, no seu leito de morte, alertar o seu país a não mais lutar contra seus vizinhos, diante da ameaça crescente representada pelos europeus.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

"Eu sou o marinheiro Popeye, puff puff"

Em 17 de janeiro de 1929 o marinheiro Popeye fez a sua primeira aparição na tira Thimble Theater, publicada no New York Journal pelo cartunista E.C. Segar.

Popeye é um ícone da cultura pop do século XX. Um marinheiro uniformizado, de queixo grande, boca torta, apenas um olho bom ("Popeye" se traduz literalmente algo como "olho furado" ou "arrancado", embora a partir de um momento ficou claro que ele tinha os dois olhos, apenas mantinha um deles fechado), fumando um cachimbo, com braços e panturrilhas desproporcionalmente fortes, que obtém uma super força quando come espinafre enlatado. Cercado de personagens como Olívia Palito, Brutus, Dudu, Vovô Popeye, Gugu, Castor, Bruxa do Mar, metia-se em aventuras onde, inevitavelmente, resolvia seus problemas comendo espinafre e fazendo-se valer da força física.

A Thimble Theater foi criada em 1919, com histórias curtas de no máximo uma dúzia de quadrinhos. Antes de Popeye, as estrelas da publicação eram Olívia, seu irmão Castor ("Olive Oyl" e "Castor Oyl", brincadeira com "azeite" e "óleo de mamona"), e Harold Hamgravy, que fazia o par romântico-cômico com Olívia. A tira evoluiu de um humor de costumes para pequenas aventuras cômicas, em que Olívia e Hamgravy se metiam em enrascadas com as loucas empreitadas de Castor. Na história publicada em 17 de janeiro de 1929, Castor planeja ir de navio até a Ilha dos Dados (Dice Island) para quebrar a banca no cassino local se aproveitando da sorte provida pelas penas de Berenice, a Galinha "Whiffle" (uma galinha mágica que aparecia recorrentemente; whiffle era o som que ela reproduzia). Precisando de um marinheiro para os levar até lá, Hamgravy encontra um marinheiro feio e mal humorado no porto, e pergunta se ele é um marinheiro; "Você achou que eu fosse um cowboy?", respondeu. "Está contratado". Popeye, que ainda não tinha nome, apenas rema o bote até o navio, e é apresentado como o único membro da tripulação. A história se desenrolou por algumas edições, até que, semanas depois, quando a trupe retorna da ilha, Popeye reaparece, e é baleado por um capanga do dono do cassino; porém ele acaricia Berenice, e a boa sorte faz com que sobreviva. Como não tinha a intenção de tê-lo como personagem regular, Segar deixou de usá-lo nas suas tiras seguintes. A reação do público foi imediata, e Popeye retornaria pouco depois.

Segar contava que Popeye havia sido inspirado em um valentão da sua cidade natal, Chester, Illinois, chamado Frank Fiegel - um sujeito bruto, com queixo e mãos grandes, cachimbo no canto da boca, que brigava por qualquer coisa. Com a fala enrolada, gabava-se de proezas físicas impossíveis. Após o sucesso do personagem, Segar enviava a Fiegel, já idoso, uma quantia em dinheiro todos os meses até a sua morte.

A boa recepção levou Segar a aumentar o papel de Popeye, a ponto de substituir Hamgravy como par romântico de Olívia (que inicialmente desprezava, e mesmo depois desdenhava e traía frequentemente o marinheiro), também envolvido nos esquemas de Castor para enriquecer facilmente, mas aos poucos conduzindo os enredos em torno de si mesmo. Logo são introduzidos o obeso Dudu, com seu apetite compulsivo por hambúrgueres, que ele promete sempre "pagar na terça" (o nome original, J. Wellington Wimpy, pode ter dado origem ao vocábulo wimp, que significa "frouxo" ou "chorão"), Eugene, o Jeep, um animal mágico vindo da África, a ranzinza Bruxa do Mar, Alice, o Monstro (uma mulher gigante e selvagem frequentemente empregada como capanga da Bruxa), Gugu, o bebê que um dia chegou pelo correio e é criado como filho de Popeye e Olívia, e outros personagens menores. As histórias eram complexas e exploravam características particulares de cada personagem. Em 1932 os quadrinhos foram publicados pela primeira vez no Brasil, no jornal carioca Diário de Notícias. Ali, os personagens ganharam nomes "naturalizados" que não duraram muito tempo: Popeye era "Brocoió", Olívia era "Serafina", e Gugu era "Zezé" (este se manteve assim até nas primeiras dublagens na década de 1950).

Em 1933, dentro do bloco de desenhos da Betty Boopy exibido nos cinemas, Popeye fez sua estreia em animação - até então, seu arqui-rival Brutus, com quem disputava o amor de Olívia, havia aparecido nos quadrinhos apenas uma vez, e o consumo de espinafre era esporádico. Nos desenhos animados, Popeye transformava-se numa espécie de super-herói - incrivelmente forte, mas falível, fundamentalmente humano. A dublagem a partir de de 1935 passou para a voz de Jack Mercer, que inseria, com a dicção afetada das legendas dos quadrinhos, falas e comentários com a voz do marinheiro que não estavam roteirizados nem sincronizados com os movimentos da boca (como se ele murmurasse), provocando gargalhadas que os produtores não esperavam. No Brasil, foi interpretado por Orlando Drummond, que conservava os maneirismos de Mercer.

