terça-feira, 17 de maio de 2016

A espada e o escudo da Europa

O trabalho tem me atropelado desde janeiro, quando deixei de escrever regularmente. Desde então tenho trabalhado a 100% da capacidade em 100% do tempo, me deixando sem espaço para escrever profundamente sobre qualquer assunto. E não foi por falta de vontade: desde o começo de abril estamos passando pelo período em que os exércitos do sultão otomano Mehmed II cercaram Constantinopla até a sua queda, em 29 de maio (em 22 de abril tentei preparar um texto marcando o momento em que os defensores bizantinos ficaram bestificados ao ver as naus turcas sendo transportadas por terra ao redor da imensa corrente de ferro que ele mantinham bloqueando o rio ao norte da cidade, com direito a remadores remando o ar e tudo, sem tempo de sequer chegar ao clímax da história). O cerco a Constantinopla de 1453 é um dos meus episódios favoritos da História (vide parêntese anterior!) e algo que me dá muita satisfação em ler e refletir a respeito. É um fardo obrigar-me moralmente a terminar qualquer tarefa à qual sou designado e da maneira mais espetacular possível, enquanto emprego tão pouca dedicação ao que verdadeiramente me dá prazer. Mas por outro lado, Goethe disse que depois de cumprir seus deveres, resta-te outro ainda: o de te mostrares satisfeito.

Então, vou aproveitar o gancho que os turcos deixaram pendurado sobre a Muralha de Constantino (antes que os bizantinos saiam à noite para derrubá-la de lá) e não vou deixar passar que em 17 de maio os turcos, vendo que seus canhões (um deles um imenso canhão de bronze projetado por um engenheiro húngaro para ser o maior já feito) não conseguiam abalar as defesas, e que os poucos defensores da cidade resistiam tenazmente aos ataques frontais (nos dias 7 e 12, os bizantinos conquistaram duas vitórias desesperadas contra assaltos à muralha), estavam testando alternativas. No dia 16, soldados turcos começaram a cavar túneis com destino às muralhas. A intenção era entrar na cidade por baixo das muralhas, já que era impossível escalá-las ou derrubá-las. Mas um desses túneis acabou interceptando um outro túnel que vinha de dentro da cidade, e ali os defensores os emboscaram.

Bizantinos contavam com engenheiros do seu lado que coordenavam reparos, a escavação de túneis de interceptação e a instalação de armadilhas contra tentativas de infiltração subterrânea (promovendo a inundação de túneis com água e entulho). As muralhas eram reparadas à noite com sacos de areia e pedra estilhaçada pelos bombardeios incessantes durante o dia.

No dia 17, os turcos já estavam com parte da sua frota estacionada dentro do rio chamado Corno de Ouro (o rio que deságua ao norte da parte antiga de Istambul, que até então era o fio de conexão da cidade com o interior em situações de cerco por terra e por mar), mas ainda assim inconvenientemente imobilizada pela corrente que bloqueava o rio. Essa corrente ficava presa à muralha e era levantada e descida conforme conveniência. Nesse dia os turcos tentaram cortá-la em uma das suas pontas, mas os parcos defensores da parte norte da muralha os fustigaram até fazê-los desistir. Eles haviam tentado a mesma coisa no dia anterior.

Enquanto isso, os otomanos montavam uma grande torre de cerco, que seria usada no dia seguinte para tentar escalar a muralha e levar a luta ao seu passadiço. Seus planos foram frustrados por defensores bizantinos, que atearam fogo à estrutura durante a noite.

Os bizantinos deixaram claro que não se entregariam facilmente, e realmente não existia uma alternativa óbvia para o sultão ali. Tomar a cidade era geopoliticamente fundamental - embora o Império Bizantino estivesse havia séculos à míngua, Constantinopla era uma fortaleza cristã que dominava a passagem do comércio entre o Mediterrâneo e o Mar Negro, e dominar Constantinopla significava dominar o grosso do comércio da Europa com a Ásia. Além disso, a cidade servia como ponto de apoio para as Cruzadas (e mesmo que elas já não tivessem o objetivo e a capacidade de penetração em território muçulmano na Ásia, ela continuava lá como uma possibilidade). Além do significado simbólico de ser o último resquício do que um dia foi o Império Romano (nós costumamos sinonimizar os bizantinos como "gregos" devido à língua e origem étnica de suas casas dominantes, mas os otomanos, nas suas crônicas, os chamavam de "romanos"). O próprio Mehmed II a descrevia como "a espada e o escudo" da Europa.

Os turcos já avançavam sobre a maior parte da Grécia, e tinham controle sobre tudo entre a Macedônia e a Sérvia, a Bulgária e partes da Romênia e Hungria, além de tudo que um dia fora bizantino na Ásia, mas Constantinopla não se entregava. Manter um grande exército parado num lugar por muito tempo é uma estratégia defensiva que os antigos gregos já conheciam bem, pois foi o que tentaram na célebre Batalha das Termópilas (que fracassou quando os atacantes persas descobriram um caminho para se infiltrar na retaguarda espartana e forçá-la a abrir caminho). Esse impasse criava inquietação no acampamento turco, cuja tenda real fora montada onde seria construído depois o palácio imperial de Topkapi (hoje o principal museu de Istambul). Havia os que acautelavam o sultão a abandonar o cerco para evitar dissenções e revoltas entre seus soldados.

Com o fracasso das minas e a impossibilidade de cortar as correntes no Corno de Ouro (e boatos de que reforços vinham do ocidente na forma de uma Cruzada convocada pelo Papa), o sultão, com apoio de parte dos seus conselheiros, designou Zaganos Pasha para liderar uma última investida. Nunca ficou muito claro como, se Pasha teria comprado a lealdade de algum soldado, ou se algum defensor local foi mortalmente descuidado, mas um portão-falso que era usado pelos bizantinos para se esgueirarem para fora das muralhas foi deixado convenientemente destrancado. No dia 28 o acampamento turco ficou em silêncio, enquanto em Constantinopla, na catedral de Santa Sofia celebrava-se uma missa com a presença do imperador Constantino XI Paleólogo, e os sinos de todas as igrejas da cidade badalavam em desafio. No dia seguinte, pela porta destrancada, os turcos infiltraram-se durante um tumultuoso ataque frontal. Ali chegaram ao interstício entre as duas muralhas que compunham o complexo de defesas local, e finalmente a luta corpo a corpo se espalhou pelas ruas. Diz-se que o próprio imperador foi visto de espada na mão esperando seu fim. A resistência em uma luta franca foi insignificante, e ao fim do dia a destruição já era tão grande, que o sultão quebrou sua promessa de três dias de butim e ordenou o fim dos ataques.

