terça-feira, 21 de novembro de 2017

Timur na Geórgia

Em 21 de novembro de 1386, o exército liderado por Timur, o Coxo, tomou a capital georgiana de Tblisi e aprisionou seu rei, Bagrat V. O que poderia ter decretado o fim do reino independente da Geórgia diante do conquistador turco-mongol acabaria sendo, na verdade, o primeiro capítulo de uma longa guerra de resistência desse pequeno reino montanhoso, com um resultado improvável.

Timur era conhecido como "o Coxo" porque teria sido alvejado na juventude por uma flecha na coxa direita, deixando-o manco; outra flecha, na mesma ocasião, lhe decepou dois dedos da mão direita (alternativamente conhecido como Tamerlão, do persa "Temur Lang", "Timur, o Coxo"). Ele era um khan turco-mongol que reclamava para si a descendência direta de Genghis Khan (pelo menos uma descendência "espiritual", já que a sua linhagem era tão obscura na época como é agora). Seguindo a tradição de seu povo de eleger seus líderes entre os guerreiros mais capazes em batalha, Timur ganhou proeminência comandando raids entre as tribos turcas da Ásia Central sob jurisdição do Khanato Chagatai (este sim um império descendente direto das conquistas de Genghis Khan na Pérsia) contra búlgaros, kwarízmidas e outros povos rebeldes ou não ainda subjugados. A atuação de Timur teria sido tão decisiva que seus seguidores o teriam elevado acima dos khans de Chagatai, e sua generosidade com o povo sob seu comando o teriam consagrado como um favorito acima das autoridades formais, incluindo seu irmão e rival Husain. Nomeando a si mesmo "protetor" do khan chagatai Suyurghatmish, Timur ganhou a legitimidade que precisava para efetivamente governar seu próprio império, tomando para si a promessa de restaurar o fragmentado império mongol.

Novamente, a generosidade que legava ao seu povo o tornou um monarca celebrado, ao menos no centro-norte do Irã, Turquestão e Uzbequistão, núcleo de seu império, como um herói (é oficialmente um herói nacional no Uzbequistão). De fato, aquela região da Ásia viveu seu apogeu cultural sob Timur. Das cidades e reinos derrotados, ele ordenava expressamente que seus artesãos, arquitetos, engenheiros, poetas, músicos e artistas fossem poupados de qualquer violência, e conduzidos à cidade de Samarcanda, no Uzbequistão, capital do novo império timurida. Seu trabalho (compulsório) tornou aquela cidade uma das mais belas do mundo por gerações (e até hoje, muitas dessas obras continuam de pé e em uso). Timur cercava-se de belezas trazidas como butim, ou produzidas por artistas cativos, e não recusava ao pedido de quem quer que fosse de compartilhar desses tesouros. Também era um ávido jogador de xadrez, que usava para aprimorar seu pensamento tático, popularizando este jogo na Ásia e na Europa (embaixadores europeus e viajantes eram convidados a jogar com ele), chegando até a fixar as regras de uma variante, o xadrez de Tamerlão, disputado num tabuleiro maior e com maior variedade de peças, refletindo a diversidade de seu exército multi-étnico e do que ele encontrava entre seus inimigos em batalha.

Esta generosidade e apreço pelas finas artes contrastava com os horrores impostos aos seus conquistados. Em 1387 a cidade persa de Isfahan se rendeu sem luta, e Timur a tratou com benevolência. Mas meses depois, a cidade se rebelou contra os novos impostos, e o imperador ordenou o massacre total da sua população. Algo em torno de 100 a 200 mil pessoas foram mortas, e um cronista contemporâneo contou 28 torres erguidas com 1500 crânios humanos cada uma. Em outra ocasião, na Índia, seus homens construíram uma pirâmide com 70 mil crânios. O terror era um instrumento de persuasão com a qual Timur pretendia conquistar seus vizinhos com menor esforço, e quando havia resistência, era preciso agir com impiedade para manter essa aura em torno de si. Uma opção controversa, que custou 17 milhões de vidas (cerca de 5% da população asiática do último quarto do século XIV) durante as suas campanhas.