Como Popeye se tornasse um fenômeno de audiência, ele logo se tornaria um veículo muito visado de propaganda. A peculiaridade do marinheiro tornar-se super forte (às vezes, meramente auto-confiante) comendo espinafre provocou uma explosão nas vendas da hortaliça. Em Crystal City, Texas, cuja comunidade prosperava do plantio de espinafre, foi erigida uma estátua de Popeye em 1937. Hambúrgueres também passaram a ser populares fora dos EUA em parte pelo apetite de Dudu. Eugene, o Jeep, animal mágico e indestrutível, parece ter sido a origem do famoso veículo militar produzido para o exército americano dois anos após a introdução do personagem (o código do projeto do veículo era "GP", ou "gee pee", mas a associação entre os dois Jeeps era inevitável). Popeye, sendo um marinheiro, era perfeito para transmitir mensagens patrióticas aos cidadãos e soldados, sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial.

Nos anos 1940, não raro, Popeye ia em aventuras contra nazistas ou japoneses, das quais saía triunfante com a ajuda do espinafre ao som da balada tema composta por Sammy Lerner, que começa na sua versão brasileira com "Eu sou o marinheiro Popeye". Um desenho produzido em 1942, em que Popeye está preso a um navio como castigo por ter pulado de um avião sem paraquedas, e cruza o caminho com um bombardeiro japonês, cujo piloto é representado com lentes grossas e grandes dentes, e, ao ser abatido, usa uma sombrinha oriental como paraquedas até aterrissar numa barcaça cheia de japoneses que são idênticos a ele. No final, os japoneses são espancados por um Popeye caracterizado como a Estátua da Liberdade e encarcerados - na gaiola, eles se "transformam" em ratos. Este desenho, junto com outros da mesma época, foi banido nos Estados Unidos por seu conteúdo racista.

De fato, o papel político que os super-heróis de capa e máscara preencheriam durante a Segunda Guerra e a Guerra Fria ainda estava vago; quando surgiram em profusão na década de 1930, Popeye já era imensamente popular. Eventualmente, super-heróis representando ideais físicos e morais da nação americana - em oposição ao tipo falastrão e desengonçado de Popeye - acabariam relegando o marinheiro para o campo da comédia voltada ao público infantil. A violência física, que até os anos 70 tinha um papel central na resolução de problemas - inclusive contra mulheres, como Bruxa do Mar, Alice, e até mesmo Olívia - diminuiu de intensidade a partir da produção de uma nova série em 1978, nos estúdios Hanna-Barbera.

Com restrições à violência, muito das características de Popeye e dos personagens que o cercam perderam significado. Em 1980 foi filmado Popeye, com Robin Williams como o personagem-título, um filme que uma criança veria com estranhamento - uma comédia musical fortemente teatral, com tons de drama que oscilam entre a exploração infantil e a busca pelo pai (o Vovô Popeye) e personagens com os quais ninguém com menos de 50 anos na época estava familiarizado, como os originais Castor e Hamgravy. Eventualmente Popeye perderia audiência para personagens e linguagens mais familiares às crianças do início do século XXI.

E.C. Segar não chegou a ver o apogeu nem usufruir da popularidade do seu personagem, vindo a falecer em 1938. Mesmo existindo em segundo plano, Popeye continua a ser um personagem facilmente reconhecível, uma relíquia dos primeiros anos dos desenhos animados, das quais sobrevivem até nós (igualmente sem o mesmo brilho, em maior ou menor grau) o Gato Félix e o Mickey Mouse, por exemplo (ou a própria Betty Boopy, embora seja mais uma marca do que um personagem de cartum ou animação nos dias de hoje). Popeye deixou sua marca na cultura, em todas as mídias e formatos possíveis - no Brasil, foi adaptado em cantigas de roda. Ele pode ser visto como precursor dos super-heróis que viriam depois, como Superman. Na medicina, a ruptura dos tendões que prendem os bíceps ao ombro, levando à contração súbita do músculo, é conhecida como "músculo de Popeye", em alusão ao muque que exibia quando comia espinafre. Aliás, em 2010 um trabalho científico publicado na Tailândia indicou que crianças que assistiam Popeye tinham mais facilidade em aceitar espinafre na refeição do que por qualquer outro método de persuasão. A própria língua inglesa herdou de Popeye as expressões "wimp", "Jeep" (explicados acima) e "goon" ("capanga", em alisão a Alice "the Goon"). Existem mais de 630 desenhos animados, quatro longas-metragens, 200 episódios de rádio (dos quais cerca de 20 foram preservados), e milhares de publicações. Popeye ainda é publicado como tira em alguns poucos jornais, mas no Brasil um gibi com reedições do personagem é publicado pela Pixel Media desde 2016.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

A Primeira Guerra da Abissínia

Em 13 de janeiro de 1895, a Itália venceu a Batalha de Coatit, na Eritréia, contra forças leais ao Império da Etiópia. Foi a primeira batalha da Primeira Guerra da Abissínia, travada entre os dois países pelo controle daquela parte do Chifre da África.