Constantinopla, rebatizada em turco Istambul (uma corruptela do grego εἰς τὴν Πόλιν, "eis tim pólin", ou "à cidade", como eles se referiam a ela), teve suas igrejas reconsagradas, incluindo a colossal catedral de Santa Sofia, transformada numa mesquita. O clero ortodoxo (que resistira firmemente às tentativas de união promovidas entre o imperador e o Papa enquanto o primeiro buscava apoio no ocidente) obteve permissão para ficar, mas o eixo da ortodoxia cristã se deslocou mais para o norte, para o emergente principado de Moscou. Venezianos e genoveses, donos de impérios comerciais próprios que, por mais por afinidade do que por convicção apoiavam os bizantinos, fizeram seus acordos para manter seus negócios no novo Mediterrâneo controlado pelos turcos. Para estes, a vitória reforçada pelo simbolismo da sua conquista serviu para pacificar e unificar as tribos turcas que viviam de maneira mais ou menos federada no centro da Anatólia, enquanto o prestígio do sultão espalhava-se pelo restante do mundo islâmico não-turco, permitindo a expansão subsequente do domínio otomano sobre a África e Arábia. A nova capital também passaria a ser o trampolim para novas conquistas e a consolidação de um império turco na Europa mesmo hoje, de forma tão reduzida.

Do ponto de vista da Europa cristã, a queda de Constantinopla, por mais indiferença que as nobrezas locais, ocupadas com seus próprios conflitos locais (guerras de sucessão no Sacro Império Romano, guerras entre repúblicas e reinos italianos, a Guerra dos Cem Anos entre França e Inglaterra, a Reconquista na Espanha), tivessem aos apelos do imperador e do Papa, foi recebida como um soco no estômago. De fato, os turcos permaneceram uma ameaça por terra e por mar pelos séculos seguintes. Enquanto isso, mestres arquitetos e artistas diversos emigraram de Istambul e do centro do Peloponeso (onde, até a queda de Constantino XI, seus irmãos comandavam uma resistência armada), e influenciaram intelectualmente o início da Renascença na Itália e a revitalização da cultura clássica grega durante esse período. De fato, muitos historiadores marcam o fim da Idade Média em 1453, após a tomada de Constantinopla.

Porém, na minha opinião, a consequência mais importante da conquista turca foi o estabelecimento do Mediterrâneo como um ambiente hostil ao comércio europeu. Enquanto turcos, venezianos, genoveses, austríacos e napolitanos confrontavam-se uns contra os outros, e Inglaterra engalfinhava-se com a França por questões dinásticas, um jovem país costeiro no extremo oeste do continente emergia como nova potência comercial à medida em que aproveitava sua posição para explorar o oceano em busca de novas rotas para o oriente: Portugal enviava expedições tateando a África em busca de uma passagem pelo sul até a Índia que não dependesse da boa vontade dos turcos ou de quaisquer outros maometanos que existissem pelo caminho (e além dos turcos, ainda havia curdos, persas, uzbeques, turcomanos, mongóis, afegãos, e todo tipo de etnia e seguidores do islã entre o Bósforo e o Ganges... além de boa parte do próprio norte da África, caso eles tentassem). O desenvolvimento técnico que se seguiu, e o conhecimento acumulado sobre as correntes oceânicas e a astronomia em diferentes latitudes, levou às expedições que, 40 anos depois, levaram os europeus à América.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

O Tigre e o Dragão

Em 29 de janeiro de 1258, um exército invasor mongol foi derrotado e expulso de Thang Long (atual Hanói) por forças do império de Dai Viet, impedindo a expansão do poderoso Império Mongol sobre o sudeste asiático.

Em 1258, Kublai Khan ainda era um dos possíveis herdeiros do colossal (porém fragilmente constituído) Império Mongol. Ele herdara as terras correspondentes ao norte da China, tomadas da antiga dinastia Jin por Genghis Khan e seu filho Ogedei, e governava a partir dali a recém fundada dinastia Yuan. Mongke Khan, então o Grande Khan do Império, tinha pretensões de lançar-se em campanha contra a metade sul da China, ainda não subjugada e controlada pela dinastia Song. Seu plano incluía um ataque em três frentes: uma vindo do norte da China, uma vindo do oeste, e outra do sul.

Kublai foi mandado a conquistar o reino de Dali, na atual província chinesa setentrional de Yunnan. Depois de enfrentar dificuldades com as defesas naturais de Dali, aparentemente um traidor local teria indicado uma passagem segura para os mongóis. Talvez esse traidor tenha sido o próprio rei, que, abertamente, mais tarde, se uniu aos mongóis em troca de uma posição no governo ("marajá") da nova província. Com Dali conquistada, restava a Kublai assegurar sua posição no norte do Vietnã, então controlado pelo império de Dai Viet para lançar a terceira frente contra os Song.

Kublai procurou negociar a rendição de Dai Viet enviando Uriyangkhadai, filho do brilhante general de Genghis Khan, Subodai. Os mensageiros de Uriyangkhadai, contudo, foram presos. Em tempos anteriores, a recusa em atender aos emissários mongóis (ou responder com sua prisão ou execução) teve resultados catastróficos; a maior cidade da Ásia, Merv, foi completamente destruída e a maior parte da sua população assassinada em 1221 (com talvez mais de um milhão de mortos em dois dias de ataque, incluindo até os animais domésticos, é possível que tenha sido a maior catástrofe provocada por seres humanos em um lugar só antes do emprego da pólvora) após recusar uma exigência de rendição. O príncipe de Dai Viet, Quoc Tuan, com certeza tinha algo em mente quando tomou essa atitude. Ou pouco juízo.

Uriyangkhadai mobilizou uma força de 40 mil mongóis e 10 mil Yi (grupo étnico daquela região entre Vietnã, Yunan e Mianmar) para conquistar Dai Viet à força. O general avançou durante o mês de janeiro de 1258 em direção à capital Thang Long.

A primeira grande batalha se deu perto da capital. Duas companhias mongóis desciam o Rio Vermelho esperando bloquear possíveis rotas de fuga da cidade, enquanto Uriyangkhadai cavalgava com o grosso do exército para forçar um primeiro ataque. Os Tran (a dinastia reinante de Dai Viet) haviam posicionado uma linha de elefantes de guerra na cidade atual de Viet Tri. Os mongóis ainda não estavam familiarizados com esse tipo de animal no campo de batalha, e no primeiro momento tiveram dificuldade em controlar a suas montarias, nervosas por causa do estranho odor dos elefantes. Além disso, os Tran haviam posicionado barcos rio abaixo para impedir a travessia e permitir a fuga em caso de necessidade. Uriyangkhadai percebeu a importância dos barcos e ordenou um ataque direcionado a eles. No caminho, os invasores encontraram uma passagem segura para a outra margem. Por ali conseguiram se aproximar dos elefantes. Eles atiraram flechas incendiárias aos seus pés. Os animais entraram em pânico, causando enorme confusão e destruição no exército defensor, Uma outra vitória no dia seguinte, perto de um dos portões da cidade, abriu caminho para os mongóis.