Em 1385, o Khanato da Horda Dourada, vasto remanescente do império mongol centrado na Rússia, passou a atacar o norte do Irã, atravessando o Cáucaso. Havia muito a Horda Dourada havia se desconectado dos outros setores do antigo império, nutrindo desavenças mesmo com os turco-mongóis convertidos ao islã (sua religião oficial) na Pérsia. Timur, que seria exaltado por ter conseguido unificar a Grande Pérsia muçulmana (estendendo suas fronteiras do Rio Indo até a Mesopotâmia, área de tradicional influência cultural persa), também era visto mais como um rival e uma ameaça às fronteiras do que como um irmão de fé pelo khan mongol Tokhtamysh (que recebera apoio de Timur na ocasião da sucessão ao trono). Timuridas (que incluía mongóis, turcos, turcomanos, bactrianos, transoxanos, e diversas tribos turcas, mongóis e de matriz iraniana) e mongóis já haviam se enfrentado numa campanha de Timur à estepe russa. Como resposta ao avanço mongol pelo Cáucaso, os pequenos reinos situados entre as fronteiras dos dois impérios foram tomados um a um por Tamerlão, com pouca resistência, enquanto abria caminho para a Horda Dourada. E como todas as vezes que uma força vinda do Oriente Médio ou da Pérsia tentou invadir a Rússia pelo Cáucaso, ele encontrou a Geórgia pela frente.

A Geórgia é um país localizado entre as escarpadas montanhas do Cáucaso, cordilheira mais alta da Europa considerada sua fronteira sudeste com a Ásia, espraiando-se pelos seus vales até as margens orientais do Mar Negro. A dificuldade de se conquistar pela via militar e se estabelecer um sistema de governo integrado a um império estrangeiro, devido às dificuldades apresentadas pela natureza, manteve os georgianos no seu lugar, cultivando língua, escrita, cultura e religião que se mantiveram como bastiões quase imutáveis ao longo de milênios a despeito de gregos, romanos, persas, árabes, turcos e mongóis, no meio de uma das zonas historicamente mais dinâmicas do mundo.

A expedição de Timur, com o objetivo de pressionar a fronteira da Horda Dourada e bloquear sua passagem pelo Cáucaso, chegou ao sul da Geórgia no final de 1385, atacando a província de Samtskhe. O exército timurida arrasou o sul do país antes de marchar para a capital Tblisi. O rei Bagrat V, tido pelos seus contemporâneos como um administrador justo e um "soldado perfeito" (lembrado localmente como "O Grande"), optou por fortificar a cidade ao invés de encontrar os invasores em campo. Mas Timur, que havia decretado uma Jihad (Guerra Santa) contra a Geórgia Cristã, foi implacável. Em 21 de novembro de 1386, prevendo uma derrota iminente e as consequências dela para a capital, Bagrat se entregou a Timur. Sob a ponta de uma espada, o rei georgiano se converteu ao islã. Um cronista armênio da época, Tomás de Metsoph, exaltou a artimanha de Bagrat em usar a apostasia como forma de ganhar a confiança de Timur - essa visão tinha fundamento, já que Timur designara de 12 a 20 mil soldados para a guarda pessoal e os deixado às ordens de Bagrat.

Tblisi caiu, mas Timur não conseguiu assegurar o domínio sobre a Geórgia. Por toda a parte, bastiões em encostas de difícil acesso fustigavam a passagem dos timuridas e ameaçavam suas linhas de suprimentos. Mais preocupado com outras frentes, Timur recuou. Ele ordenara que Bagrat, agora um suposto aliado e irmão de fé, marchasse com seus soldados emprestados de volta a Tblisi para retomar o trono, ocupado provisoriamente pelo seu filho Jorge VII. Pai e filho, no entanto, entraram em negociações secretas, e Bagrat conduziu seus homens diretamente para uma emboscada. Com a guarda aniquilada, o filho resgatara o pai. Ambos se apressaram em antecipar a vingança de Timur, evacuando a população civil no sul do país, e organizando as defesas nas montanhas.

De fato Timur voltou em 1387, mas foi forçado a retornar de mãos vazias quando a Horda Dourada voltou a atacar o Irã. A próxima investida seria em 1394, quando Bagrat V já estava morto e o país era governado por Jorge. Desta vez, Timur em pessoa comandou a devastação das comunidades montanhesas no vale de Aragvi, ao norte de Tblisi, enquanto seus generais varriam o sul. Jorge VII escapou devido a mais um ataque providencial de Tokhtamysh ao Irã.

