terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Guerra de Biafra

Em 12 de janeiro de 1970, o governo da república separatista de Biafra, no sudeste da Nigéria, entregou ao governo nigeriano um pedido de cessar fogo. Foi o último ato oficial da breve república, depois de quase 3 anos de uma guerra civil que ficaria registrada na memória mundial como uma das maiores tragédias humanitárias do século XX.

O que se chama hoje de Nigéria é um pedaço delimitado arbitrariamente das colônias britânicas na África equatorial, fatalmente englobando, sob uma mesma unidade geopolítica, centenas de grupos étnicos distintos. Desses grupos todos, três deles compunham a maioria da população da Nigéria colonial: os Yoruba no sudoeste (etnia que viria a ser bem representada no Brasil por causa dos escravos trazidos para cá, sobretudo no Nordeste), os Hausa-Fulani no norte, e Igbo no sudeste. Acontece dessas três etnias terem desenvolvido, em tempos pré-coloniais e posteriores, modos de vida fundamentalmente diferentes:

Os Hausa-Fulani eram muçulmanos e viviam em uma sociedade quase feudal, em que as relações sociais se baseavam na obediência a uma autoridade superior cujo direito ao cargo era inquestionável (pessoas comuns deviam obediência ao líder tribal, estes ao emir local, e os emires a um sultão). Os britânicos adotaram uma política menos intervencionista nessa parte da colônia para garantir a colaboração dos emires e da população sob o seu controle, e, futuramente, reproduziria este sistema nas demais regiões. A verticalização radical da sociedade Hausa-Fulani inibia a participação popular na política ao ponto das pessoas comuns rejeitarem modelos administrativos mais liberais propostos pelos britânicos como sacrílegos. Como consequência, as comunidades nortenhas permaneceram fechadas aos modelos de educação e desenvolvimento implementados em outras áreas, e o norte da Nigéria permaneceu praticamente estagnado;

Os Yoruba viviam em comunidades sob o domínio de monarcas, porém numa estrutura social sem a rigidez dos Hausa-Fulani. De fato, uma pessoa podia ascender na sociedade Yoruba com base nas suas posses e ganhos acumulados com seu trabalho ou por herança. Os Yoruba foram o primeiro grande grupo étnico da Nigéria a ser cristianizado e a adotar modelos ocidentais de administração da sua sociedade. Ao longo do século XX, a educação formal na região produziu entre os Yoruba uma mão de obra especializada para o setor terciário da economia que não tinha paralelo na África equatorial (com profissionais formados em administração pública, medicina, engenharia, direito, etc.);

Os Igbo, separados dos Yoruba pelo baixo curso do rio Niger, viviam tradicionalmente em comunidades auto-geridas com democracia direta: qualquer homem Igbo poderia participar das assembleias que decidiam, pelo voto, a adoção de políticas locais. Essa descentralização entre os Igbo dificultou a imposição da autoridade colonial britânica, tanto pela dificuldade de impor uma estrutura verticalizada, a partir de um ou mais líderes nativos, como pela tendência à insubordinação. Os Igbo, que foram bastante afetados pelo tráfico de escravos para a América, acabavam, pela sua tendência à autonomia e organização criativa, por desafiar o sistema escravagista (escravos Igbo ou descendentes deles lideraram revoltas em Barbados e Estados Unidos, e participaram do movimento de retorno à África com a fundação da República da Libéria). Quando finalmente foram "domados" pela imposição da presença de chefes nas comunidades já avançando no século XX, os Igbo adotaram avidamente o cristianismo e o sistema de educação ocidental às vezes às custas das suas próprias tradições.

Talvez, das três etnias, o modo de vida dos Igbo tenha sido o mais afetado por esse processo de ocidentalização. Como consequência, o sudeste da Nigéria se tornou o principal foco de desenvolvimento econômico da colônia (a despeito da distância da antiga capital Lagos, no sudoeste). Some-se a isso a descoberta de petróleo na região do delta do Niger, e a forte demanda pela matéria prima a partir da Segunda Guerra Mundial. O ritmo de desenvolvimento da Nigéria nesse período, desigual entre sul e norte, acentuou enormemente as diferenças entre os seus grupos étnicos predominantes, e junto com isso, a desconfiança mútua. Não obstante, em todas as regiões do país, as grandes cidades tinham sempre representantes de todas elas ocupando seus nichos e, de alguma forma, cooperando entre si.

A autoridade colonial dividiu a Nigéria em três distritos, que coincidiam com as áreas controladas pelas suas etnias majoritárias, e instituiu um sistema parlamentar representativo, uma espécie de regime federal, ainda que o governo central não fosse independente. Eventualmente, os três grupos e seus aliados mais próximos dividiram-se em três partidos, legislando cada um sobre seus interesses. Por causa do surgimento de uma classe intelectual ativa no sul, Yoruba e Igbo lideravam os movimentos de independência do país a partir da década de 1950. Mas ao mesmo tempo, articulavam-se para que a estrutura desse novo Estado neutralizasse uma possível influência do norte conservador e pró-britânico, onde se concentrava a maior parte da população, e, individualmente, constituía o partido com mais representantes no parlamento. Essa neutralização se daria pela pulverização da três regiões em estados menores, com a maior parte dessas novas regiões administrativas no sul. Os Hausa-Fulani condicionaram a sua adesão à luta pela independência à manutenção dos três distritos. Em nome da causa, líderes Igbo e Yoruba, que tinham suas próprias diferenças, aceitaram.

As diferenças entre Igbo e Yoruba, concerniam, entre outros pontos, o status da capital, Lagos, cidade predominantemente Yoruba. Os Igbo queriam que ela se tornasse um distrito federal, ou "terra de ninguém", o que infureceu o partido Yoruba ao ponto de ameaçar sua secessão. De fato, eles solicitaram a inclusão ao direito de secessão nas assembleias constituintes que precederam a independência. Os Igbo eram veementemente contra, com apoio da aliança do norte.

Com as rivalidades acirradas, os três partidos começaram a investir nas suas próprias forças internas. Os três distritos começaram a se armar, e conflitos apareciam aqui e ali, geralmente na forma de brigas de gangues ou agressões a pessoas e propriedades de minorias locais.

O governo britânico, seguindo acordos pré-acertados, concedeu independência à Nigéria em outubro de 1960. O norte, com maioria dos representantes no parlamento, nomeou seu representante, Tafawa Balewa, Primeiro-Ministro. Não demorou para que o governo central, controlado pelos Hausa-Fulani, começasse a minar as forças políticas do sul, acusando seus líderes de corrupção e promovendo prisões e julgamentos particularmente rápidos, para tirá-los do caminho. Um breve sinal de aliança entre o grupo de Balewa e os Yoruba foi o sinal para um golpe de Estado em 1966, que, sob a justificativa divulgada de acabar com a corrupção, levou um grupo de militares, a maioria Igbo, a controlar o governo central e o judiciário. No norte do país, em resposta, cidadãos Igbo, às dezenas de milhares, eram presos por autoridades locais e populares, enviados a campos de prisioneiros ou executados sumariamente. Não demorou muito para que outro grupo militar assassinasse o presidente em exercício, Johnson Ironsi, e tomasse a presidência. Lideranças Igbo, contando com um enorme afluxo de imigrantes Igbo fugidos do norte, então reuniram-se no sudoeste do país e decidiram pela proclamação da independência do seu distrito, criando a República de Biafra (em alusão ao Golfo de Biafra, nome alternativo do mar ao sul, parte do Golfo da Guiné), com capital na cidade industrial de Enugu. A consequência foi a guerra.

O governo central, agora compartilhado por Hausa-Fulani e Yoruba, contando com um exército três vezes maior, agiu imediatamente e, ao final de 1967 já tinha Biafra sitiada. O rio Niger estava bloqueado, assim como os portos e estradas e o acesso aos poços de petróleo. Biafra respondeu, chegando a avançar uma coluna até 200 km da capital nigeriana. Mas o abastecimento de alimentos ficou comprometido. Mesmo diante da tragédia humanitária, o governo de Lagos chegou ao extremo de impedir a entrada de corpos da Cruz Vermelha em Biafra. Das mais de 3 milhões de pessoas que viviam na região, dois milhões morreram de fome ou doenças provocadas pela desnutrição no decorrer dos 3 anos de conflito. O exército nigeriano queria evitar uma ação direta sobre uma região que pretendia governar em seguida, e deliberadamente deixou que o desabastecimento fragilizasse o inimigo. Para ataques diretos, os nigerianos empregavam mercenários estrangeiros, tática adotada também por Biafra.