A Primeira Guerra Ítalo-Etíope, ou Guerra da Abissínia, foi uma consequência do imperialismo do século XIX que culminaria na Partilha da África, e suas causas são bem convolutas: o Egito, protetorado do Império Otomano com alto grau de autonomia, começou a se mover para construir um império para si próprio na África, tomando partes do Sudão e conquistando a Eritreia. O Egito também tentou conquistar a Etiópia, mas fracassou. Uma grave crise econômica no último quartel do século XIX levou o Egito a abandonar a Eritreia, e em 1882 forças britânicas chegaram ao Cairo para uma intervenção no país - efetivamente colocando-o sob protetorado britânico.

Acontece que o Egito, desde as Guerras Revolucionárias, permaneceu na esfera política da França, e os franceses buscavam meios de remover os britânicos do país e restabelecer a sua influência local. Em 1869 foi concluído o Canal de Suez, o que tornava o Mar Vermelho o principal canal comercial entre Europa e Ásia, e a França passou a investir no estabelecimento de entrepostos, sobretudo em Djibuti, onde estava centrada a colônia da Somália Francesa - se a França conseguisse controle sobre o Mar Vermelho, o Canal de Suez e o Egito como um todo teria pouca valia aos britânicos. A Eritreia foi abandonada pelo Egito, e para evitar que a França assumisse controle do país, mas sem o ônus de estabelecer toda a administração colonial necessária, os britânicos manobravam diplomaticamente para que algum aliado assumisse a tarefa. Eles encorajavam o imperador etíope João IV, mas um tratado de 1884 já assegurava seu acesso ao porto eritreu de Massawa, e ele se dava por satisfeito. Então os britânicos voltaram-se para a Itália.

A palavra corrente na Itália no final do século era de ultraje pela anexação de Túnis pelos franceses. Túnis era possessão otomana, mas por questão de proximidade os italianos consideravam que, se a África devesse ser partilhada entre os países europeus, a Tunísia deveria estar sob a sua esfera de influência por questões geográficas e históricas. Além do sentimento anti-francês, havia uma expectativa na Itália de uma "virada" na sua história desde a sua unificação em 1861, porém pouco progresso podia ser sentido pois a maioria da população ainda vivia em situação de pobreza. Em 1885, a chegada de forças italianas em Massawa foi anunciada como o início de uma nova era.

A Etiópia fora a nação africana que sobreviveu às ondas expansionistas de árabes, turcos, e europeus, e mantivera continuadamente sua independência política. De fato, os etíopes conservavam o cristianismo ortodoxo como religião desde os seus primeiros séculos em meio a um mundo islâmico no seu entorno, e a nobreza etíope considerava-se herdeira direta do rei israelita Salomão através de sua amante Salomé (a bíblica "Rainha de Sabá"). Enquanto a Itália operava o porto de Massawa, Menelik II vencia uma guerra de sucessão contra o filho de João IV, Ras Mengesha (conquistando no caminho as regiões eritréias de Amara e Tigray, efetivamente conquistando a Eritreia) e era coroado Imperador da Etiópia. Logo em seguida ele assinou um tratado com o governo italiano em que cedia aos europeus o controle sobre a Eritreia em troca do reconhecimento de Menelik como soberano na Etiópia. Ou assim ele pensava.

Mas havia um porém: o texto em italiano e amárico não dizia a mesma coisa nas duas línguas. Em italiano, a Etiópia se tornava seu protetorado; em amárico, o mesmo trecho descrevia um dispositivo em que Menelik poderia negociar com qualquer nação européia por intermédio dos italianos. No frigir dos ovos, todas as nações europeias, com exceção do Império Otomano (que ainda se considerava o legítimo senhor da Eritreia) e da Rússia (que desaprovava o domínio de um país cristão ortodoxo por outro católico), reconheceram a versão italiana do tratado. Os apelos de Menelik à Grã-Bretanha e à Alemanha foram formalmente repelidos em respeito ao seu entendimento do tratado. Eventualmente Menelik, que não lia italiano (ao contrário do redator do tratado, o embaixador em Adis Abeba Pietro Antonelli, que era fluente em amárico) descobriu que havia sido enganado, o tratado foi cancelado unilateralmente.

Uma guerra entre a Itália (uma nação subdesenvolvida na época) contra a Etiópia na África poderia ter sido observada apenas superficialmente como curiosidade, ou como uma extravagância da jovem nação européia. Mas na realidade ela mexeu com antigas alianças e interesses geopolíticos maiores do que os dois países beligerantes. A Itália, por exemplo, que compunha uma Tríplice Aliança com Alemanha e Império Austro-Húngaro, fragilizou a composição dessa aliança ao aceitar a corte feita pela Grã-Bretanha, contra a qual a aliança se opunha. A França, que exigia uma posição de influência na Eritreia, negociava com a Itália a segurança da sua possessão na Tunísia, enquanto a Rússia, sua aliada, enviava armas e suprimentos para a Etiópia, esperando montar ali uma cabeça de ponte para uma possível expansão em direção à África - em 1894, foi a Rússia a primeira nação européia a denunciar o tratado.