Em 1395, Jorge conseguiu o feito de vencer em batalha os timuridas liderados por Miran Shah, filho de Timur, durante o cerco à fortaleza de Alindjak, capturando um príncipe mongol. Em 1399, Timur retaliou mais uma vez, causando o máximo de destruição possível ao país, sem contudo tomar definitivamente qualquer posição importante. Em 1400 Timur exigiu que o tal príncipe fosse devolvido. Desta vez, Jorge foi derrotado em batalha, e na perseguição que se seguiu, atraiu desastradamente Timur para o interior do país, conseguindo despistá-lo em uma floresta. Mas, furioso, Timur sistematicamente devastou e pilhou tudo que pôde por meses, escravizando 60 mil georgianos, mas ainda assim não conseguiu firmar sua autoridade.

Em 1401, Jorge VII e Timur chegaram a um acordo. Os timuridas estavam em guerra com os turcos otomanos e era interessante assegurar a estabilidade na região até, pelo menos, poderem tomar alguma ação decisiva contra a Geórgia. Com a vitória em 1402, Timur usou como pretexto para deflagrar uma oitava campanha contra a Geórgia o fato do rei local não ter lhe oferecido as devidas congratulações. Tamerlão invadiu o país mais uma vez, mas Jorge recuou até a Abkhazia, região montanhosa no extremo noroeste do país. Cerca de 700 aldeias, vilas e cidades foram arrasadas e seus habitantes mortos. A essa altura, a Geórgia já não tinha muito mais o que oferecer em pilhagens (ou mesmo em impostos a arrecadar), e em algum momento, os conselheiros de Timur sugeriram oferecer o perdão a Jorge VII, em troca do pagamento de tributos (com o país continuamente arrasado pelos timuridas, os tributos incluíam termos muito específicos sabidamente ao alcance do rei, como um certo rubi que pesava mais de 80 gramas). No ato, Timur reconheceu a independência da Geórgia e seu status como uma nação cristã. Porém, antes de retornar à Ásia, ele ainda passou por Tblisi e colocou no chão todos os templos cristãos que encontrou de pé.

Timur morreu em 1405, durante uma campanha infrutífera contra a dinastia Ming, na China. Sua morte levou seus netos a uma guerra civil pela sucessão, e a confusão que se seguiu deu brecha para que forças internas (de nativos iranianos, afegãos, turcomanos, etc.) se firmassem e levassem à fragmentação do império. Não fosse a linhagem de um dos seus netos resultar na dinastia Mughal no norte da Índia algumas gerações mais tarde, e o seu atual status de herói nacional uzbeque (uma estátua sua foi erigida no local onde, em tempos soviéticos, ficava uma estátua de Karl Marx, em Tashkent), o legado de Timur teria virado poeira na História. Já a Geórgia aguentou o quanto pôde, mas os ataques constantes fragilizaram o país economicamente e demograficamente, e desde 1401 a região central de Imereti já havia se declarado independente (pelo próprio irmão de Jorge VII, Constantino, que era simpático a Timur), e o sudoeste do país entregue a um dos netos de Timur no último tratado firmado. Jorge VII terminou seus dias governando apenas uma fração do reino que herdara do pai. De uma forma ou de outra, a Geórgia sobreviveria como país independente até 1810, quando foi anexada pelo império russo, recuperando sua soberania, já como república, em 1991.

P.S.: Uma lenda ficou muito popular no século XX a respeito de Timur. Antes de morrer, ele teria dito o que se tornaria seu epitáfio: "Quando eu me levantar da tumba, o mundo tremerá". Em 1941, Joseph Stalin enviou o arqueólogo Milhail Gerasimov (um célebre especialista na reconstrução facial de figuras históricas) a Samarcanda para resgatar os restos de Timur, enterrados no seu mausoléu de Gur-e-Amir. Os ossos foram encontrados e examinados, e até aí as coisas foram devidamente registradas por Gerasimov e sua equipe, mas a lenda acrescenta que, além do suposto epitáfio, dentro da tumba ainda haveria uma segunda advertência: "Aquele que abrir minha tumba lançará um invasor mais terrível do que eu". Isto teria se passado no dia 19 de junho. No dia 21, Gerasimov e equipe teriam exumado o crânio. No dia 22, rompendo inesperadamente o pacto de não agressão com os soviéticos, a Alemanha Nazista deflagrou a Operação Barbarossa, campanha com objetivo de subjugar a Rússia comunista que resultaria no cenário mais sangrento da Segunda Guerra Mundial. Em novembro de 1942, os nazistas estrangulavam os russos na Batalha de Stalingrado, quando os arqueólogos sepultaram novamente os restos de Timur, seguindo, inclusive, os rituais islâmicos apropriados. Nos dias que se seguiram a maré virou para os russos, e três meses depois os alemães seriam derrotados em Stalingrado.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Colisão de dois mundos

Em 8 de novembro de 1519, o conquistador espanhol Hernan Cortés chegou a Tenochtitlán para se encontrar com o imperador azteca Montezuma II.

