quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Queda de Caiena

Em 12 de janeiro de 1809, uma força marinha conjunta do Império Português e da Inglaterra tomou o controle de Caiena, capital da Guiana Francesa, brevemente anexando-a ao império colonial português em represália à invasão de Portugal por Napoleão.

A vinda da família real portuguesa ao Brasil em 1808, junto com toda a estrutura administrativa do Império Português, foi uma medida preventiva do príncipe regente João diante da iminente invasão francesa a Portugal. Embora manobrasse no campo diplomático, as relações indissolúveis com a Inglaterra (João, preso aos ingleses por tratado, até cogitou com o rei George III que os dois países declarassem uma guerra de fantasia para evitar a hostilidade com a França) e a volatilidade com que Napoleão tratava aliados de ocasião convenceram o príncipe português de que o mais seguro seria mover a corte para um lugar onde não pudesse ser capturada - o Rio de Janeiro funcionava como capital do império, enquanto o general Junot marchava sobre a casca oca que era Portugal, impedindo efetivamente que o império inteiro caísse. Isso não significa que Don João, em seu santuário tropical, tenha se mantido alheio às Guerras Napoleônicas.

Como a guerra envolvesse as metrópoles de vastos impérios coloniais, como Portugal, Inglaterra, Espanha, Holanda, ela era travada também longe da Europa. Em 1802, Napoleão, então cônsul da França, enviou um exército para esmagar a Revolução Haitiana (onde ex-escravos conquistaram a independência do país), mas foi notavelmente derrotado. Os ingleses, que até 1808 adotavam uma postura passivo-agressiva diante da incapacidade de uma invasão por terra por parte dos franceses e buscava furar o Bloqueio Continental aqui e ali (o fluxo de comércio com os Estados Unidos e o Brasil anulavam os danos do bloqueio na Europa), na América investiram agressivamente contra as colônias francesas, procurando estrangular o império napoleônico e, ao mesmo tempo, assimilar novas possessões. Na América do Norte, onde os britânicos eram senhores de quase tudo que hoje é o Canadá e os franceses tinham controle sobre o Quebec e uma enorme faixa de terra a oeste do Mississipi (a colônia da Louisiania, que recuperaram das mãos dos espanhóis por meio de um tratado em 1800 e que venderam amigavelmente aos Estados Unidos para levantar fundos para a guerra). Ali, ambos os lados, quando se viam incapazes de guerrear com seus próprios exércitos, armavam tribos nativas para que pudessem atacar fortes e colônias e fustigar o inimigo. Os Estados Unidos tentavam se manter alheios, mas conforme a guerra prosseguia, eles se viam mais envolvidos, até entrar em guerra aberta com o Canadá britânico por questões de fronteira em 1812.

As principais bases de operação de Napoleão no oeste do Atlântico eram os portos fortificados no Caribe, mantidos em cheque pela superioridade naval da marinha britânica. Na América do Sul, a presença francesa estava na Guiana, "pequena" faixa de terra ao norte da Bacia Amazônica usada basicamente para o cultivo de cana-de-açúcar ("pequena" em relação ao Brasil, pois possui cerca de 15% da extensão territorial da França continental). Caiena, sua capital situada na costa, era uma dessas cidades fortificadas onde navios da marinha francesa, piratas e corsários poderiam encontrar acolhida.

A Inglaterra precisaria suprimir o controle francês sobre esse ponto se quisesse assegurar suas rotas comerciais com a América. A crise causada pela interferência britânica nas colônias francesas no Caribe fizeram com que vários de seus governadores enviassem à França pedidos de socorro, então os ingleses sabiam que era a hora de atacar. Contudo, com grande parte da sua marinha comprometida com a patrulha do litoral norte-americano e Caribe, além dos navios empregados na proteção do território na Europa, os ingleses apelaram para seu único aliado incondicional que poderia agir na América do Sul: Portugal.

A França invadira Portugal em 1808 e tomara Lisboa apenas dois dias depois da família real ter zarpado. O general Junot ainda podia ver os últimos navios da esquadra portuguesa sumindo no horizonte. Isso frustrou os planos de depor a rainha e coroar algum títere, como Napoleão vinha fazendo em outras partes da Europa. A própria ocupação do território português, embora tenha sido invadido praticamente sem resistência, ficou impossibilitada porque os camponeses no caminho de Junot foram removidos de suas propriedades e tudo que podia ser aproveitado pelo invasor fora queimado. Também havia resistência no campo e nas cidades, de maneira que a ocupação francesa nunca chegou a ser tranquila. Mesmo a Espanha, sua aliada, não permaneceria colaboracionista por muito tempo.

João, que partira de sua terra com enorme pesar, tomava providências para que a nova capital, no Rio de Janeiro, tivesse condições de proteger a coroa em caso de uma improvável invasão francesa, ou, ao menos, pudesse assegurar uma autonomia quanto ao acesso a recursos estratégicos caso as rotas oceânicas fossem bloqueadas. Entre suas providências, ordenou o estabelecimento de toda a cadeia de produção de pólvora, e a fundação de um jardim de aclimatação para o cultivo de especiarias, o atual Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

A marinha portuguesa no Brasil era tímida; apenas quatro naus haviam deixado Portugal junto com a família real, e os navios aqui eram apenas usados para patrulha e transporte, muito poucos aptos para a guerra. Porém, como a Inglaterra também estava limitada, o almirante Sidney Smith solicitou ao governo português o envio dos navios de que podia dispor para atacar Caiena. Dom João viu ali uma oportunidade (e os ingleses sabiam que veria) de não apenas fustigar a França, mas também de jogar para a mesa de negociações a questão da fronteira entre a Guiana Francesa e aquela parte do Grão-Pará que seria conhecida em tempos coloniais como Guiana Brasileira (ou Portuguesa), e que hoje constitui o estado do Amapá: desde fins do século XVIII, a França conseguira, através de tratados, avançar a fronteira da Guiana para além do rio Oiapoque, tomando o que hoje é o oeste e o norte do Amapá. Portugal pretendia recuperar essas terras e firmar a fronteira ao longo do Oiapoque.

Dom João respondeu mobilizando quatro naus: o Voador, o Vingança (as duas embarcações munidas de canhões, sendo que a última tinha no seu histórico a captura de um navio pirata a serviço da França em 1801), o Infante Dom Pedro, e o Leão, carregando 550 soldados sob comando do tenente-coronel Manuel Marques. Eles comporiam uma esquadra sob o comando do almirante James Lucas Yeo. A esquadra partiu de Belém no começo de dezembro de 1808, e ainda naquele mês bombardeou as colônias costeiras de Oiapoque e Aprouague.

No dia 6 de janeiro de 1809, diante das fortificações de Caiena, o almirante Yeo optou por atacar por terra ancoradouros ao longo do rio Maruhy para atrair soldados franceses para uma batalha campal. Ingleses e portugueses no primeiro momento tomaram duas fortificações e renderam cerca de 90 soldados dos 450 que guardavam a cidade. À medida em que os invasores avançavam, tomando mais fortes ao longo do Maruhy, o governador de Caiena, Victor Hugues respondia de maneira desastrada, sem conhecimento da posição ou do tamanho do inimigo, ora oferecendo combate em desvantagem, ora superestimando e recuando diante de forças bem menores. No dia 9, o almirante Yeo liderou pessoalmente o ataque à residência do governador, e iniciou a marcha para a cidade propriamente dita. No dia 12, Hugues assinou sua rendição. Dezessete soldados morreram nos confrontos, apenas um deles do lado anglo-português.

A entrada das tropas na cidade estava programada para o dia 14, mas no dia 13, uma enorme fragata francesa, o Topaze, se aproximou do porto. Desfalcada do Infante Dom Pedro, a esquadra anglo-portuguesa só dispunha da canhoneira britânica Confiance em posição de defesa, porém com metade da capacidade de fogo e sem tripulação. Se o Topaze, com seus canhões e um reforço para a guarnição local aportasse, a operação seria um fracasso. O capitão do navio, George Yeo, irmão do almirante, rapidamente contratou negros libertos locais para tripular o navio e manobrá-lo audaciosamente para uma posição de combate. Como o Topaze estivesse carregando mais de mil barris de farinha, seu capitão recebera ordens de evitar combate se isso pusesse a carga em risco. Então ele deu meia volta e sumiu no horizonte - o Topaze foi afundado dez dias depois num confronto com ingleses perto da ilha de Guadalupe.

No dia 14, enfim, a cidade abriu os portões e se rendeu. Soldados foram presos e armas apreendidas, e a administração entregue por Hughes e Yeo ao Marquês de Queluz. Ao invés de integrada à colônia do Brasil, foi criada ali a colônia de Caiena e Guiana. A colônia existiu sob controle português até 1815, quando os termos da sua devolução e o estabelecimento da fronteira ao longo do Oiapoque foram acertados entre o rei Luis XVIII e o príncipe regente no Congresso de Viena. Apenas em 1817 uma delegação francesa chegou a Caiena para tomar posse da colônia.

A breve presença portuguesa na Guiana Francesa, além de resultar no estabelecimento da fronteira entre o território e o Brasil, teve como consequência curiosa o enriquecimento dos jardins botânicos no Brasil. Os franceses haviam investido no plantio de especiarias na Guiana, e perto de Caiena havia um complexo de jardins de plantas de interesse econômico e estratégico. De posse desses jardins, os portugueses providenciaram o transporte de mudas e sementes de craveiros, caneleiras, pimenteiras, palmeiras, noz-moscada, frutas-pão, abacateiros, além de uma variedade de cana-de-açúcar local superior à que se plantava no Brasil, a cana-caiena, totalizando 86 espécies inexistentes no Brasil que foram remetidas a Belém, e de lá ao novo Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

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