As hostilidades começaram em 1893, quando Menelik repudiou o tratado. A Itália então moveu-se para assegurar territórios em volta das terras já ocupadas, tentando tomar Tigray com apoio de lideranças locais, rivais do imperador etíope, mas eles subestimaram o sentimento de unidade dos povos etíopes e eritreus em torno do seu imperador (ao qual preferiam em lugar de invasores europeus) - um deles, o próprio Ras Mengesha, filho e herdeiro natural do trono etíope, apareceu em Adis Abeba meses antes para manifestar sua submissão pública ao antigo rival.

O Primeiro Ministro italiano, Francesco Crispi, descrito como um sujeito presunçoso e tolo, acreditava que a nação africana, composta por "negros" (com a conotação negativa que isso podia ter), seria incapaz de se defender de uma máquina de guerra moderna. De fato, nos dois primeiros anos de guerra os italianos ocuparam a capital de Tigray, Adwa, e desbarataram as forças de Mengesha, se apropriando de armas e documentos estratégicos. A França ainda recusou o apoio pedido por Menelik e cortou relações com o país, deixando-o isolado. A vitória inicial em Coatit foi na verdade para repelir as forças de Mengesha, que invadiram a Eritreia - repelir o invasor elevou em grande medida a moral dos italianos.

As regiões de Tigray e Amara, ocupadas em rendidas pelos europeus, ficam na Eritreia: os etíopes propriamente ditos (um grande número de grupos étnicos unidos há milênios sob a figura do imperador) ainda não haviam sido testados. Menelik investiu toda a economia do país na mobilização de um exército, aproveitando-se das armas compradas aos russos (ou das que haviam chegado, pois os britânicos conseguiram impedir que um carregamento atravessasse a Eritreia até a Etiópia). Uma grande manifestação com quase 200 mil soldados recrutados de todas as partes do país em Adis Abeba teve enorme efeito motivador.

Em 1895 os italianos entraram no norte da Etiópia, mas foram expulsos de volta na batalha de Amba Alagi em dezembro. Menelik e sua esposa, a imperatriz Taytu Betul (diz-se que Menelik era um homem excessivamente diplomático, e ela lhe prestava o serviço de dizer "não" em situações difíceis) comandaram pessoalmente a contra-ofensiva etíope em Tigray. Em janeiro, após várias tentativas, conseguiram a rendição dos italianos no forte de Mekele, na fronteira com a Eritréia. Menelik permitiu que os soldados rendidos retornassem à sua base, sob comando do General Oreste Baratieri, cedendo mesmo a eles animais de carga. O gesto de generosidade teve outro objetivo: Baratieri esperaria os soldados retornarem para planejar o próximo passo, e isso daria tempo de Menelik encastelar-se nas montanhas perto de Adwa. Como resultado, Baratieri (cujo efetivo não chegava a 25 mil homens) ficou imóvel, relutando em avançar contra uma posição desvantajosa. Foi por pressão do primeiro ministro Crispi que o general decidiu agir.

Em 1 de março de 1896, cerca de 18 mil italianos e aliados nativos atacaram de madrugada os cerca de 100 mil etíopes em Adwa, esperando pegá-los ainda dormindo; mas os defensores acordavam cedo para os serviços religiosos, e estavam alertas e cientes do inimigo. Sucessivas ondas de etíopes esmagaram as brigadas italianas. Naquele dia, cerca de 12 mil soldados morreram de ambos os lados - perdas maiores do que qualquer batalha na Europa no século anterior. Os italianos presos pelos etíopes foram tratados da melhor maneira possível - já os presos eritreus que lutaram ao seu lado foram julgados traidores e tiveram as mãos decepadas.

Depois disso, Menelik negociou o tratado de Adis Abeba com a Itália e delimitou as fronteiras entre Etiópia e Eritréia, assegurando as posições italianas no país vizinho e forçando a Itália a reconhecer a independência da Etiópia. A vitória sobre um exército europeu fez com que ingleses e franceses reconhecessem o país como uma potência regional e negociassem seus próprios tratados com eles. O país africano permaneceria soberano até 1936, quando a Itália fascista novamente avançaria sobre a Etiópia, desta vez como uma forma de testar a máquina de guerra que empregaria três anos depois, na Segunda Guerra Mundial.

Neste dia também: Espanha visigótica

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Queda de Caiena

Em 12 de janeiro de 1809, uma força marinha conjunta do Império Português e da Inglaterra tomou o controle de Caiena, capital da Guiana Francesa, brevemente anexando-a ao império colonial português em represália à invasão de Portugal por Napoleão.