Em vista de uma invasão implacável, a população de Thang Long foi evacuada para uma ilha próxima ao delta do Rio Vermelho. O imperador chegou a cogitar uma fuga para a China Song, mas foi dissuadido por alguns conselheiros de Estado. Por volta do dia 25 de janeiro, os mongóis entraram na capital viet praticamente deserta; dos emissários presos, um estava morto. Uriyangkhadai, insultado, ordenou uma destruição generalizada e a execução de quem quer que pudesse ser encontrado no lugar. Conquistar a capital sem conquistar seus governantes era uma vitória inócua. Além disso, os vietnameses não deixaram suprimentos para trás. Uriyangkhadai precisaria alimentar talvez os 30 mil homens que restavam com poucos recursos, ou abortar sua campanha.

A fome se tornou imediatamente um problema, mas a ela se somaram também fatores naturais: o calor e a umidade afetavam os cavaleiros mongóis e seus cavalos, nativos das áridas e frias estepes da Mongólia. Mosquitos espalhavam doenças para as quais eles não conheciam tratamento, como a malária. Uriyangkhadai ainda procurou enviar mais dois emissários ao imperador, exigindo rendição, mas os dois foram presos. Com a liderança mongol hesitante e seus homens enfraquecidos, o imperador ordenou um contra-ataque. Ele entrou na cidade montado num grande elefante à frente de seu exército, encontrando apenas a retaguarda do exército inimigo, que já iniciara a sua retirada, em Dong Bo Dau, subúrbio da atual Hanói. Houve pouca resistência, e, de fato, a moral entre os mongóis estava tão baixa que eles marcharam e cavalgaram até a fronteira com Dali sem sequer tentar atacar ou saquear as vilas e templos pelo caminho.

Os mongóis ainda tinham então a reputação de serem praticamente invencíveis; no ocidente, a expansão mongol iniciada com Genghis Khan no começo do século só foi detida em 1260 na Síria. Dai Viet, e mais tarde seus vizinhos Champa (a metade sul do atual Vietnã), Khmer (no Camboja), Myinsaing (no centro de Mianmar) e Thai (o coração étnico do povo tailandês, ainda em formação na época) imporiam uma resistência feroz às seguidas tentativas de invasão mongol. A morte de Mongke Khan em 1259 também atrapalhou decisivamente os planos para o sudeste asiático. De fato, Kublai Khan, enquanto seu sucessor como Grande Khan e imperador da China (após conquistar os Song), embora seja lembrado como administrador e por sua relação com o mercador genovês Marco Polo, nunca conseguiria avançar efetivamente suas fronteiras para além da própria China, fracassando repetidamente no sudeste asiático (onde algumas nações aceitaram pagar tributo para serem deixadas em paz), em Java, e no Japão.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Uma onda de melado

Na tarde de 15 de janeiro de 1919, na parte norte de Boston, Estados Unidos, um imenso tanque de melado explodiu liberando uma onda de líquido grosso e quente que derrubou construções, arrastou caminhões, cavalos, e matou 21 pessoas.

A destilaria Purity operava na zona metropolitana de Boston, importando melado do Caribe e usando-o como matéria prima para a fabricação de rum e etanol. Bebidas não eram o único foco da empresa, que também produzia álcool para uso industrial e bélico. A companhia atendia a demanda da região de Boston e clientes por todo o nordeste dos Estados Unidos. Era um negócio com grande potencial de crescimento.

Em 1915 a Purity investiu na construção de um imenso tanque feito de aço para armazenagem num terreno na parte norte de Boston, região densamente populada por imigrantes italianos, e perto da qual passava uma estrada de ferro elevada de uma das linhas de trens urbanos da cidade. Era algo de 15 metros de altura, e quase o dobro de diâmetro, capaz de armazenar quase 9,5 milhões de litros de melado. Este melado era periodicamente descarregado em caminhões-tanque e transportado para a destilaria propriamente dita, localizada em Cambridge. O interior do tanque tinha um sistema de canos preenchidos com ar aquecido por um boiler no lado de fora, que servia para manter o melado aquecido e fluido mesmo no frio do inverno e permitir a descarga do produto - do contrário, ele se transformaria num caramelo de 9,5 milhões de litros de volume.

Esse tanque foi construído em 1915 e nunca havia demonstrado qualquer problema visível. Porém, foi construído de maneira quase improvisada, e não foi submetido a todos os testes de resistência. O responsável pelo projeto sequer o encheu de água para verificar vazamentos (e parece que vazava tanto que as pessoas vinham recolher melado, e o tanque era pintado de marrom para disfarçar as manchas). Ao longo dos quatro anos seguintes, ele foi preenchido até sua capacidade máxima oito vezes. O uso intermitente da capacidade máxima do tanque pode ter estressado sua estrutura metálica, ora sob pressão interna, ora sem essa pressão, mas sofrendo da fadiga resultante da dilatação e retração dos materiais sob influência dos elementos. Havia uma escotilha perto do chão, virada na direção da rua, por onde uma pessoa podia entrar para fazer inspeção ou limpeza, e desconfia-se até hoje que pudesse haver uma fadiga na sua vedação, ou uma rachadura por ali.

Com um tanque gigante e pouco seguro, a Purity começou a acelerar sua produção de álcool a partir de 1917. Em 1 de outubro daquele ano, o senado americano havia aprovado em primeira instância a XVIII Emenda Constitucional, que proibia a fabricação, o transporte, e a venda de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos (embora não o seu consumo em propriedades particulares, um panorama bastante parecido com a nossa atual proibição à maconha). A proibição causaria um impacto na companhia, embora ela tivesse seus negócios fora do mercado de bebidas. Contudo, às vésperas da implementação da nova lei, a Purity começou a intensificar sua produção de rum e destilados, e seu tanque em Boston estava totalmente cheio no dia 14 de janeiro de 1919.

Aconteceu de Boston ter passado aquela semana sob um "calor" inesperado para esta época do ano: a temperatura subiu de -17°C para 5°C. Embora para nós aqui isso ainda seja frio, adicionado ao calor interno do tanque, foi o suficiente para acelerar o processo natural de fermentação do melado armazenado. A fermentação gera gás carbônico, e esse gás pode ter aumentado a pressão interna do tanque além do suportável.

Durante a tarde do dia 15, um estrondo foi ouvido do pátio. O deslocamento de ar fez as pessoas serem atiradas longe. Uma brecha no tanque fez com que ele explodisse violentamente na direção da rua. Rebites atingiram pessoas e estruturas. A seguir, uma onda de melado fumegante que chegou a mais de 7,5 metros de altura se esparramou por todos os lados, tolhendo tudo que estava ao alcance: transeuntes, animais, caminhões, estruturas em volta. Levar um banho de melado não parece algo tão assustador, mas esse volume de líquido viscoso e quente, movendo-se a mais de 50 km/h, foi capaz de derrubar os postos dos bombeiros e da polícia ao lado, destroçar o corpo de cavalos, arrasar até o chão o escritório da Purity que ficava entre o tanque e a rua, e destruir pilares da estrada de ferro suspensa logo em frente. As pessoas que não tiveram tempo de fugir (motoristas, crianças, operários que trabalhavam ao lado, funcionários do porto, e moradores do outro lado da rua) morreram com o impacto da onda, sob destroços, ou em decorrência de ferimentos e queimaduras. Foram 21 mortos e 150 feridos. Um menino salvou-se por pouco mantendo-se na superfície do líquido grosso como se surfasse a onda (sua irmã menor foi uma das vítimas fatais). Curiosamente, a única estrutura vizinha ao tanque rompido que se manteve intacta foi o armazém da Purity, que ficava na margem do Rio Charles, ao norte, na posição oposta ao ponto de ruptura.