A chegada de Cortés a Tenotchitlán é o evento mais importante do processo de ocupação e controle da Espanha sobre a Mesoamérica. A civilização azteca, que se espalhava sobre os territórios de povos "aliados" (a maioria submetidos à força) entre o centro e o sul do México, foi a primeira das civilizações mesoamericanas a tombar diante do poderio bélico da Espanha, e essa região do mundo (entre o México e o norte do Chile), com suas riquezas em metais preciosos, sua infraestrutura e organização social, transformaria aquele país europeu em uma super potência por quase 200 anos.

O encontro de Cortés e Montezuma não aconteceu ao acaso. Desde que a expedição de Cortés (com 630 homens em 11 navios) foi avistada na costa de Yucatán, espiões aztecas mantiveram seu imperador informado de tudo que acontecia. A expedição espanhola, após fundar o assentamento que se tornaria a cidade de Veracruz (neste momento, Cortés cortou relações com seu superior, o governador das Índias Diego Velásquez de Cuellar, seu parente, porque era prerrogativa do governador a fundação de novas colônias; ali Cortés foi declarado um "amotinado" e, para evitar que seus homens debandassem diante da situação, mandou desmontarem seus navios) recebeu a visita de dois diplomatas aztecas. Os aztecas continuaram mantendo contado com os estrangeiros, trocando presentes e tecendo elogios (em um momento Cortés se virou a seus homens e disse, com a ajuda de um tradutor, que os nativos os consideravam como deuses). Os emissários, contudo, tentavam dissuadir os espanhóis de irem a Tenochtitlán, mas os presentes e os elogios eram interpretados como um convite. De qualquer forma eles entendiam que, para se aproximar de Montezuma, teria que ser pelos seus inimigos: eles ofereceram apoio a uma coalizão de tribos menores que resistiam à assimilação azteca, participando de algumas batalhas. Enquanto isso, Cortés enviava solicitações para uma audiência com Montezuma, o que ele insistentemente recusava.

Hernán Cortés veio de uma família modesta na pequena vila de Medellin, sudoeste da Espanha. Estudou com um tio em Salamanca e trabalhou como notário. Com a descoberta da América por Cristóvão Colombo, o governo espanhol passou a patrocinar incursões para reconhecimento das novas terras, estabelecimento de relações com seus habitantes, e a sondagem de suas riquezas, usando assentamentos já existentes como bases de operações e a fundação de novos mais adiante (expedições conhecidas como "entradas"). Cortés, que não possuía bens ou terras de que pudesse usufruir, foi atraído para este tipo de empresa - ele também teria circulado pelos portos de Sevilha, Cádiz, e outros, ouvindo histórias de marinheiros sobre as possibilidades e riquezas nas novas terras. Aos 18 anos conseguiu passagem para Hispaniola (ilha onde estão Haiti e República Dominicana), possivelmente graças a Velásquez, que depois lhe concedeu uma "encomienda" (uma propriedade e um grupo de nativos empregados em trabalhos forçados). Cortés permaneceu 15 anos nas Índias Ocidentais, ocupando cargos públicos nas colônias, participando de batalhas contra nativos, e administrando suas novas propriedades. Mas expedições espanholas já haviam provado que a América guardava muito além do que as pequenas ilhas de Hispaniola e Cuba (de cuja capital era prefeito). Seu biógrafo o descrevia como "impiedoso" e "traiçoeiro". De fato, seu conhecimento das leis adquirido enquanto notário o fizeram romper com o governador das Índias assim que viu a possibilidade de fundar uma colônia por conta própria, submetendo-se diretamente ao rei Carlos I (o mesmo rei Carlos V do Sacro Império Romano, que herdara o trono espanhol), alegando que Velásquez agia em benefício próprio, não em prol da Coroa.

As fontes sobre Montezuma são vagas, quase todas registradas sob ponto de vista dos espanhóis. Bernal Díaz, companheiro de Cortés, o descrevia como um homem de boa constituição, pele clara, barba rala e estreita, senhor de um harém de concubinas e duas esposas, e cercado por uma corte de dois mil nobres que habitavam seu palácio. O Império Azteca, costurado à base de força e alianças de conveniência, estava em seu apogeu. Além de manter seus aliados sob controle, os aztecas precisavam manter um exército constantemente mobilizado para conter os ataques de uma confederação de Nahuas, Mixtecas e Zapotecas, que por 75 anos resistiram à assimilação. Estas mesmas a quem Cortés oferecia ajuda.

Os cronistas espanhóis sugeriram que Montezuma nutria interesse pela expedição de Cortés por conta de uma suposta crença no retorno do deus Quetzalcoatl (que teria nascido e depois navegado para o leste em anos que corresponderiam, nos ciclos solares do calendário azteca, ao ano da expedição, 1519), e que Cortés seria este deus incarnado. A influência deste mito nos acontecimentos que se seguiram é muito questionada atualmente no meio acadêmico porque são muito escassas as fontes nativas a respeito da sua importância, mas continua propagado como o motivo para a atitude desconcertantemente afável de Montezuma diante daqueles estrangeiros. Se a religião, que era um pilar central na sociedade azteca, teve algum papel naquele cenário, foi o de servir como argamassa para a coesão dos diferentes povos que constituíam o império azteca - bem como um dos fatores que uniam seus inimigos.

Quando Montezuma convocou Cortés para uma audiência, os espanhóis tinham um grande exército engordado por milhares de guerreiros nativos. Ele havia acabado de atacar a cidade de Cholula (a segunda maior do centro do México, sob jurisdição azteca), onde estava hospedado, massacrando 3 mil pessoas e incendiando templos e palácios para demonstrar sua força e intimidar Montezuma. Cortés levou todo o seu exército para a capital azteca, temendo uma armadilha.

Contudo, ao entrar na cidade - construída sobre uma ilha no meio de um lago, conectada às terras no entorno por pontes - foi recebido calorosamente por Montezuma em pessoa e os reis das principais cidades aliadas, mas não foi permitido que Cortés o tocasse. Meio desconcertado, Cortés trocou presentes com o anfitrião. Montezuma o presenteou com um calendário em forma de disco de ouro, e outro de prata, que Cortés depois derreteu. Ele e os outros espanhóis foram cobertos com jóias de ouro e pedras preciosas, e adornos com penas. Depois, já no palácio que pertencera a Axáyacatl, pai do imperador azteca, preparado para receber Cortés como hóspede, Montezuma discursou diante da corte e do seu convidado, dizendo:

"Tu graciosamente desceste à terra, tu graciosamente te aproximaste de tua água, tu chegaste à tua porta, teu trono, que eu brevemente guardei para ti, eu que o guardava para ti. (...) Tu graciosamente chegaste, tu conheceste a dor, tu conheceste o cansaço, agora vem à terra, entra em teu palácio, descansa teus membros"

Montezuma chegou a oferecer o trono a Cortés. O espanhol acreditou até o fim que as palavras e atitudes de Montezuma eram literais, ou seja, que o monarca, diante da força dos espanhóis, ou influenciado por superstições, havia entregue de boa vontade seu império ao rei Carlos V, a quem representava. Todo o movimento de Cortés depois disso teve como base e justificativa esta interpretação. Os cronistas espanhóis, confusos com a "ingenuidade" de Montezuma, tentaram associá-la à crença de que Cortés era Quetzalcoatl, ou ao pânico que a visão de homens em armaduras ou sobre cavalos teria causado (demonstrações da artilharia espanhola haviam sido fúteis no passado para impressionar os chefes nativos).

Porém, é mais provável que a atitude do rei azteca de oferecer seu trono ao invasor estrangeiro seria uma forma de constrangê-lo pela sua audácia, ao mesmo tempo em que demonstrava sua magnanimidade. Pois entre aztecas e seus vizinhos, a derrubada de um chefe deveria acontecer pela demonstração de força superior em combate. A guerra entre os povos mexicanos era ritualizada, a ponto de prisioneiros capturados em batalha serem mantidos cativos para serem executados em sacrifícios cerimoniais, destino que aceitavam com resignação (quando qualquer outra possibilidade de fuga ou rebelião não existia). Sob esta ótica, Montezuma ofereceu o trono a Cortés esperando que isso ferisse a sua honra, como alguém que esfrega o focinho de um cão em sua própria urina. Os espanhóis nunca perceberam esta sutileza.

De fato, Montezuma não tinha a real intenção de entregar tudo que possuía. Quando Cortés, mais tarde naquele mesmo dia, solicitou a Montezuma erigir uma cruz no alto de um templo em homenagem à Virgem Maria, o azteca teria ficado furioso e ordenado o assassinato de 7 espanhóis que haviam ficado no litoral. Quando soube, Cortés e cinco de seus capitães ordenaram que Montezuma fosse com eles, sem escândalos, ou seria morto. Entre novembro de 1519 e maio de 1520, Montezuma foi mantido cativo em Axáyacatl, embora ainda atuasse formalmente como imperador. Enquanto isso, os espanhóis saqueavam os tesouros de Tenochtitlán e cidades próximas e impunham punições a militares e agentes públicos aztecas que os desacatassem.

Em maio de 1520, o governador das Índias, o mesmo Velásquez, enviou uma expedição para localizar e capturar Cortés, o que fez o caudilho espanhol deixar Tenochtitlán com o grosso dos seus homens, mantendo uma guarnição na cidade. Então, o seu segundo em comando, Pedro Alvarado, ordenou um massacre durante as celebrações do Toxcatl, uma das principais festas religiosas locais, justificando-se de ter impedido o sacrifício humano em um ritual pagão. A fúria causada nas principais cidades teria levado ao assassinato de Montezuma (seja pelos espanhóis, seja pelos aztecas, ambos o teriam feito por causa da sua incapacidade de intervenção de um lado ou de outro). Depois de fugirem do tumulto que se seguiu (perdendo grande parte do tesouro que haviam roubado até então, e vários companheiros que ficaram na retaguarda), os homens de Cortés se reagruparam, e, com ajuda dos tlaxcaltecas, destruíram Tenochtitlán em janeiro de 1521. A linhagem de Montezuma foi absorvida pelos conquistadores - o filho Cuitláhuac morreu de sarampo, o primo Cuauhtemoc torturado com os pés queimados e executado (por não saber onde o tesouro perdido pelos espanhóis estava escondido), e sua esposa e filha de Montezuma, Techichpotzin, batizada Isabel e tomada como esposa por um dos homens de Cortés. Sem liderança, a confederação que compunha o império azteca aos poucos foi absorvida pela administração espanhola sob Cortés.

Os espanhóis governaram o embrião do que seria o México com o auxílio dos chefes das cidades locais, que mantinham seus cargos e privilégios determinados pelo imperador azteca. Já os plebeus corriam o risco de serem escravizados e forçados a trabalhar para os europeus. A Espanha demorou 60 anos para consolidar a conquista do México, anexando impérios e territórios com suas tribos uma a uma - os maias em Yucatán seguiriam resistindo por quase 170 anos, cedendo então apenas por causa de epidemias que eliminaram metade da população nativa. A língua nahuatl (a língua franca do Vale do México, com a qual os freis franciscanos registraram a história da civilização azteca enquanto ela desaparecia) e idiomas relacionados continuam em uso no interior do país até hoje, com 1,7 milhão de falantes atualmente. Os descendentes diretos de Montezuma, desde 1627, recebem do rei da Espanha o título de Duque de Montezuma de Tultengo. Sobre as ruínas de Tenochtitlán e arredores foi erguida a atual Cidade do México.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Abalo nas fundações

Em 1 de novembro de 1755, um terremoto seguido de tsunami (e um incêndio só controlado 6 dias depois) devastou a capital portuguesa de Lisboa, causando dezenas de milhares de mortes e a destruição da maior parte da cidade. Este evento geológico seria o epicentro de mudanças radicais, desde a reformulação da estrutura urbana de Lisboa, à vida política portuguesa, e levando as principais mentes da Europa a questionarem o próprio mundo em que viviam.

Portugal está próximo à fronteira entre duas placas tectônicas, a Africana e a Eurasiana, fronteira esta que corre a partir da Dorsal Atlântica (ponto onde a atividade vulcânica fez emergir do oceano o arquipélago dos Açores) e atravessa o Mediterrâneo. Assim como Itália, Grécia, Turquia (onde a história recente registra sismos bastante destrutivos), é uma região suscetível a tremores de terra mais ou menos violentos. O primeiro deles a ser registrado naquela área ocorreu em 60 a.C., afetando a costa. Um terremoto na região de Lisboa, em 1531, seguido de um tsunami que resultou na morte de 30 mil pessoas provocou um recuo do projeto português de implantar colônias economicamente funcionais na América recém-descoberta enquanto investimentos eram direcionados para a reconstrução da cidade (religiosos responsabilizaram os cristãos-novos, judeus recém convertidos, pelo desastre). A violência do sismo de 1755 seria capaz de apagar da memória tamanha tragédia, a tal ponto que aquele só voltaria a ser estudado com a redescoberta de documentos de época no século XX.