A vinda da família real portuguesa ao Brasil em 1808, junto com toda a estrutura administrativa do Império Português, foi uma medida preventiva do príncipe regente João diante da iminente invasão francesa a Portugal. Embora manobrasse no campo diplomático, as relações indissolúveis com a Inglaterra (João, preso aos ingleses por tratado, até cogitou com o rei George III que os dois países declarassem uma guerra de fantasia para evitar a hostilidade com a França) e a volatilidade com que Napoleão tratava aliados de ocasião convenceram o príncipe português de que o mais seguro seria mover a corte para um lugar onde não pudesse ser capturada - o Rio de Janeiro funcionava como capital do império, enquanto o general Junot marchava sobre a casca oca que era Portugal, impedindo efetivamente que o império inteiro caísse. Isso não significa que Don João, em seu santuário tropical, tenha se mantido alheio às Guerras Napoleônicas.

Como a guerra envolvesse as metrópoles de vastos impérios coloniais, como Portugal, Inglaterra, Espanha, Holanda, ela era travada também longe da Europa. Em 1802, Napoleão, então cônsul da França, enviou um exército para esmagar a Revolução Haitiana (onde ex-escravos conquistaram a independência do país), mas foi notavelmente derrotado. Os ingleses, que até 1808 adotavam uma postura passivo-agressiva diante da incapacidade de uma invasão por terra por parte dos franceses e buscava furar o Bloqueio Continental aqui e ali (o fluxo de comércio com os Estados Unidos e o Brasil anulavam os danos do bloqueio na Europa), na América investiram agressivamente contra as colônias francesas, procurando estrangular o império napoleônico e, ao mesmo tempo, assimilar novas possessões. Na América do Norte, onde os britânicos eram senhores de quase tudo que hoje é o Canadá e os franceses tinham controle sobre o Quebec e uma enorme faixa de terra a oeste do Mississipi (a colônia da Louisiania, que recuperaram das mãos dos espanhóis por meio de um tratado em 1800 e que venderam amigavelmente aos Estados Unidos para levantar fundos para a guerra). Ali, ambos os lados, quando se viam incapazes de guerrear com seus próprios exércitos, armavam tribos nativas para que pudessem atacar fortes e colônias e fustigar o inimigo. Os Estados Unidos tentavam se manter alheios, mas conforme a guerra prosseguia, eles se viam mais envolvidos, até entrar em guerra aberta com o Canadá britânico por questões de fronteira em 1812.

As principais bases de operação de Napoleão no oeste do Atlântico eram os portos fortificados no Caribe, mantidos em cheque pela superioridade naval da marinha britânica. Na América do Sul, a presença francesa estava na Guiana, "pequena" faixa de terra ao norte da Bacia Amazônica usada basicamente para o cultivo de cana-de-açúcar ("pequena" em relação ao Brasil, pois possui cerca de 15% da extensão territorial da França continental). Caiena, sua capital situada na costa, era uma dessas cidades fortificadas onde navios da marinha francesa, piratas e corsários poderiam encontrar acolhida.

A Inglaterra precisaria suprimir o controle francês sobre esse ponto se quisesse assegurar suas rotas comerciais com a América. A crise causada pela interferência britânica nas colônias francesas no Caribe fizeram com que vários de seus governadores enviassem à França pedidos de socorro, então os ingleses sabiam que era a hora de atacar. Contudo, com grande parte da sua marinha comprometida com a patrulha do litoral norte-americano e Caribe, além dos navios empregados na proteção do território na Europa, os ingleses apelaram para seu único aliado incondicional que poderia agir na América do Sul: Portugal.

A França invadira Portugal em 1808 e tomara Lisboa apenas dois dias depois da família real ter zarpado. O general Junot ainda podia ver os últimos navios da esquadra portuguesa sumindo no horizonte. Isso frustrou os planos de depor a rainha e coroar algum títere, como Napoleão vinha fazendo em outras partes da Europa. A própria ocupação do território português, embora tenha sido invadido praticamente sem resistência, ficou impossibilitada porque os camponeses no caminho de Junot foram removidos de suas propriedades e tudo que podia ser aproveitado pelo invasor fora queimado. Também havia resistência no campo e nas cidades, de maneira que a ocupação francesa nunca chegou a ser tranquila. Mesmo a Espanha, sua aliada, não permaneceria colaboracionista por muito tempo.

João, que partira de sua terra com enorme pesar, tomava providências para que a nova capital, no Rio de Janeiro, tivesse condições de proteger a coroa em caso de uma improvável invasão francesa, ou, ao menos, pudesse assegurar uma autonomia quanto ao acesso a recursos estratégicos caso as rotas oceânicas fossem bloqueadas. Entre suas providências, ordenou o estabelecimento de toda a cadeia de produção de pólvora, e a fundação de um jardim de aclimatação para o cultivo de especiarias, o atual Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

A marinha portuguesa no Brasil era tímida; apenas quatro naus haviam deixado Portugal junto com a família real, e os navios aqui eram apenas usados para patrulha e transporte, muito poucos aptos para a guerra. Porém, como a Inglaterra também estava limitada, o almirante Sidney Smith solicitou ao governo português o envio dos navios de que podia dispor para atacar Caiena. Dom João viu ali uma oportunidade (e os ingleses sabiam que veria) de não apenas fustigar a França, mas também de jogar para a mesa de negociações a questão da fronteira entre a Guiana Francesa e aquela parte do Grão-Pará que seria conhecida em tempos coloniais como Guiana Brasileira (ou Portuguesa), e que hoje constitui o estado do Amapá: desde fins do século XVIII, a França conseguira, através de tratados, avançar a fronteira da Guiana para além do rio Oiapoque, tomando o que hoje é o oeste e o norte do Amapá. Portugal pretendia recuperar essas terras e firmar a fronteira ao longo do Oiapoque.