Os bombeiros atenderam imediatamente, e as buscas por corpos e feridos duraram dias, bem como a limpeza - com o frio o melado virou um caramelo, e foi preciso jatos de água salgada e areia para remover a substância grudenta. Depois que a onda de melado perdeu força destrutiva, ela ainda se esparramou por vários quarteirões, cobrindo gramados e entupindo bueiros daquela parte da cidade antes de se solidificar, e os trabalhadores encarregados da limpeza e dos resgates se encarregaram de espalhar mais melado onde quer que fossem nas botas, luvas e roupas.

Nos meses que se seguiram, centenas de processos contra a Purity e o depoimento de mais de 3 mil testemunhas abarrotaram o sistema judiciário de Boston. Várias hipóteses emergiram. Um químico a serviço da polícia de Massachusetts, um certo senhor Wedger, sugeriu no dia seguinte que a explosão teria sido causada por uma reação entre gases explosivos no tanque. Houve quem sugerisse que subversivos plantaram uma bomba no local (comunistas e anarquistas eram suspeitos de outros casos de explosões em áreas industriais no país). A corte nunca chegou a uma conclusão sobre as causas e responsabilidades. A Purity, que naquele momento tinha sido comprado pela United States Industrial Alcohol, decidiu pagar um montante na ordem de quase 11 milhões de dólares (valores atuais) em acordos, e cerca de 125 mil por cada vítima fatal às suas respectivas famílias. Uma análise técnica feita em 2014 com os dados sobre a estrutura do tanque concluiu que as placas de aço das suas paredes não tinham metade da espessura apropriada para um compartimento daquele tamanho, e era de qualidade inferior. A Purity (que sumiria do mapa sob o nome da sua nova proprietária) nunca reconstruiu o tanque.

Até hoje os naturais de Boston dizem que, nos dias mais quentes, sente-se nas ruas um cheiro de melado. Grande parte da área atingida mais violentamente pela explosão é hoje um complexo de parques e campos esportivos.

A XVIII Emenda foi ratificada no dia seguinte ao vazamento.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Espanha visigótica

Em 13 de janeiro de 587, o rei da Espanha visigótica, Recaredo, até então um cristão ariano, converteu-se ao catolicismo.

Os visigodos, depois de séculos forçando as fronteiras do Império Romano no Reno e no Danúbio (e obtendo sucesso em algumas dessas tentativas de invasão), configurando-se numa das principais forças "bárbaras" em oposição ao mundo romano, finalmente assentaram-se na Espanha no começo do século V. Foi uma invasão massiva e coordenada entre vândalos, alanos e suevos, que atravessaram o Reno congelado e cruzaram a Gália em direção à Espanha. Os Visigodos, então no meio do caminho, saquearam Roma em 410. O enfraquecido Império Romano do Ocidente não teve o que fazer além de conceder-lhes terras e recrutá-los nos seus exércitos como foederati. Com suas terras, os visigodos passaram a recolher impostos dos seus arrendatários romanos, sem contudo repassá-los ao Império. Com a crescente fortuna, e sem impedimentos da autoridade central, os visigodos expandiram-se a partir do sudoeste da França para o sul, abocanhando quase toda a Espanha e os Pirineus (alanos e suevos já estavam lá, ocupando a metade norte de Portugal e a Galícia, enquanto Vândalos passavam para a África), e, na prática, formaram um reino independente em 418. Alguns conflitos com o crescente poder dos seus "primos" ostrogodos, então com o esfacelado Império Romano nas mãos, e os francos, senhores da Gália, empurraram o reino visigótico mais para o sul, guardando apenas uma faixa de território na França. A capital se moveu para a romana Toletum, atual Toledo.

A impressão que se tem quando se fala do fim do Império Romano é que os cidadãos romanos - aqueles que viviam de acordo com as leis e costumes romanos, pagavam tributos a Roma e falavam o latim - subitamente sumiram, ou pelo êxodo (como se todos os romanos tivessem fugido para a Itália, por exemplo, quando francos, saxões, burgúndios, etc. tomaram posse do seu território), ou, talvez, pelo extermínio. Antes, assim como os romanos fizeram com as populações locais quando expandiram-se Itália afora, eles próprios foram lentamente assimilados pelos seus novos conquistadores. A Espanha era romanizada desde o século I a.C. (com a exceção dos bascos, que notavelmente nunca foram romanizados ou se submeteram a qualquer outro invasor da Península Ibérica), e logo cedo produziu expoentes do pensamento e da política, como Sêneca, Lucano, e os imperadores Trajano, Adriano e Teodósio, assumindo uma posição central na dinâmica do Império. Em 418, esses mesmos romanos agora deviam obediência a um rei germânico. Todo conquistador tem a opção de governar o povo conquistado, ou substituí-lo por colonos do seu próprio povo. Para sorte dos romanos espanhóis, eles preferiram governá-los.

Por causa da própria origem do assentamento visigótico da Espanha - o rei Ataulfo obteve do imperador romano Honório o direito de assentar seus homens ali se expulsassem os vândalos, alanos e outros - e da longa convivência, principalmente entre os visigodos foederati a serviço de Roma, os visigodos estabeleceram na Espanha romanizada uma espécie de continuação da sociedade romana pré-existente; embora ali o trono passasse de pai para filho (ao contrário de Roma, que, mesmo no fim, de uma forma ou de outra, elegia seus imperadores com o aval do senado), os romanos continuaram cultivando a terra, comerciando, e conduzindo a burocracia estatal, usando o latim como língua oficial. Os visigodos assumiram ali o papel dos patrícios, a classe mais alta da sociedade romana, donos de terras, preferidos para ocupar cargos de comando e obter favores do Estado. Para o plebeu ibero-romano, muito pouco mudou.

Ainda assim, havia um ponto de atrito entre conquistadores e conquistados, um que punha em risco a estabilidade do domínio germânico: religião.

Os visigodos eram adeptos históricos e entusiasmados do arianismo, corrente do cristianismo que defendia que Jesus, enquanto filho de Deus, não era o próprio Deus, mas subordinado ao Pai, e que o Espírito Santo, igualmente, era uma entidade independente, que obedecia ao Pai ou servia-lhe de intermediário (como um anjo). A tese era defendida por um presbítero de Alexandria chamado Ário (daí arianismo) com base em versículos do Evangelho que permitem esta interpretação (João 14:28 por exemplo), e considerada herética no Concílio de Nicéia, em 325. Ário e seguidores foram excomungados, e, embora fossem mal quistos em Roma, os arianos continuaram a pregar Europa afora. Um godo ariano chamado Ulfilas partiu como missionário de Constantinopla e cruzou o Danúbio. Ele foi espetacularmente bem sucedido em converter germânicos pagãos em cristãos arianos, e em questão de décadas, a maior parte das tribos germânicas convertidas eram arianas, incluindo os visigodos. Por mais que o arianismo continuasse herético, houve pouco que as igrejas de Roma ou Constantinopla pudessem fazer para mudar isso, mesmo quando esses arianos mudaram-se para dentro das fronteiras romanas.