O envolvimento internacional tornava a guerra mais confusa. Os britânicos tinham uma aliança com os nortenhos e tinham interesse em manter a ex-colônia coesa, principalmente por que Biafra contava com a simpatia (mas não o reconhecimento) da França e Israel. Soviéticos apoiavam o governo nigeriano. Todos esses atores forneciam armas aos dois lados do conflito (a França cedia a Biafra armamentos capturados aos alemães na Segunda Guerra Mundial, e oficialmente vendia novos ao governo nigeriano). O apoio franco a Biafra vinha dos únicos cinco países que reconheciam sua independência (Tanzânia, Gabão, Costa do Marfim, Zâmbia, e, único fora da África, o Haiti), que na prática não podiam prestar qualquer auxílio. Apenas a Costa do Marfim atuava como intermediário para a entrega de armas francesas a Biafra. Os Estados Unidos estavam apenas preocupados com a crise humanitária que chegava dramaticamente à grande imprensa local, causando impacto na opinião pública (o ativista Bruce Mayrock chegou ao extremo de atear fogo ao próprio corpo em protesto diante do prédio das Nações Unidas), mas agiu apenas para proteger seus investimentos na Nigéria.

Finalmente, em dezembro de 1969, com apoio britânico alimentando sua máquina de guerra, o governo nigeriano lançou uma ofensiva final por terra e pelo mar. O presidente de Biafra, Chukwuemeka Ojukwu, fugiu do país, e uma a uma as principais cidades capitularam aos invasores. Em 12 de janeiro o que restava da autoridade secessionista em Enugu entregou um pedido de cessar fogo ao general Yakubu Gowon. A guerra terminou três dias depois, com a ocupação militar de todo o distrito e sua reincorporação à Nigéria.

A guerra em Biafra causou mais danos humanitários do que materiais. Talvez um terço dos seus soldados, cerca de 10 mil, tenham morrido em ação. Grande parte da população civil pereceu pela fome. O comprometimento demográfico, e as sanções do governo central às lideranças e aos direitos civis na região retardaram a sua recuperação econômica, deixando os Igbo atualmente vulneráveis a perseguições políticas. As tensões étnicas se agravaram: o norte, mais pobre, porém mais populoso, continuaria sobre uma rígida estrutura hierárquica cimentada no Islã, permanentemente ressentido da predominância do sul nos negócios do Estado, até que, no começo do século XXI, um movimento especificamente contra a implementação de uma educação laica no modelo ocidental se convertesse numa milícia armada fundamentalmente islâmica, o Boko Haram, ainda em atividade. Os Yoruba, por sua vez, concederam em mover a capital para uma nova cidade, projetada e construída a partir dos anos 1970, no centro do país (Abuja) para contemplar as três etnias e tentar amenizar as tensões. Mas mesmo sob regime democrático desde 1999 e com uma economia que lidera toda a África equatorial, a Nigéria ainda não consegue conciliar os interesses dos grupos étnicos e religiosos sob seu governo, e, com a maior população da África e a maior reserva de petróleo do continente, é um grande barril de pólvora.

No Brasil, onde as tragédias não são levadas a sério, "Biafra" se tornou um apelido comum às pessoas mais magras (motivo pelo qual foi apelidado o cantor Byafra). No mundo, este episódio ficaria marcado como a mais chocante crise humanitária na África até o advento da crise na Etiópia no final dos anos 80. Em resposta à crise em Biafra e às restrições impostas pelo governo nigeriano ao envio de suprimentos e socorro médico à região, médicos franceses se infiltraram clandestinamente para prestar atendimento aos casos mais graves, associando-se no que se tornaria a organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras.

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