Dom João respondeu mobilizando quatro naus: o Voador, o Vingança (as duas embarcações munidas de canhões, sendo que a última tinha no seu histórico a captura de um navio pirata a serviço da França em 1801), o Infante Dom Pedro, e o Leão, carregando 550 soldados sob comando do tenente-coronel Manuel Marques. Eles comporiam uma esquadra sob o comando do almirante James Lucas Yeo. A esquadra partiu de Belém no começo de dezembro de 1808, e ainda naquele mês bombardeou as colônias costeiras de Oiapoque e Aprouague.

No dia 6 de janeiro de 1809, diante das fortificações de Caiena, o almirante Yeo optou por atacar por terra ancoradouros ao longo do rio Maruhy para atrair soldados franceses para uma batalha campal. Ingleses e portugueses no primeiro momento tomaram duas fortificações e renderam cerca de 90 soldados dos 450 que guardavam a cidade. À medida em que os invasores avançavam, tomando mais fortes ao longo do Maruhy, o governador de Caiena, Victor Hugues respondia de maneira desastrada, sem conhecimento da posição ou do tamanho do inimigo, ora oferecendo combate em desvantagem, ora superestimando e recuando diante de forças bem menores. No dia 9, o almirante Yeo liderou pessoalmente o ataque à residência do governador, e iniciou a marcha para a cidade propriamente dita. No dia 12, Hugues assinou sua rendição. Dezessete soldados morreram nos confrontos, apenas um deles do lado anglo-português.

A entrada das tropas na cidade estava programada para o dia 14, mas no dia 13, uma enorme fragata francesa, o Topaze, se aproximou do porto. Desfalcada do Infante Dom Pedro, a esquadra anglo-portuguesa só dispunha da canhoneira britânica Confiance em posição de defesa, porém com metade da capacidade de fogo e sem tripulação. Se o Topaze, com seus canhões e um reforço para a guarnição local aportasse, a operação seria um fracasso. O capitão do navio, George Yeo, irmão do almirante, rapidamente contratou negros libertos locais para tripular o navio e manobrá-lo audaciosamente para uma posição de combate. Como o Topaze estivesse carregando mais de mil barris de farinha, seu capitão recebera ordens de evitar combate se isso pusesse a carga em risco. Então ele deu meia volta e sumiu no horizonte - o Topaze foi afundado dez dias depois num confronto com ingleses perto da ilha de Guadalupe.

No dia 14, enfim, a cidade abriu os portões e se rendeu. Soldados foram presos e armas apreendidas, e a administração entregue por Hughes e Yeo ao Marquês de Queluz. Ao invés de integrada à colônia do Brasil, foi criada ali a colônia de Caiena e Guiana. A colônia existiu sob controle português até 1815, quando os termos da sua devolução e o estabelecimento da fronteira ao longo do Oiapoque foram acertados entre o rei Luis XVIII e o príncipe regente no Congresso de Viena. Apenas em 1817 uma delegação francesa chegou a Caiena para tomar posse da colônia.

A breve presença portuguesa na Guiana Francesa, além de resultar no estabelecimento da fronteira entre o território e o Brasil, teve como consequência curiosa o enriquecimento dos jardins botânicos no Brasil. Os franceses haviam investido no plantio de especiarias na Guiana, e perto de Caiena havia um complexo de jardins de plantas de interesse econômico e estratégico. De posse desses jardins, os portugueses providenciaram o transporte de mudas e sementes de craveiros, caneleiras, pimenteiras, palmeiras, noz-moscada, frutas-pão, abacateiros, além de uma variedade de cana-de-açúcar local superior à que se plantava no Brasil, a cana-caiena, totalizando 86 espécies inexistentes no Brasil que foram remetidas a Belém, e de lá ao novo Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

Neste dia também: Guerra de Biafra

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Briga de Torcidas

Em 11 de janeiro de 532, uma briga de torcidas durante uma corrida de carruagens em Constantinopla degenerou em dias de confrontos violentos pela cidade e numa tentativa de golpe de estado contra o Imperador Justiniano, conhecida como a Revolta de Nika.

Durante os tempos do Império Romano, e depois no Império Bizantino, competições esportivas eram espetáculos populares de primeira grandeza, gradualmente suplantando em tamanho e importância as encenações épicas de mitos e eventos históricos importantes. Competições atléticas, lutas com gladiadores, corridas de cavalo e carruagens. Atletas, lutadores e corredores eram patrocinados por organizações sociais, ou facções, que retiravam do interesse popular e sucesso de seus pupilos uma gorda margem de lucros. Eram como os clubes que nos são familiares. E, tanto lá como cá, cada facção atraía torcedores para suas bandeiras. E, tanto lá como cá, em muitos casos as competições acobertavam transações ilícitas e jogos políticos, e gangues sob uma ou outra bandeira eram empregadas para proveito ou prejuízo de terceiros.