Os ibero-romanos, no entanto, eram católicos. Quando a elite guerreira germânica, já em grande medida romanizada, chegou à Ibéria, uma maneira de estabelecer uma unidade cultural que os diferenciasse dos nativos era pela fé no trinitarismo ariano. Nem foi o caso de tentar impor o arianismo à população, pois isso os "misturaria"; à exceção dos vândalos, que perseguiriam católicos na África, os arianos ostentavam sua religião como símbolo do seu novo status social. Eles assim conservavam este estado de coisas. Os visigodos tomaram o cuidado de manter, paralelamente, estruturas clericais distintas para atender simultaneamente a elite ariana e a plebe católica sem que uma interferisse nos negócios da outra. De fato, o avanço do Império Bizantino sobre o sul da Espanha no século VI era uma ameaça maior ao catolicismo espanhol do que a heresia ariana da sua elite governante.

Em meados do século VI, um monge beneditino chamado Leandro, que se tornaria arcebispo de Sevilha, surgiu em cena. Ele se tornou próximo da princesa franca Ingunda, católica e esposa do príncipe visigodo Hermenegildo, filho mais velho do rei Liuvigildo. Leandro e Ingunda converteram o príncipe com sucesso, mas Hermenegildo foi adiante e declarou guerra contra o seu pai, de quem já era co-regente. A situação expôs Leandro como um conspirador, e ele precisou fugir para Constantinopla. Hermenegildo foi executado pela sua traição em 585 (e se tornou o mártir São Hermenegildo), e seu pai morreu no ano seguinte, tendo unificado toda a Península Ibérica sob sua coroa (os nativos bascos e cantábrios aceitaram o jugo visigótico, mas mantiveram-se autônomos).

Leandro retornou a Toledo e começou a trabalhar junto ao herdeiro sobrevivente, Recaredo. Em janeiro de 587, Recaredo renunciou ao arianismo e converteu-se ao catolicismo. Embora parte do seu círculo o seguisse logo em seguida, a nobreza e o clero arianos não aceitariam isso tão facilmente. O bispo Atáloco, ariano fervoroso, congregou uma resistência no norte com dois comandantes locais. Mesmo com apoio dos francos, eles foram derrotados (Atáloco, no entanto, não foi punido, e nem renunciou à sua fé). Outras duas conspirações arianas foram suprimidas. Em 589 Recaredo reforçou oficialmente sua posição no Terceiro Concílio de Toledo, denunciando o arianismo como heresia. De carona, também empreendeu uma perseguição aos judeus, embora a sua severidade seja matéria de debate entre historiadores (ele teria lhes tomado vários direitos, mas abolido a pena de morte para judeus que pregassem aos cristãos). A piedade de Recaredo foi recompensada pelo Papa Gregório I com um pedaço da Cruz Verdadeira, as correntes que prenderam São Pedro, e cabelos de João Batista.

A conversão de Recaredo representou um ponto axial na história da Península Ibérica. Os visigodos, convertidos ao catolicismo, agora não tinham mais qualquer barreira que os diferenciasse do povo que governavam: a língua visigótica, que sub-existia na tradição da liturgia ariana, caiu finalmente em desuso em favor do latim. Ou seja, qualquer identidade étnica visigótica desapareceu rapidamente. Contudo, embora o reino visigótico emulasse Roma, os visigodos que compunham a sua elite nunca tiveram o domínio sobre o sistema político-administrativo que lhes garantissem o controle sobre o Estado; o cargo de Imperador em Roma era mais uma maldição do que uma dádiva, mas a despeito de repetidos golpes de Estado e períodos de turbulência que perduravam por décadas, a estrutura administrativa continuava funcionando sem interrupções, o que lhe garantiu notável longevidade. Os visigodos não conseguiram implementar isto. A elite visigótica estava presa à tradição germânica de dividir entre os filhos, sem favorecimento pré-determinado, a herança do pai, o que resultava em revoltas fratricidas. De tempos em tempos, o reino entrava em convulsão porque um príncipe marchava contra outro pelo direito de governar.

As contínuas guerras civis deixaram a Espanha vulnerável quando os mouros iniciaram sua invasão em 711 - neste momento, o rei Rodrigo acabava de afirmar-se no trono após uma guerra civil contra Áquila II, e os derrotados teriam solicitado o auxílio dos mouros para punir o usurpador. Os mouros muçulmanos controlariam a Península Ibérica por séculos e redefiniriam a demografia da Península Ibérica de maneira mais efetiva do que os germânicos.

Embora os visigodos controlassem toda a Península Ibérica no momento da conversão de Recaredo, a união religiosa entre eles e os ibero-romanos representou a primeira vez em que houve uma unificação ibérica de fato. Este evento seria uma das inspirações para o prosseguimento da Reconquista entre os séculos XII e XV (outra de mesma origem seria uma alegada raiz católica do povo ibérico, em relação à qual os muçulmanos eram estrangeiros e invasores), e um motivo nacionalista, particularmente na Espanha.

O arianismo também sumiria do mapa depois que o último rei ariano, o lombardo Garibaldo, foi deposto, embora aspectos da sua doutrina possam ser identificados em diferentes correntes atuais do cristianismo.

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terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Guerra de Biafra

Em 12 de janeiro de 1970, o governo da república separatista de Biafra, no sudeste da Nigéria, entregou ao governo nigeriano um pedido de cessar fogo. Foi o último ato oficial da breve república, depois de quase 3 anos de uma guerra civil que ficaria registrada na memória mundial como uma das maiores tragédias humanitárias do século XX.

O que se chama hoje de Nigéria é um pedaço delimitado arbitrariamente das colônias britânicas na África equatorial, fatalmente englobando, sob uma mesma unidade geopolítica, centenas de grupos étnicos distintos. Desses grupos todos, três deles compunham a maioria da população da Nigéria colonial: os Yoruba no sudoeste (etnia que viria a ser bem representada no Brasil por causa dos escravos trazidos para cá, sobretudo no Nordeste), os Hausa-Fulani no norte, e Igbo no sudeste. Acontece dessas três etnias terem desenvolvido, em tempos pré-coloniais e posteriores, modos de vida fundamentalmente diferentes:

Os Hausa-Fulani eram muçulmanos e viviam em uma sociedade quase feudal, em que as relações sociais se baseavam na obediência a uma autoridade superior cujo direito ao cargo era inquestionável (pessoas comuns deviam obediência ao líder tribal, estes ao emir local, e os emires a um sultão). Os britânicos adotaram uma política menos intervencionista nessa parte da colônia para garantir a colaboração dos emires e da população sob o seu controle, e, futuramente, reproduziria este sistema nas demais regiões. A verticalização radical da sociedade Hausa-Fulani inibia a participação popular na política ao ponto das pessoas comuns rejeitarem modelos administrativos mais liberais propostos pelos britânicos como sacrílegos. Como consequência, as comunidades nortenhas permaneceram fechadas aos modelos de educação e desenvolvimento implementados em outras áreas, e o norte da Nigéria permaneceu praticamente estagnado;

