sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Uma onda de melado

Na tarde de 15 de janeiro de 1919, na parte norte de Boston, Estados Unidos, um imenso tanque de melado explodiu liberando uma onda de líquido grosso e quente que derrubou construções, arrastou caminhões, cavalos, e matou 21 pessoas.

A destilaria Purity operava na zona metropolitana de Boston, importando melado do Caribe e usando-o como matéria prima para a fabricação de rum e etanol. Bebidas não eram o único foco da empresa, que também produzia álcool para uso industrial e bélico. A companhia atendia a demanda da região de Boston e clientes por todo o nordeste dos Estados Unidos. Era um negócio com grande potencial de crescimento.

Em 1915 a Purity investiu na construção de um imenso tanque feito de aço para armazenagem num terreno na parte norte de Boston, região densamente populada por imigrantes italianos, e perto da qual passava uma estrada de ferro elevada de uma das linhas de trens urbanos da cidade. Era algo de 15 metros de altura, e quase o dobro de diâmetro, capaz de armazenar quase 9,5 milhões de litros de melado. Este melado era periodicamente descarregado em caminhões-tanque e transportado para a destilaria propriamente dita, localizada em Cambridge. O interior do tanque tinha um sistema de canos preenchidos com ar aquecido por um boiler no lado de fora, que servia para manter o melado aquecido e fluido mesmo no frio do inverno e permitir a descarga do produto - do contrário, ele se transformaria num caramelo de 9,5 milhões de litros de volume.

Esse tanque foi construído em 1915 e nunca havia demonstrado qualquer problema visível. Porém, foi construído de maneira quase improvisada, e não foi submetido a todos os testes de resistência. O responsável pelo projeto sequer o encheu de água para verificar vazamentos (e parece que vazava tanto que as pessoas vinham recolher melado, e o tanque era pintado de marrom para disfarçar as manchas). Ao longo dos quatro anos seguintes, ele foi preenchido até sua capacidade máxima oito vezes. O uso intermitente da capacidade máxima do tanque pode ter estressado sua estrutura metálica, ora sob pressão interna, ora sem essa pressão, mas sofrendo da fadiga resultante da dilatação e retração dos materiais sob influência dos elementos. Havia uma escotilha perto do chão, virada na direção da rua, por onde uma pessoa podia entrar para fazer inspeção ou limpeza, e desconfia-se até hoje que pudesse haver uma fadiga na sua vedação, ou uma rachadura por ali.

Com um tanque gigante e pouco seguro, a Purity começou a acelerar sua produção de álcool a partir de 1917. Em 1 de outubro daquele ano, o senado americano havia aprovado em primeira instância a XVIII Emenda Constitucional, que proibia a fabricação, o transporte, e a venda de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos (embora não o seu consumo em propriedades particulares, um panorama bastante parecido com a nossa atual proibição à maconha). A proibição causaria um impacto na companhia, embora ela tivesse seus negócios fora do mercado de bebidas. Contudo, às vésperas da implementação da nova lei, a Purity começou a intensificar sua produção de rum e destilados, e seu tanque em Boston estava totalmente cheio no dia 14 de janeiro de 1919.

Aconteceu de Boston ter passado aquela semana sob um "calor" inesperado para esta época do ano: a temperatura subiu de -17°C para 5°C. Embora para nós aqui isso ainda seja frio, adicionado ao calor interno do tanque, foi o suficiente para acelerar o processo natural de fermentação do melado armazenado. A fermentação gera gás carbônico, e esse gás pode ter aumentado a pressão interna do tanque além do suportável.

Durante a tarde do dia 15, um estrondo foi ouvido do pátio. O deslocamento de ar fez as pessoas serem atiradas longe. Uma brecha no tanque fez com que ele explodisse violentamente na direção da rua. Rebites atingiram pessoas e estruturas. A seguir, uma onda de melado fumegante que chegou a mais de 7,5 metros de altura se esparramou por todos os lados, tolhendo tudo que estava ao alcance: transeuntes, animais, caminhões, estruturas em volta. Levar um banho de melado não parece algo tão assustador, mas esse volume de líquido viscoso e quente, movendo-se a mais de 50 km/h, foi capaz de derrubar os postos dos bombeiros e da polícia ao lado, destroçar o corpo de cavalos, arrasar até o chão o escritório da Purity que ficava entre o tanque e a rua, e destruir pilares da estrada de ferro suspensa logo em frente. As pessoas que não tiveram tempo de fugir (motoristas, crianças, operários que trabalhavam ao lado, funcionários do porto, e moradores do outro lado da rua) morreram com o impacto da onda, sob destroços, ou em decorrência de ferimentos e queimaduras. Foram 21 mortos e 150 feridos. Um menino salvou-se por pouco mantendo-se na superfície do líquido grosso como se surfasse a onda (sua irmã menor foi uma das vítimas fatais). Curiosamente, a única estrutura vizinha ao tanque rompido que se manteve intacta foi o armazém da Purity, que ficava na margem do Rio Charles, ao norte, na posição oposta ao ponto de ruptura.

Os bombeiros atenderam imediatamente, e as buscas por corpos e feridos duraram dias, bem como a limpeza - com o frio o melado virou um caramelo, e foi preciso jatos de água salgada e areia para remover a substância grudenta. Depois que a onda de melado perdeu força destrutiva, ela ainda se esparramou por vários quarteirões, cobrindo gramados e entupindo bueiros daquela parte da cidade antes de se solidificar, e os trabalhadores encarregados da limpeza e dos resgates se encarregaram de espalhar mais melado onde quer que fossem nas botas, luvas e roupas.

Nos meses que se seguiram, centenas de processos contra a Purity e o depoimento de mais de 3 mil testemunhas abarrotaram o sistema judiciário de Boston. Várias hipóteses emergiram. Um químico a serviço da polícia de Massachusetts, um certo senhor Wedger, sugeriu no dia seguinte que a explosão teria sido causada por uma reação entre gases explosivos no tanque. Houve quem sugerisse que subversivos plantaram uma bomba no local (comunistas e anarquistas eram suspeitos de outros casos de explosões em áreas industriais no país). A corte nunca chegou a uma conclusão sobre as causas e responsabilidades. A Purity, que naquele momento tinha sido comprado pela United States Industrial Alcohol, decidiu pagar um montante na ordem de quase 11 milhões de dólares (valores atuais) em acordos, e cerca de 125 mil por cada vítima fatal às suas respectivas famílias. Uma análise técnica feita em 2014 com os dados sobre a estrutura do tanque concluiu que as placas de aço das suas paredes não tinham metade da espessura apropriada para um compartimento daquele tamanho, e era de qualidade inferior. A Purity (que sumiria do mapa sob o nome da sua nova proprietária) nunca reconstruiu o tanque.

Até hoje os naturais de Boston dizem que, nos dias mais quentes, sente-se nas ruas um cheiro de melado. Grande parte da área atingida mais violentamente pela explosão é hoje um complexo de parques e campos esportivos.

A XVIII Emenda foi ratificada no dia seguinte ao vazamento.

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