Em Roma, as facções eram quatro, identificadas por cores: vermelhos, azuis, verdes e brancos. No Império Bizantino, as facções atuavam basicamente nas corridas de carruagem, e eram apenas duas: Azuis e Verdes. Numa era e lugar onde a participação popular na política era muito limitada, as facções tomavam ares de partidos políticos munidos de milícias que tomavam partido publicamente de assuntos de interesse público, como a nomeação ou eleição de políticos e herdeiros do trono e questões teológicas - para apaziguar uma revolta ou afirmar-se diante de uma ou outra facção, políticos de alto escalão, e mesmo o imperador, defendiam publicamente alguma bandeira, até porque o Hipódromo ficava ao lado do Palácio Imperial em Constantinopla. Aristocratas, políticos, empresários do ramo e cidadãos ricos assumiam posições de comando dentro das facções. O Imperador Justiniano torcia pelos Azuis. As corridas no Hipódromo eram pequenos campos de batalha virtual pelo poder em Bizâncio.

Justiniano era um homem inseguro, talvez tímido, o que se refletia na proeminência de sua esposa Teodora nas decisões políticas e no trato com a Igreja Ortodoxa. É possível associar à habilidade de Teodora a manutenção de Justiniano no trono em boa parte do seu reinado. Mas Justiniano tinha uma virtude: sabia escolher como poucos os mais capazes para o desempenho de cada função. Desta maneira, ele estabilizou o antigo Império Romano do Oriente (atacado por todos os lados por germanos na Europa e persas na Ásia), reconquistando territórios que antes pertenciam à metade ocidental do Império sob controle germano (Cartago, parte da Espanha, Sicília, boa parte da Itália, incluindo a própria Roma, sob a liderança competente de seu sobrinho Belisário). Contra os persas, que antagonizavam Bizâncio no leste, Justiniano chegava a um acordo de paz que lhe permitiria aliviar impostos e investir na reestruturação dos territórios conquistados.

O outro gume da faca é que, nomeando pessoas competentes para cargos importantes, Justiniano negligenciava o poder de influência de aristocratas na administração do império. As famílias nobres ressentidas por não figurarem no controle das instituições inflamavam a população contra o que acusavam ser uma política abusiva de impostos, empregados para financiar a expansão do Império e a contenção da fronteira oriental. Ao invés de negociar com os aristocratas descontentes, Justiniano apostou no sucesso da política externa para reverter a situação internamente a seu favor.

Porém, toda a campanha contra sua política se manifestava de maneira progressivamente violenta a cada evento no Hipódromo. Semanas antes da Revolta de Nika, verdes e azuis se envolveram numa onda de confrontos, onde sete deles foram presos sob acusação de homicídio e condenados à pena de morte. No dia das execuções, dois presos, um verde e um azul, escaparam e se refugiaram na Igreja de São Laurêncio. Partidários dos verdes e azuis protestavam pela sua liberdade em torno da igreja, mas Eudaemon, o prefeito da cidade, cercou-a com soldados e os arrancou de lá. A situação durou três dias, aumentando a tensão na capital.

O terceiro dia coincidiu com os idos de janeiro, data em que Justiniano declarara grandes corridas no Hipódromo, em que o próprio deveria estar presente. Durante o evento, torcedores das duas facções (vestindo-se com as cores correspondentes e agrupando-se em setores distintos das arquibancadas), em trégua previamente acordada, clamavam pelas vidas dos fugitivos. Justiniano, na sua tribuna, não dava resposta aos apelos. Lá pela décima segunda corrida do dia, alguém nas arquibancadas gritou "Vida longa aos Verdes e Azuis". De repente, as duas facções tornaram-se uma só, e seus membros trocavam entre si gritos de "Nika", "Nika" ("Vença" em grego, daí o nome da revolta). Justiniano recolheu-se ao seu palácio. As pessoas saíam do Hipódromo e inundavam as ruas, e incêndios e saques rapidamente tomaram lugar. Grande parte da massa permaneceria por dias no Hipódromo, por conta da sua proximidade com o palácio e como via de acesso ao imperador.

De forma relutante e desastrada, Justiniano acabou autorizando a soltura dos dois torcedores fugitivos, mas a revolta havia tomado outro rumo: antes de atendida sua ordem, os revoltosos se reuniram na prefeitura, e como Eudaemon se recusasse a soltar os prisioneiros, as pessoas atacaram os guardas e os arrastaram para fora. Agora a nova massa, recém empoderada, começou a exigir a substituição de três mandatários impopulares (incluindo Eudaemon). No dia seguinte Justiniano tentou dar reinício às corridas, e ao público concordou com suas demandas.