Os Yoruba viviam em comunidades sob o domínio de monarcas, porém numa estrutura social sem a rigidez dos Hausa-Fulani. De fato, uma pessoa podia ascender na sociedade Yoruba com base nas suas posses e ganhos acumulados com seu trabalho ou por herança. Os Yoruba foram o primeiro grande grupo étnico da Nigéria a ser cristianizado e a adotar modelos ocidentais de administração da sua sociedade. Ao longo do século XX, a educação formal na região produziu entre os Yoruba uma mão de obra especializada para o setor terciário da economia que não tinha paralelo na África equatorial (com profissionais formados em administração pública, medicina, engenharia, direito, etc.);

Os Igbo, separados dos Yoruba pelo baixo curso do rio Niger, viviam tradicionalmente em comunidades auto-geridas com democracia direta: qualquer homem Igbo poderia participar das assembleias que decidiam, pelo voto, a adoção de políticas locais. Essa descentralização entre os Igbo dificultou a imposição da autoridade colonial britânica, tanto pela dificuldade de impor uma estrutura verticalizada, a partir de um ou mais líderes nativos, como pela tendência à insubordinação. Os Igbo, que foram bastante afetados pelo tráfico de escravos para a América, acabavam, pela sua tendência à autonomia e organização criativa, por desafiar o sistema escravagista (escravos Igbo ou descendentes deles lideraram revoltas em Barbados e Estados Unidos, e participaram do movimento de retorno à África com a fundação da República da Libéria). Quando finalmente foram "domados" pela imposição da presença de chefes nas comunidades já avançando no século XX, os Igbo adotaram avidamente o cristianismo e o sistema de educação ocidental às vezes às custas das suas próprias tradições.

Talvez, das três etnias, o modo de vida dos Igbo tenha sido o mais afetado por esse processo de ocidentalização. Como consequência, o sudeste da Nigéria se tornou o principal foco de desenvolvimento econômico da colônia (a despeito da distância da antiga capital Lagos, no sudoeste). Some-se a isso a descoberta de petróleo na região do delta do Niger, e a forte demanda pela matéria prima a partir da Segunda Guerra Mundial. O ritmo de desenvolvimento da Nigéria nesse período, desigual entre sul e norte, acentuou enormemente as diferenças entre os seus grupos étnicos predominantes, e junto com isso, a desconfiança mútua. Não obstante, em todas as regiões do país, as grandes cidades tinham sempre representantes de todas elas ocupando seus nichos e, de alguma forma, cooperando entre si.

A autoridade colonial dividiu a Nigéria em três distritos, que coincidiam com as áreas controladas pelas suas etnias majoritárias, e instituiu um sistema parlamentar representativo, uma espécie de regime federal, ainda que o governo central não fosse independente. Eventualmente, os três grupos e seus aliados mais próximos dividiram-se em três partidos, legislando cada um sobre seus interesses. Por causa do surgimento de uma classe intelectual ativa no sul, Yoruba e Igbo lideravam os movimentos de independência do país a partir da década de 1950. Mas ao mesmo tempo, articulavam-se para que a estrutura desse novo Estado neutralizasse uma possível influência do norte conservador e pró-britânico, onde se concentrava a maior parte da população, e, individualmente, constituía o partido com mais representantes no parlamento. Essa neutralização se daria pela pulverização da três regiões em estados menores, com a maior parte dessas novas regiões administrativas no sul. Os Hausa-Fulani condicionaram a sua adesão à luta pela independência à manutenção dos três distritos. Em nome da causa, líderes Igbo e Yoruba, que tinham suas próprias diferenças, aceitaram.

As diferenças entre Igbo e Yoruba, concerniam, entre outros pontos, o status da capital, Lagos, cidade predominantemente Yoruba. Os Igbo queriam que ela se tornasse um distrito federal, ou "terra de ninguém", o que infureceu o partido Yoruba ao ponto de ameaçar sua secessão. De fato, eles solicitaram a inclusão ao direito de secessão nas assembleias constituintes que precederam a independência. Os Igbo eram veementemente contra, com apoio da aliança do norte.

Com as rivalidades acirradas, os três partidos começaram a investir nas suas próprias forças internas. Os três distritos começaram a se armar, e conflitos apareciam aqui e ali, geralmente na forma de brigas de gangues ou agressões a pessoas e propriedades de minorias locais.

O governo britânico, seguindo acordos pré-acertados, concedeu independência à Nigéria em outubro de 1960. O norte, com maioria dos representantes no parlamento, nomeou seu representante, Tafawa Balewa, Primeiro-Ministro. Não demorou para que o governo central, controlado pelos Hausa-Fulani, começasse a minar as forças políticas do sul, acusando seus líderes de corrupção e promovendo prisões e julgamentos particularmente rápidos, para tirá-los do caminho. Um breve sinal de aliança entre o grupo de Balewa e os Yoruba foi o sinal para um golpe de Estado em 1966, que, sob a justificativa divulgada de acabar com a corrupção, levou um grupo de militares, a maioria Igbo, a controlar o governo central e o judiciário. No norte do país, em resposta, cidadãos Igbo, às dezenas de milhares, eram presos por autoridades locais e populares, enviados a campos de prisioneiros ou executados sumariamente. Não demorou muito para que outro grupo militar assassinasse o presidente em exercício, Johnson Ironsi, e tomasse a presidência. Lideranças Igbo, contando com um enorme afluxo de imigrantes Igbo fugidos do norte, então reuniram-se no sudoeste do país e decidiram pela proclamação da independência do seu distrito, criando a República de Biafra (em alusão ao Golfo de Biafra, nome alternativo do mar ao sul, parte do Golfo da Guiné), com capital na cidade industrial de Enugu. A consequência foi a guerra.

O governo central, agora compartilhado por Hausa-Fulani e Yoruba, contando com um exército três vezes maior, agiu imediatamente e, ao final de 1967 já tinha Biafra sitiada. O rio Niger estava bloqueado, assim como os portos e estradas e o acesso aos poços de petróleo. Biafra respondeu, chegando a avançar uma coluna até 200 km da capital nigeriana. Mas o abastecimento de alimentos ficou comprometido. Mesmo diante da tragédia humanitária, o governo de Lagos chegou ao extremo de impedir a entrada de corpos da Cruz Vermelha em Biafra. Das mais de 3 milhões de pessoas que viviam na região, dois milhões morreram de fome ou doenças provocadas pela desnutrição no decorrer dos 3 anos de conflito. O exército nigeriano queria evitar uma ação direta sobre uma região que pretendia governar em seguida, e deliberadamente deixou que o desabastecimento fragilizasse o inimigo. Para ataques diretos, os nigerianos empregavam mercenários estrangeiros, tática adotada também por Biafra.

