quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Espanha visigótica

Em 13 de janeiro de 587, o rei da Espanha visigótica, Recaredo, até então um cristão ariano, converteu-se ao catolicismo.

Os visigodos, depois de séculos forçando as fronteiras do Império Romano no Reno e no Danúbio (e obtendo sucesso em algumas dessas tentativas de invasão), configurando-se numa das principais forças "bárbaras" em oposição ao mundo romano, finalmente assentaram-se na Espanha no começo do século V. Foi uma invasão massiva e coordenada entre vândalos, alanos e suevos, que atravessaram o Reno congelado e cruzaram a Gália em direção à Espanha. Os Visigodos, então no meio do caminho, saquearam Roma em 410. O enfraquecido Império Romano do Ocidente não teve o que fazer além de conceder-lhes terras e recrutá-los nos seus exércitos como foederati. Com suas terras, os visigodos passaram a recolher impostos dos seus arrendatários romanos, sem contudo repassá-los ao Império. Com a crescente fortuna, e sem impedimentos da autoridade central, os visigodos expandiram-se a partir do sudoeste da França para o sul, abocanhando quase toda a Espanha e os Pirineus (alanos e suevos já estavam lá, ocupando a metade norte de Portugal e a Galícia, enquanto Vândalos passavam para a África), e, na prática, formaram um reino independente em 418. Alguns conflitos com o crescente poder dos seus "primos" ostrogodos, então com o esfacelado Império Romano nas mãos, e os francos, senhores da Gália, empurraram o reino visigótico mais para o sul, guardando apenas uma faixa de território na França. A capital se moveu para a romana Toletum, atual Toledo.

A impressão que se tem quando se fala do fim do Império Romano é que os cidadãos romanos - aqueles que viviam de acordo com as leis e costumes romanos, pagavam tributos a Roma e falavam o latim - subitamente sumiram, ou pelo êxodo (como se todos os romanos tivessem fugido para a Itália, por exemplo, quando francos, saxões, burgúndios, etc. tomaram posse do seu território), ou, talvez, pelo extermínio. Antes, assim como os romanos fizeram com as populações locais quando expandiram-se Itália afora, eles próprios foram lentamente assimilados pelos seus novos conquistadores. A Espanha era romanizada desde o século I a.C. (com a exceção dos bascos, que notavelmente nunca foram romanizados ou se submeteram a qualquer outro invasor da Península Ibérica), e logo cedo produziu expoentes do pensamento e da política, como Sêneca, Lucano, e os imperadores Trajano, Adriano e Teodósio, assumindo uma posição central na dinâmica do Império. Em 418, esses mesmos romanos agora deviam obediência a um rei germânico. Todo conquistador tem a opção de governar o povo conquistado, ou substituí-lo por colonos do seu próprio povo. Para sorte dos romanos espanhóis, eles preferiram governá-los.

Por causa da própria origem do assentamento visigótico da Espanha - o rei Ataulfo obteve do imperador romano Honório o direito de assentar seus homens ali se expulsassem os vândalos, alanos e outros - e da longa convivência, principalmente entre os visigodos foederati a serviço de Roma, os visigodos estabeleceram na Espanha romanizada uma espécie de continuação da sociedade romana pré-existente; embora ali o trono passasse de pai para filho (ao contrário de Roma, que, mesmo no fim, de uma forma ou de outra, elegia seus imperadores com o aval do senado), os romanos continuaram cultivando a terra, comerciando, e conduzindo a burocracia estatal, usando o latim como língua oficial. Os visigodos assumiram ali o papel dos patrícios, a classe mais alta da sociedade romana, donos de terras, preferidos para ocupar cargos de comando e obter favores do Estado. Para o plebeu ibero-romano, muito pouco mudou.

Ainda assim, havia um ponto de atrito entre conquistadores e conquistados, um que punha em risco a estabilidade do domínio germânico: religião.

Os visigodos eram adeptos históricos e entusiasmados do arianismo, corrente do cristianismo que defendia que Jesus, enquanto filho de Deus, não era o próprio Deus, mas subordinado ao Pai, e que o Espírito Santo, igualmente, era uma entidade independente, que obedecia ao Pai ou servia-lhe de intermediário (como um anjo). A tese era defendida por um presbítero de Alexandria chamado Ário (daí arianismo) com base em versículos do Evangelho que permitem esta interpretação (João 14:28 por exemplo), e considerada herética no Concílio de Nicéia, em 325. Ário e seguidores foram excomungados, e, embora fossem mal quistos em Roma, os arianos continuaram a pregar Europa afora. Um godo ariano chamado Ulfilas partiu como missionário de Constantinopla e cruzou o Danúbio. Ele foi espetacularmente bem sucedido em converter germânicos pagãos em cristãos arianos, e em questão de décadas, a maior parte das tribos germânicas convertidas eram arianas, incluindo os visigodos. Por mais que o arianismo continuasse herético, houve pouco que as igrejas de Roma ou Constantinopla pudessem fazer para mudar isso, mesmo quando esses arianos mudaram-se para dentro das fronteiras romanas.