Era uma manhã ensolarada do Dia de Todos os Santos. Os lisboetas acordaram cedo, e tomaram as ruas, em direção às igrejas, para as missas e festejos. A Lisboa de 1755 era uma Lisboa medieval que se expandira lentamente nos séculos anteriores a partir do seu núcleo primitivo às margens do Tejo em direção ao norte e ao oeste, com uma estrutura urbanística confusa que prezava a utilização máxima dos espaços para habitação. O resultado eram ruas estreitas e muradas por edifícios e casas, palácios e, particularmente, igrejas, que constituíam o centro de cada novo núcleo urbano agregado ao plano urbanístico anterior. Haviam poucos largos e praças, e as vias ficavam constantemente congestionadas por pessoas, animais, e carruagens. Naquela manhã, a maior parte de uma população estimada em 300 mil habitantes estava apertada entre paredes, acorrendo às suas paróquias.

Às 9:30 um violento tremor de terra (próximo de 9 de magnitude de momento, com epicentro no Atlântico), com pelo menos 3 minutos de duração (em outros lugares de Portugal, a terra tremeu por até duas horas), surpreendeu a população. No primeiro momento, houve desabamentos. Pessoas em fuga desordenada pisoteavam-se, enquanto feridos pediam socorro. Houve relatos de furtos no meio da confusão. Nas igrejas que continuaram em pé, ouvia-se o canto de músicas sacras contrastando com o lamento dos fiéis. Alguns procuravam por seus parentes desgarrados, outros os iam buscar nos escombros. Fissuras de até 5 metros de largura abriram-se no chão, no centro da cidade. Boatos de que o antigo Castelo de São Jorge estava em chamas, e que seu armazém de pólvora poderia explodir, levaram as pessoas a se afastarem do local, que fica numa colina. O medo de desabamentos, incêndios e explosões conduziu a massa para o cais do porto. Os cais Sodré, São Paulo, e Terreiro do Paço (onde ficava o palácio real), para onde desembocavam as ruas principais, ficaram apinhados de gente.

Ali no cais, o povo assistiu, confuso, o mar retroceder. Rochas, pedras de antigas construções, destroços de navios e cargas perdidas estavam expostas. Um tsunami não surge como uma parede de água que se quebra como uma onda na praia, mas como uma invasão rápida e contínua de água em alta velocidade, subindo rapidamente de nível e arrastando tudo que há no caminho, então os lisboetas não puderam antever a onda de até 20 metros (no Algarve, mais ao sul, a onda pode ter chegado a 30 metros) que se aproximava do porto. Muitos pressentiram o perigo e guiaram sobreviventes para lugares altos, mas cerca de 900 pessoas foram subitamente arrastadas pela onda. O que havia ficado em pé nas partes mais baixas da cidade foi demolido pela onda. E o que a onda não derrubou estava prestes a ser consumido pelo fogo.

A infraestrutura da cidade foi perdida. As chamas consumiam as casas e igrejas sem que houvesse uma resposta organizada para detê-las, de maneira que os incêndios persistiram por 6 dias. Nesta fase, a grandiosa Casa de Ópera, inaugurada naquele ano, foi consumida, e também ardeu o Hospital Real de Todos os Santos (vitimando os pacientes internados). O acervo da biblioteca na Torre do Tombo foi salvo (a torre mesmo colapsou pouco depois), mas as bibliotecas dos dominicanos e franciscanos foram perdidas. Ao final daquela semana, 85% da cidade fora destruída, e até 90 mil pessoas pereceram apenas em Lisboa (as estimativas não são precisas para os demais lugares em Portugal; em Fez, no Marrocos, que passou pelo mesmo tremor e tsunami, morreram cerca de 10 mil).