O envolvimento internacional tornava a guerra mais confusa. Os britânicos tinham uma aliança com os nortenhos e tinham interesse em manter a ex-colônia coesa, principalmente por que Biafra contava com a simpatia (mas não o reconhecimento) da França e Israel. Soviéticos apoiavam o governo nigeriano. Todos esses atores forneciam armas aos dois lados do conflito (a França cedia a Biafra armamentos capturados aos alemães na Segunda Guerra Mundial, e oficialmente vendia novos ao governo nigeriano). O apoio franco a Biafra vinha dos únicos cinco países que reconheciam sua independência (Tanzânia, Gabão, Costa do Marfim, Zâmbia, e, único fora da África, o Haiti), que na prática não podiam prestar qualquer auxílio. Apenas a Costa do Marfim atuava como intermediário para a entrega de armas francesas a Biafra. Os Estados Unidos estavam apenas preocupados com a crise humanitária que chegava dramaticamente à grande imprensa local, causando impacto na opinião pública (o ativista Bruce Mayrock chegou ao extremo de atear fogo ao próprio corpo em protesto diante do prédio das Nações Unidas), mas agiu apenas para proteger seus investimentos na Nigéria.

Finalmente, em dezembro de 1969, com apoio britânico alimentando sua máquina de guerra, o governo nigeriano lançou uma ofensiva final por terra e pelo mar. O presidente de Biafra, Chukwuemeka Ojukwu, fugiu do país, e uma a uma as principais cidades capitularam aos invasores. Em 12 de janeiro o que restava da autoridade secessionista em Enugu entregou um pedido de cessar fogo ao general Yakubu Gowon. A guerra terminou três dias depois, com a ocupação militar de todo o distrito e sua reincorporação à Nigéria.

A guerra em Biafra causou mais danos humanitários do que materiais. Talvez um terço dos seus soldados, cerca de 10 mil, tenham morrido em ação. Grande parte da população civil pereceu pela fome. O comprometimento demográfico, e as sanções do governo central às lideranças e aos direitos civis na região retardaram a sua recuperação econômica, deixando os Igbo atualmente vulneráveis a perseguições políticas. As tensões étnicas se agravaram: o norte, mais pobre, porém mais populoso, continuaria sobre uma rígida estrutura hierárquica cimentada no Islã, permanentemente ressentido da predominância do sul nos negócios do Estado, até que, no começo do século XXI, um movimento especificamente contra a implementação de uma educação laica no modelo ocidental se convertesse numa milícia armada fundamentalmente islâmica, o Boko Haram, ainda em atividade. Os Yoruba, por sua vez, concederam em mover a capital para uma nova cidade, projetada e construída a partir dos anos 1970, no centro do país (Abuja) para contemplar as três etnias e tentar amenizar as tensões. Mas mesmo sob regime democrático desde 1999 e com uma economia que lidera toda a África equatorial, a Nigéria ainda não consegue conciliar os interesses dos grupos étnicos e religiosos sob seu governo, e, com a maior população da África e a maior reserva de petróleo do continente, é um grande barril de pólvora.

No Brasil, onde as tragédias não são levadas a sério, "Biafra" se tornou um apelido comum às pessoas mais magras (motivo pelo qual foi apelidado o cantor Byafra). No mundo, este episódio ficaria marcado como a mais chocante crise humanitária na África até o advento da crise na Etiópia no final dos anos 80. Em resposta à crise em Biafra e às restrições impostas pelo governo nigeriano ao envio de suprimentos e socorro médico à região, médicos franceses se infiltraram clandestinamente para prestar atendimento aos casos mais graves, associando-se no que se tornaria a organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras.

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sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O apogeu dos maias

De acordo com o metódico calendário maia, no dia 8 de janeiro de 387 d.C., o comandante teotihuacano Siyaj K'ak' conquistou a cidade maia de Waka', na Guatemala, como parte da sua campanha de conquista das emergentes cidades maias em favor da metrópole mexicana de Teotihuacán.

Os maias são o produto de um contínuo desenvolvimento civilizacional centrado na Guatemala e alcançando do sul do México até Nicarágua, que pode ser traçado até antes de 2000 a.C., com períodos de apogeu e colapsos, onde o que ficou para trás foi substituído por um estrato cultural, social e político baseado no que existia antes. Exímios agricultores que dominavam sobretudo o milho (mas também domesticavam abóboras, feijões, pimentas, cacau, abacate, e produtos da floresta com a qual sempre mantiveram contato), os mais antigos maias assentavam-se em aldeias, que se transformaram em vilas, e depois em cidades. Em 750 a.C., a cidade de Nakbe já tinha uma arquitetura monumental. Antes do ano 200 a.C., a cidade de El Mirador, com templos colossais com o formato de pirâmides escalonadas simulando montanhas com altares sacrificiais no seu topo (uma das quais é uma das maiores estruturas da Antiguidade, com 70 metros de altura, sendo esta a altura do que ainda está de pé), somava talvez 250 mil habitantes amontoados em 26 km².

Os maias não estavam sozinhos. Mais ao norte, durante esses dois milênios antes de Cristo no nosso calendário, olmecas, zapotecas, e teotihuacanos prosperaram alternadamente, contribuindo para e recebendo influências da cultura maia. Ao sul, no litoral aos pés dos andes peruanos, várias culturas baseadas na agricultura (notavelmente os Chavín, Nasca, Moche) floresciam e entravam em contato com a América Central por rotas de comércio marítimo. Essa saída pelo mar por Peru e Equador em direção à América Central era um fator de desenvolvimento econômico longe dali, na bacia amazônica, onde os povos nativos (muito, mas muito pouco conhecidos até aqui) cultivavam mandioca e escoavam uma produção excedente de farinha para o oeste. As redes de comércio do norte e do sul se cruzavam na seção de terra ocupada pelos maias, e pode ter sido um dos fatores que alimentou o desenvolvimento da região, e sua prosperidade retroalimentando o desenvolvimento civilizacional por todo este pedaço do continente americano chamado convencionalmente de Mesoamérica.

Os maias, embora identificassem uns aos outros pela língua e pela herança cultural comuns (incluindo um sistema de escrita e um calendário adotados universalmente), nunca chegaram a constituir um império propriamente dito. As cidades surgiam de acordo com a prosperidade das atividades econômicas das regiões ao seu redor e das alianças estabelecidas entre elas. O nível de organização social e política nesses centros urbanos também se desenvolvia, com cada cidade dominando as terras no seu entorno, constituindo verdadeiras cidades-estado, com suas próprias casas reais. Os reis maias, ao contrário do que ocorria no Velho Mundo, não exerciam controle sobre as terras e a produção. Seu poder e influência emanavam do caráter cerimonial dos seus cargos como intermediários ou descendentes dos deuses na terra - na prática, presidiam cerimônias religiosas destinadas a oferecer as condições ideais para a próxima colheita, para afastar doenças, garantir a fertilidade das mulheres, etc., e coordenavam projetos urbanísticos.

Em 250 d.C., esse desenvolvimento urbano chegou ao seu primeiro pico, o chamado Período Clássico, onde o mundo maia estava claramente retalhado entre suas cidades-estado. No começo do Período Clássico, as crescentes cidades maias estavam expostas à influência política de Teotihuacán, grande cidade-estado no Vale do México, a centenas de quilômetros de distância do limite norte da cultura maia.

Teotihuacán crescera fora da esfera de influência maia graças às planícies alagadas no seu entorno, domadas e cultivadas proficuamente. Ela fora ocupada por culturas distintas ao longo do tempo (os astecas se apropriaram da cidade a seu tempo, e é por eles que conhecemos o local por Teotihuacán, um nome asteca que significa "berço dos deuses"). Os teotihuacanos que a fundaram não são bem conhecidos (não se sabe a que etnia pertenciam, talvez fosse um amálgama de antigas tribos do Vale do México e imigrantes, incluindo maias), mas a cidade chegou a abrigar até 250 mil pessoas, espraiando-se por uma área quase o dobro da de El Mirador, 30 km² - o sexto maior complexo urbano do mundo em 450 d.C.. O seu contato com os maias se dava pela costa sudoeste do Golfo, onde uma rede de cidades-estado da chamada Cultura de Veracruz servia de ponte entre as duas civilizações. E assim a superpotência mexicana, a partir do século IV d.C., começou a exercer forte influência sobre a civilização ao sul.

Pelo que se pode depreender das inscrições maias, por volta de 378 Teotihuacán, governada por um certo Atlatl Cauac (ou "Coruja Lanceira", cuja existência só é conhecida pelas inscrições maias) enviou um comandante militar contra a cidade maia de Tikal. Este comandante, Siyaj K'ak' (algo que pode ser traduzido como "Fogo é Nascido") aparentemente tomou Tikal de assalto e provocou a morte do seu rei (por assassinato, execução, sacrifício ou suicídio, não se sabe). Siyaj K'ak' então estabeleceu-se como o novo verdadeiro poder em todo o norte da Guatemala, na região de Petén; ele supervisionou a nomeação de um novo rei, cuja dinastia levaria Tikal a controlar a região. Ele também instaurara novos governantes em Uaxactun e Copán, cujas dinastias mais tarde declaravam descender de Atlatl Cauac, atribuindo o seu poder à proeminência da cidade mexicana. O próprio rei de Tikal recém empossado por Siyaj K'ak' clamava ser filho desse tal Atlatl Cauac (300 anos depois um descendente em Tikal o homenagearia como "O Sagrado"). A influência de Teotihuacán sobre as cidades conquistadas foi ao ponto de introduzir, na construção de pirâmides, elemento axial da cultura maia, um estilo arquitetônico único do Vale do México e inexistente no mundo maia ("tableros", grandes seções verticais sob os degraus das pirâmides interrompendo seu "talude", ou a superfície inclinada)

A cidade de Waka' (redescoberta na década de 1960 no sítio de El Perú) era uma dessas cidades. Aliada de Tikal, acabou caindo diante de Siyaj K'ak'  em 387 (mesmo aqui não se tem por certo de que tenha sido pela força ou pela diplomacia, apenas sabe-se que se trata de um comandante por ser representado em trajes militares teotihuacanos). Waka' permaneceu nesta nova liga pró-Teotihuacán até talvez as mortes de Siyaj K'ak' e Atlatl Cauac, no século V. A partir dali, Waka' foi uma das cidades que passaram a aliar-se a Calakmul, a outra potência de Petén que liderava uma espécie de resistência contra a interferência teotihuacana na região. Enquanto Teotihuacán controlou Tikal, esta e Calakmul polarizaram a política no norte da Guatemala, costurando alianças, e conquistando para si aliados importantes do rival.

De uma forma ou de outra, toda a região prosperou com essa competição durante cerca de 250 anos. Porém, em algum momento da segunda metade do século VII, Teotihuacán foi saqueada e queimada, sua nobreza foi destituída. Uma possível revolta interna, talvez provocada por uma prolongada crise na produção agrícola no Vale do México, acabou causando a ruptura da estrutura social que mantinha aquela sociedade multiétnica coesa. A cidade foi praticamente abandonada, e o vácuo de poder local disputado entre suas rivais. A primeira consequência foi a dramática guinada nas relações de poder em Petén: um dos herdeiros da casa reinante de Tikal quase imediatamente depôs seu rei e assumiu o trono, jurando lealdade a Calakmul (apenas para, logo depois, destruí-la, levando junto consigo Waka'). Teotihuacán também exercia influência em outras regiões, extendendo seus dedos até Copán, em Honduras, onde o desequilíbrio político também foi sentido.

Teotihuacán foi uma das forças que levaram ao período mais próspero da história maia, e sua repentina retirada de cena deixou a região num turbilhão político no pior momento possível: a população maia crescera além do limite do que suas terras agricultáveis e suas florestas remanescentes podiam suportar naquele momento. A partir do século IX, começam a haver grandes destruições, dinastias são depostas e substituídas por usurpadores tão efêmeros ou insignificantes que seus nomes nem foram registrados, e quase todas as cidades são abandonadas - junto com as cidades, vários aspectos da civilização, como a reprodução do calendário e seu uso na datação de eventos, a produção artística e cultura material, e a estrutura religiosa. Algumas cidades em Yucatán, como Chichén Itza sobreviveram por algum tempo, possivelmente sustentando levas de imigrantes, mas acabariam igualmente abandonadas antes de 1100. A população foi para as áreas rurais e florestais, e mesmo lá, grandes concentrações populacionais foram declinando ao longo do tempo por causa da fome; esqueletos humanos do século IX ao XIII mostram consistentemente sinais de desnutrição e doenças associadas. Incapaz politicamente de coordenar esforços para reverter os efeitos da fome no primeiro momento (os reis se voltaram para a construção de templos e a guerra como resposta), o mundo maia mergulhou num profundo declínio, do qual nunca se recuperaria totalmente.

Apenas no século XIII os maias remanescentes voltariam a construir cidades e templos, mas a mudança na demografia da sua região foi tanta que essas novas cidades se localizavam longe de terras ocupadas anteriormente por milhares de anos. As novas cidades eram erigidas sobre morros e montanhas facilmente defensáveis, não mais no centro dos vales e planícies, indicando intensa atividade militar. A conquista pela guerra levou ao surgimento de pequenos reinos e confederações em Yucatán e na Guatemala. Um outro período de depressão e violência levou a um novo declínio das novas cidades maias no século XV. Quando os espanhóis chegaram em 1511, encontraram pequenos reinos enfraquecidos, e grande parte da população maia em aldeias isoladas nas florestas. As cidades que restavam e resistiam sucumbiram uma a uma sob os conquistadores europeus, mas, curiosamente, a cultura maia - sua língua, e algo das suas tradições - sobreviveu até os dias atuais graças a essas comunidades. Hoje, há cerca de 7 milhões de pessoas no México e América Central que se identificam como maias, e desses, alguns milhões falam suas línguas.