Os ibero-romanos, no entanto, eram católicos. Quando a elite guerreira germânica, já em grande medida romanizada, chegou à Ibéria, uma maneira de estabelecer uma unidade cultural que os diferenciasse dos nativos era pela fé no trinitarismo ariano. Nem foi o caso de tentar impor o arianismo à população, pois isso os "misturaria"; à exceção dos vândalos, que perseguiriam católicos na África, os arianos ostentavam sua religião como símbolo do seu novo status social. Eles assim conservavam este estado de coisas. Os visigodos tomaram o cuidado de manter, paralelamente, estruturas clericais distintas para atender simultaneamente a elite ariana e a plebe católica sem que uma interferisse nos negócios da outra. De fato, o avanço do Império Bizantino sobre o sul da Espanha no século VI era uma ameaça maior ao catolicismo espanhol do que a heresia ariana da sua elite governante.

Em meados do século VI, um monge beneditino chamado Leandro, que se tornaria arcebispo de Sevilha, surgiu em cena. Ele se tornou próximo da princesa franca Ingunda, católica e esposa do príncipe visigodo Hermenegildo, filho mais velho do rei Liuvigildo. Leandro e Ingunda converteram o príncipe com sucesso, mas Hermenegildo foi adiante e declarou guerra contra o seu pai, de quem já era co-regente. A situação expôs Leandro como um conspirador, e ele precisou fugir para Constantinopla. Hermenegildo foi executado pela sua traição em 585 (e se tornou o mártir São Hermenegildo), e seu pai morreu no ano seguinte, tendo unificado toda a Península Ibérica sob sua coroa (os nativos bascos e cantábrios aceitaram o jugo visigótico, mas mantiveram-se autônomos).

Leandro retornou a Toledo e começou a trabalhar junto ao herdeiro sobrevivente, Recaredo. Em janeiro de 587, Recaredo renunciou ao arianismo e converteu-se ao catolicismo. Embora parte do seu círculo o seguisse logo em seguida, a nobreza e o clero arianos não aceitariam isso tão facilmente. O bispo Atáloco, ariano fervoroso, congregou uma resistência no norte com dois comandantes locais. Mesmo com apoio dos francos, eles foram derrotados (Atáloco, no entanto, não foi punido, e nem renunciou à sua fé). Outras duas conspirações arianas foram suprimidas. Em 589 Recaredo reforçou oficialmente sua posição no Terceiro Concílio de Toledo, denunciando o arianismo como heresia. De carona, também empreendeu uma perseguição aos judeus, embora a sua severidade seja matéria de debate entre historiadores (ele teria lhes tomado vários direitos, mas abolido a pena de morte para judeus que pregassem aos cristãos). A piedade de Recaredo foi recompensada pelo Papa Gregório I com um pedaço da Cruz Verdadeira, as correntes que prenderam São Pedro, e cabelos de João Batista.

A conversão de Recaredo representou um ponto axial na história da Península Ibérica. Os visigodos, convertidos ao catolicismo, agora não tinham mais qualquer barreira que os diferenciasse do povo que governavam: a língua visigótica, que sub-existia na tradição da liturgia ariana, caiu finalmente em desuso em favor do latim. Ou seja, qualquer identidade étnica visigótica desapareceu rapidamente. Contudo, embora o reino visigótico emulasse Roma, os visigodos que compunham a sua elite nunca tiveram o domínio sobre o sistema político-administrativo que lhes garantissem o controle sobre o Estado; o cargo de Imperador em Roma era mais uma maldição do que uma dádiva, mas a despeito de repetidos golpes de Estado e períodos de turbulência que perduravam por décadas, a estrutura administrativa continuava funcionando sem interrupções, o que lhe garantiu notável longevidade. Os visigodos não conseguiram implementar isto. A elite visigótica estava presa à tradição germânica de dividir entre os filhos, sem favorecimento pré-determinado, a herança do pai, o que resultava em revoltas fratricidas. De tempos em tempos, o reino entrava em convulsão porque um príncipe marchava contra outro pelo direito de governar.

As contínuas guerras civis deixaram a Espanha vulnerável quando os mouros iniciaram sua invasão em 711 - neste momento, o rei Rodrigo acabava de afirmar-se no trono após uma guerra civil contra Áquila II, e os derrotados teriam solicitado o auxílio dos mouros para punir o usurpador. Os mouros muçulmanos controlariam a Península Ibérica por séculos e redefiniriam a demografia da Península Ibérica de maneira mais efetiva do que os germânicos.

Embora os visigodos controlassem toda a Península Ibérica no momento da conversão de Recaredo, a união religiosa entre eles e os ibero-romanos representou a primeira vez em que houve uma unificação ibérica de fato. Este evento seria uma das inspirações para o prosseguimento da Reconquista entre os séculos XII e XV (outra de mesma origem seria uma alegada raiz católica do povo ibérico, em relação à qual os muçulmanos eram estrangeiros e invasores), e um motivo nacionalista, particularmente na Espanha.

O arianismo também sumiria do mapa depois que o último rei ariano, o lombardo Garibaldo, foi deposto, embora aspectos da sua doutrina possam ser identificados em diferentes correntes atuais do cristianismo.

Neste dia também: A Primeira Guerra da Abissínia

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