O rei José I escapou porque suas filhas pediram para passar o feriado em Belém, próximo à cidade. A destruição que testemunhara também ali, e a que assistiu ao retornar à capital, criou no rei uma claustrofobia, a ponto dele viver o resto da vida em amplas tendas erguidas na colina da Ajuda (onde construiu-se depois o Palácio Real da Ajuda). O futuro Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, então ministro dos negócios estrangeiros, tomou para si o comando dos esforços para socorrer as vítimas, impedir novos acidentes, impor a lei e a ordem (para combater os saques, fez com que a cidade fosse patrulhada por trios compostos por um padre, um juiz, e um carrasco), e planejar a reconstrução da cidade. Para resolver o problema do que fazer com os mortos, ordenou que os corpos despedaçados fossem levados em barcaças e jogados no mar: "Deus lá no Céu saberá a que corpo pertencem". Questionado sobre a opção de refazer a parte baixa da cidade adotando ruas e avenidas largas, teria dito que "Ainda um dia as vão achar estreitas". O novo centro da cidade é conhecido até hoje como Baixa Pombalina. Sua atuação enérgica e objetiva lhe renderam a nomeação para o cargo de primeiro ministro, posição de que se aproveitou para promover uma reformulação de larga escala da capital e grandes reformas administrativas. Os altos custos foram cobertos com empréstimos à Inglaterra e um aumento de impostos sobre a colônia, atingindo de maneira mais dura a capitania de Minas Gerais, onde pelo menos duas insurreições tiveram que ser aplacadas por Pombal.

O engenheiro-mor Manuel da Maia conduziu a parte prática da reforma urbanística, que incluía o controle e fiscalização do governo à construção de novas edificações (inibindo as construções feitas pelos próprios moradores, e regulando a altura dos edifícios, e quanto de cada terreno deveria ser ocupado) e a adoção pioneira de métodos de construção anti-terremoto. Casas que ainda estivessem de pé e não estivessem conforme as novas normas deveriam ser demolidas. Grande parte das obras foi supervisionada pelo engenheiro húngaro Carlos Mardel, que assinou as grandiosas construções do Aqueduto das Águas Livres, do Palácio da Inquisição, e o Palácio do Marquês de Pombal.

As notícias de Lisboa chocaram a Europa. Na Inglaterra, na Áustria, na Alemanha, na França, na Itália, a devastação e a perda de vidas foram recebidas com horror. Lisboa era uma das principais capitais do catolicismo, se assim se poderia dizer: pontilhada de igrejas, com grande participação do clero na vida pública, e capital de um império colonial onde a questão religiosa era o pilar das novas sociedades. Entre muitos observadores, incluindo lisboetas, o fato do terremoto ter ocorrido no Dia de Todos os Santos, e ter devastado a cidade, especialmente as grandes catedrais não passou despercebido, e foi interpretado como uma punição divina. Filósofos contemporâneos foram além: Voltaire questionou a destruição de uma cidade católica e suas igrejas e a morte de tantos devotos em relação à noção de que o mundo seria regido o tempo todo por uma divindade fundamentalmente benevolente (ou de como um Deus bom permitiria a existência do mal, questão levantada anteriormente por Leibniz e Pope, que contudo defendiam que, seja como for, este é o melhor dos mundos). Jean-Jacques Rousseau (crítico dessa mesma ideia de Voltaire) atribuiu o grande número de fatalidades ao fato dos lisboetas viverem concentrados numa área urbana relativamente pequena, e usou este argumento para advogar um modo de vida mais naturalístico e menos urbano (um argumento na sua tese do "bom selvagem"). O corpo de ideias formuladas sobre as causas e consequências do terremoto de Lisboa deram musculatura ao Iluminismo.

O sedutor escritor veneziano Giacomo Casanova relatou ter sentido o tremor enquanto estava encarcerado no Piombi, a prisão que funcionava nos porões do Palácio do Doge, em Veneza. O tsnumai varreu os portos dos Açores e Madeira, atingiu da Finlândia ao Caribe, e chegou ao nordeste brasileiro: ondas de até 6 metros de altura invadiram o litoral nordestino e alcançaram quase 5 quilômetros terra adentro (um relato da capitania de Pernambuco nota o desaparecimento de uma mulher e uma criança perto da cidade de Tamandaré; em Salvador, a água chegou à base do cruzeiro situado em frente à Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem, 3 metros acima do atual nível do mar, numa praia voltada para o interior da Baía de Todos os Santos). Um terremoto raro e inesperado, de média intensidade causando desabamento de telhados e chaminés, aconteceu ainda no dia 1 de novembro em Cape Ann, ao norte de Boston, uma região relativamente protegida, o que leva pesquisadores a tentarem associar o evento com o sismo de Lisboa.

Com 85% da Lisboa medieval e pré-moderna destruídos, há poucas estruturas na cidade anteriores a 1755. Uma delas, talvez a mais impressionante, seja o Convento do Carmo, templo neogótico erigido em 1389, cujo interior foi consumido pelo fogo, derrubando seus telhados e cúpulas. A estrutura básica é preservada e abriga um museu arqueológico.