Mas a revolta assumiu uma dimensão mais sinistra: não eram apenas cidadãos de Constantinopla que reclamavam de uma situação política desfavorável e explodia no único canal de comunicação com o poder de que dispunham: havia uma grande massa de camponeses que, arruinados pela política fiscal do império, emigraram para a capital em situação de extrema pobreza, e mais do que novos nomes para cargos públicos, exigiam vingança contra os que percebiam serem causadores da sua miséria. E, manobrando essa massa, senadores ansiosos não por nomeações, mas pelo próprio trono bizantino. A incapacidade de pacificar pela negociação levou ao emprego da força, mas como os soldados enviados eram incapazes de conter os tumultos, isto foi visto pela população como um ato de hostilidade. Quando Justiniano apareceu em público novamente (e as revoltas já tomavam ares de guerra civil, com confrontos violentos, mortes e destruição por toda a cidade), com uma cópia do Evangelho nas mãos, prometeu atender a todas as exigências. Mas o povo respondia com "Viva Hipácio!" (sobrinho do seu antecessor Justino). Suspeitando dos senadores que se encastelavam no palácio consigo, Justiniano ordenou que eles saíssem, junto com qualquer um que questionasse a ordem - fazendo com que os que ainda não haviam tomado partido se juntassem às fileiras em ebulição.

Cercado, Justiniano apelaria para seu exército, leal e endurecido pelas recentes conquistas no ocidente, mas pensava em fugir pelo mar. Neste momento, Teodora levantou-se e disse que a fuga era inoportuna, e que trocaria a segurança do exílio pela morte - e que um palácio seria uma sepultura mais do que digna para a realeza. Isso parece ter impressionado Justiniano e seus apoiadores, porque imediatamente ele tomou o controle sobre as ações para debelar a revolta: primeiro enviou um eunuco para espalhar dissenção entre as facções, espalhando boatos de que uma delas pretendia apoiar um ou outro para o trono, e que conspiravam mutuamente (ele também subornada lideranças dos azuis para lembrá-los de que Justiniano pertencia à sua facção). Belisário, no comando do exército, se encarregaria de enfrentar, perseguir e executar quem resistisse; cercando-os no Hipódromo com os soldados que quase destruíram o reino Ostrogodo na Itália, Belisário teria ordenado a morte de até 30 mil pessoas, basicamente civis armados com o que encontravam à mão.

Hipácio foi executado e senadores rebeldes exilados. Mais da metade da cidade foi destruída, incluindo a monumental catedral de Santa Sofia. Graças à altivez decisiva de Teodora, Justiniano agora via-se livre para dar sequência à sua ambição, reunir o Império Romano - porém a arrastada campanha na Itália, desfalcada do seu principal general Belisário (tratando nos anos seguintes dos conflitos com a Pérsia), e a alta carga de impostos, começaria a causar revoltas nas províncias recém conquistadas no oeste. A demanda excessiva por recursos e a incapacidade de arrecadá-los e administrá-los transformou o renovado Império Bizantino num pão muito grande com pouca manteiga em cima, e logo após a morte do imperador, incapaz de se adaptar à dinâmica das mudanças sócio-políticas no oeste e ao Islã no leste, ele tomaria um caminho lento e inexorável à sua destruição final, em 1453, quando os turcos tomaram Constantinopla.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Bombardeio de Salvador

Passando rapidamente para resgatar de um post curto de facebook de quatro anos atrás: o ultimato em 10 de janeiro de 1912 do Presidente da República, Hermes da Fonseca, à presidência da Assembléia Legislativa da Bahia, que resultaria, dois dias depois, no bombardeio por forças federais à cidade de Salvador.

Para assegurar a autonomia do estado sobre a eleição do seu governador, os conservadores aliados de Ruy Barbosa determinaram a mudança da capital baiana para Jequié, uma cidade à época atrasada, sem estradas pavimentadas nem telégrafo, impedindo uma ação rápida do governo federal para impedir qualquer decisão tomada dali para frente. O ato foi contestado na Justiça Federal, que determinou que o presidente tomasse providências para assegurar a legalidade do processo político (o que significava que Hermes da Fonseca teria carta branca para prosseguir com a sua política de apoiar a eleição ou nomear governadores aliados, como J.J. Seabra, seu ministro de Viação e Obras Públicas e favorito ao cargo). 

Aurélio Viana, presidente da assembléia e governador em exercício, ordenou que a polícia tomasse os edifícios públicos para impor resistência ao governo federal. Então o comandante da 7a. Região Militar recebeu ordens para agir com rigor e fazer cumprir a decisão judicial. Viana ignorou um ultimato, e no dia 12/01/1912, os canhões dos fortes ao largo do litoral de Salvador dispararam contra a cidade, destruindo a sede do governo, da polícia militar, a biblioteca municipal (e seus 30 mil volumes), e causando grandes incêndios. Soldados do exército combateram nas ruas e praças soldados do batalhão de artilharia da PM e civis armados. Morreram tantos civis que semanas depois os corpos levados pelo mar ainda apareciam nas praias da Baía de Salvador e arredores.


Neste vídeo, um pouco mais sobre o episódio: