quinta-feira, 16 de março de 2017

"E fez o que era mau aos olhos do Senhor"

Em 16 de março de 597 a.C., o exército do rei Nabucodonosor II da Babilônia capturou Jerusalém e levou o rei Joaquim e grande parte da população judaica cativa.

Na tradução judaico-cristã, o reino de Israel teria sido fundado no final do segundo milênio a.C. por Saul, que, com a bênção da classe sacerdotal dos levitas e alguma resistência, unificara em torno de si as tribos hebraicas que havia alguns séculos se estabeleceram entre o Líbano, o Sinai, e os antigos reinos de Moabe, Amom e Edom. O reino atingiu uma estabilidade durante o reinado de Davi, e chegou a seu apogeu sob seu sucessor, Salomão - a importância de Salomão é abstraída da Bíblia, que sugere que ele teria como esposas princesas egípcias e hititas, as duas maiores potências da região no século X a.C., que teria recebido tributo da "Rainha de Sabá" (uma rainha etíope, que, segundo a tradição cristã na Etiópia, teria sido amante e gerado um filho de Salomão, de quem os imperadores etíopes alegavam ser descendentes em linhagem direta), além de obter favores dos reis fenícios, que lhe forneciam madeira do Líbano para a construção do grande Templo em Jerusalém. Após Salomão, a luta por poder e a questão religiosa romperam Israel em duas metades, a metade norte ainda identificada como Israel (com capital em Samaria), e a metade sul, o reino de Judá (centrado em Jerusalém).

Tanto Judá como Israel ocupavam uma faixa de terra que comunica o Egito com o Oriente Médio. É a encruzilhada da principal rota comercial por terra da Idade do Bronze e início da Idade do Ferro. Embora a Bíblia descreva uma miríade de reinos e confira um ar de autonomia às tribos israelitas e aos reinos formados por elas, na prática toda a região esteve, a todo momento, sob o poder direto ou influência econômica e política das super potências da região, alternadamente Egito, Hatti, Assíria, Império Babilônico (no período acadiano), e Neobabilônico (no período caldeu). E a derrota de um deles representava o domínio pelo outro, nunca a liberdade ou a autonomia plena. Mas como, de qualquer forma, a Palestina esteve sempre longe do alcance dos centros de poder desses impérios estrangeiros, para eles sempre foi mais prático manter os reinos locais funcionais e saudáveis prestando-lhes tributo e defendendo terras que entendiam como suas de invasores inimigos do que ocupá-las e construir uma administração própria sobre ela, com todos os problemas que envolvem governar um povo estrangeiro de uma cultura estranha em sua própria terra. Assim, tanto Israel como Judá funcionaram, durante praticamente toda a sua existência, como Estados-tampão que asseguravam privilégios ora de um, ora de outro império mais poderoso, e protegiam indiretamente suas fronteiras contra seus maiores rivais no cenário internacional de momento.

Por mais que a Bíblia fosse escrita por hebreus e para hebreus, construindo uma narrativa heroica do povo de Israel, ela nos serve como referência para alguns acontecimentos históricos que são confirmados por fontes externas. Na verdade, por muito tempo ela serviu como único registro de alguns eventos ou lugares considerados "míticos" até que a arqueologia fizesse seu serviço, como o registro da existência dos hititas (cuja civilização passou a ser conhecida e estudada apenas a partir de fins do século XIX, a despeito de ter sido simplesmente a principal potência econômica e militar do mundo no seu apogeu). Embora eventos como o Êxodo tenham mais evidências contra do que a favor, toda a sequência de acontecimentos narrados nos livros de Reis e Crônicas produzem uma linha do tempo relativamente confiável, e que coincide com registros deixados pelos egípcios e assírios sobre os acontecimentos na Palestina. E usando eventos-chave que podem ser datados com precisão, é possível até determinar o dia em que aconteceram. A queda de Jerusalém, narrada na Bíblia, é confirmada e precisamente datada em crônicas babilônicas. Uma delas fala diretamente do cerco findo em 16 de março de 597 a.C., e dá a dimensão da pequenez de Judá diante dos impérios ao seu redor, quando o cronista caldeu se refere a todo o reino como "Hatti" (em referência ao império hitita do qual fez parte até dois séculos antes), e a Jerusalém como "a cidade de Judá".

Nas últimas décadas de sua existência, o Império Assírio adotou uma postura agressiva na sua competição com o Egito, o que resultou na invasão do Reino de Israel, na queda de Samaria , entre 723 e 721 a.C., e na deportação dos israelitas, dispersos (talvez para sempre) pelas suas principais cidades. Judá foi salvo no último momento, quando, após uma longa campanha, soldados assírios ameaçaram desertar em massa, provocando um recuo repentino. A Assíria mergulharia em uma série de guerras civis e deixaria de existir, suplantada pelos seus antigos vassalos caldeus durante uma longa guerra, entre 620 e 612 a.C.. Estes caldeus, liderados por Nabopolassar, estabeleceram sua capital na Babilônia.

Antes do declínio final, a Assíria havia assumido uma posição tão proeminente que seu apoio foi fundamental para o estabelecimento da XXVI Dinastia no Egito. Durante o colapso do poder em Nínive, o faraó Neco II tomou a iniciativa de apoiar seus antigos aliados contra a ameaça comum vinda da Mesopotâmia, mas uma última coalizão de egípcios e assírios foi derrotada em Carquêmis, na Síria, em 605 a.C., abrindo caminho para os caldeus montarem uma ofensiva contra o Egito e assegurar seu poder sobre o Crescente Fértil.

Com o reino de Israel desfeito pelos assírios, o Reino de Judá subsistia sob a influência egípcia. O rei judeu Jeoaquim havia sido apontado ao trono sob a bênção do faraó em 609 a.C.. O próprio Neco II mudara seu nome de Eliaquim para Jeoaquim no ato da investidura do trono; anteriormente, seu pai, Josias, fora levado preso ao Egito e seu tio nomeado rei em seu lugar (apenas para ser deposto pela facção egípcia três meses depois). A derrota em Carquêmis significou que a força que escorava a autoridade de Jeoaquim não existia mais. Nabucodonosor II, sucessor de Nabopolassar, na sua ofensiva contra o Egito, precisava passar por Judá. Seu exército, que arrasava cidades filisteias no litoral, chegou a Jerusalém talvez em 604 a.C.. Desesperado, Jeoaquim firmou uma aliança com os babilônicos, entregando-lhes uma importância em tesouros e nobres cativos e garantindo sua passagem em segurança para o Egito. Nabucodonosor se retirou e aproveitou a cabeça de ponte providenciada pelos novos aliados judeus para atacar o Egito, mas a campanha fracassou em 601 a.C.. O vacilante Jeoaquim provavelmente entendeu que essa derrota significaria o ressurgimento dos seus "padrinhos" egípcios, e deixou de enviar tributos a Babilônia, oferecendo aliança novamente a Neco II.

Porém, Egito não iria mais protegê-lo, e Nabucodonosor enviou seu exército para Judá em 598 a.C. Jeoaquim morreu em uma emboscada no final daquele ano e foi sucedido por seu filho Joaquim (ou Jeconias). Joaquim herdara a "dívida" do pai. Após três meses de sítio, talvez pressionado e impossibilitado de reverter a situação ou sustentar o cerco por muito tempo (ou, dependendo do texto bíblico, por ser apenas um garoto de 8 anos!), Joaquim capitulou, entregando-se aos comandantes caldeus. Junto com ele, Nabucodonosor prendeu e conduziu à Babilônia seus parentes mais próximos, nobres e suas famílias, artesãos, e todos os homens e mulheres de posses ou capazes de trabalhar e empunhar armas, além dos tesouros contidos no Templo, deixando a cidade empobrecida e habitada por velhos, inválidos e mendigos. Joaquim (a quem o profeta Jeremias amaldiçoaria em nome de Deus, vedando sua descendência, da qual Jesus faria parte, de sentar-se novamente no trono de Jerusalém), mesmo mantido cativo por mais de 30 anos, acabou tendo uma vida mansa no exílio, com a família sustentada por Nabucodonosor, e mesmo servindo a seu sucessor, Evil-Merodaque (ou Amel-Marduque) como seu conselheiro.

Para manter Judá como Estado-tampão, o soberano da Babilônia nomeou um tio de Joaquim, Zedequias, ao trono. Este Zedequias, mesmo aconselhado pelo profeta Jeremias, sendo jovem e orgulhoso, rebelou-se buscando aliança com o novo faraó Apriés. Isso não impediu os babilônicos de cercarem novamente Jerusalém, um cerco prolongado de 30 meses que teria levado os habitantes à miséria e talvez ao canibalismo. Ao final, com a resistência rompida e os inimigos invadindo a cidade (que foi arrasada, e seu Templo destruído), Zedequias tentou fugir com seus familiares, mas foi capturado e obrigado a ver seus parentes serem executados selvagemente, antes de ter os olhos arrancados e ser arrastado para a Babilônia. Judá foi tornada uma província totalmente integrada à administração neobabilônica, governada diretamente por um designatário de Nabucodonosor, um hebreu chamado Gedalias, e guardada por um destacamento do exército caldeu. Jerusalém nunca mais viu um rei da linhagem de Davi.

A existência da Arca da Aliança é uma questão de fé, porque tal artefato tão extraordinário não é mencionado em nenhum lugar fora da Bíblia, nem sequer entre os filisteus, que a teriam capturado e guardado como um tesouro valioso. Supondo ela ter existido, ela deixa de ser mencionada na Bíblia muito antes destes acontecimentos. Na última menção a ela, estava guardada no Santo dos Santos, um cômodo no interior do Templo de Salomão ao qual a Bíblia dá uma descrição particularmente rica. Por isso, é ponto pacífico que ela tivesse permanecido inviolada no Templo desde a sua construção. A Bíblia, contudo, não registra o momento em que ela desaparece. Uma das possibilidades é que ela tenha sido levada para a Babilônia como parte do tesouro do templo na primeira conquista de Jerusalém (na data de hoje). Outra possibilidade igual é que tenha sido levada, e/ou destruída, quando a cidade caiu pela segunda vez (os babilônios estavam atrás de ouro, e a Arca, embora folheada a ouro, era apenas uma caixa de madeira sem valor simbólico para eles). Os profetas Jeremias e Ezequiel, que foram testemunhas de grande parte deste período, não nos dão qualquer informação a respeito.

A destruição do Templo marca o início da primeira diáspora judaica - embora o grosso da população judaica já estivesse no exílio na Babilônia, a destruição da sua capital e cidade santa os deixou momentaneamente sem um "lar" ao qual pudessem aspirar retornar. Seria um conquistador persa - Ciro - quem comandaria o retorno dos judeus cativos à Palestina e a reconstrução do seu país.

quarta-feira, 8 de março de 2017

Baronesa do ar

Em 8 de março de 1910, antes desta data ser usada para comemorar o Dia Internacional da Mulher, Elise Raymonde Deroche, conhecida também como "Baronesa de Laroche", se tornou a primeira mulher a receber uma licença para pilotar aviões.

Elise Raymonde Deroche nasceu em 1882 em Paris, filha de um encanador. Criança inquieta, brincava com meninos e praticava esportes. Conforme crescia, seu interesse migrava para veículos a motor, especialmente motocicletas. Aventurou-se brevemente como atriz, conheceu algumas figuras famosas da época. Dizia-se ter um charme arrebatador que lhe abria portas.

Na virada do século, Paris vivia um período de efervescência no campo da mecânica e da engenharia: como forma de incentivo, ricaços locais e associações promoviam competições e distribuíam prêmios para engenheiros que demonstrassem publicamente, com sucesso, suas invenções. Balões dirigíveis produziam espetáculos muito populares, e em 1906, o vôo do 14-Bis - a primeira aeronave mais pesada que o ar a decolar, realizar um voo controlado e pousar, mesmo que atabalhoadamente, por seus próprios meios - construído e pilotado por Alberto Santos Dumont causou enorme impressão. Quase imediatamente engenheiros locais e estrangeiros começaram a apresentar suas próprias versões da máquina voadora, tudo coberto com grande entusiasmo pela imprensa.

Deroche acompanhava tudo com enorme curiosidade, mas só veio a presenciar um voo de verdade quando foi assistir a uma exibição de Wilbur Wright (um dos irmãos Wright, que criaram uma aeronave impulsionada por uma catapulta antes do 14-Bis). Wright permaneceu em Paris por algumas semanas e realizou cerca de 120 demonstrações públicas com seus aviões. Em maio daquele ano uma certa senhorita P. Van Pottelberghe se tornou a primeira mulher a voar em um avião, na Bélgica (como passageira). Na França, um mês e meio depois, foi a vez de Thérèse Peltier voar numa aeronave construída pelo engenheiro Charles Voisin, num voo que durou 30 minutos pilotado pelo escultor Leon Delagrange. Peltier iria além e se tornaria a primeira mulher a pilotar um avião (por 200 metros numa base militar em Turim), e chegara a se inscrever para um prêmio oferecido por Delagrange para a primeira mulher que voasse por mais de 1 quilômetro em voo solo, mas a morte do amigo em um acidente a fez desistir da aviação para sempre.

Porém, as portas estavam abertas. Em 1909, Elise (que também conhecia Delagrange, que teria sido o pai de seu filho André) entrou em contato com Charles Voisin e pediu que a ensinasse a pilotar. Sua iniciativa e jovialidade (à época tinha 21 anos) deve ter encantado Voisin, pois seu irmão Gabriel escrevera que "meu irmão estava inteiramente aos seus pés".

Elise foi até a oficina dos irmãos Voisin em Chalons, a leste de Paris. Ali, um dos mecânicos que atuava como instrutor, um certo senhor Chateau, a orientava enquanto ela taxiava um dos modelos de Voisin pela pista, e depois de alguns minutos (contra a orientação de Voisin), ela acelerou e levantou voo, sobrevoando uma distância de quase 300 metros. No dia seguinte, ela deu duas voltas sobre o campo de pouso de Chalons, sobrevoando 6 quilômetros, manobrando nas curvas com facilidade apesar dos ventos. Como o voo anterior de Thérèse Peltier não fora registrado na imprensa, o feito de Deroche foi publicado na França e na Inglaterra como o primeiro voo pilotado por uma mulher (a revista Flight de outubro de 1909 descreveu Elise como "a primeira aviadora". A revista também a chamou de "baronesa" sem qualquer motivo).

Elise (que naquela altura se apresentava publicamente como Raymonde de Laroche) sofreu uma queda em janeiro de 1910 quando a cauda do seu avião resvalou em uma árvore enquanto descia para a aterrissagem. Como a altitude era baixa, e as velocidades atingidas não eram muito altas, ela escapou com uma concussão e uma fratura no braço. Mas se recuperara, estava de novo no controle de uma aeronave em exibição em Heliópolis, no Egito, quando a Federação Aeronáutica Internacional lhe concedeu a licença número 36.

Depois do Egito, ela voou em São Petersburgo, onde a imprensa russa a apresentava como "Baronesa de Laroche" (ela incorporaria o título fictício pelo resto da vida). O parque de aviação era pequeno, e havia pouco espaço de manobra, já que os aviões não atingiam grandes alturas. Ela sobrevoou árvores, telhados, e teve que atravessar a fumaça negra das fábricas no entorno, e, ao se aproximar para o pouso, desligou o motor a 100 metros de altura, planando até o solo. O próprio Czar Nicolau II veio cumprimentá-la e perguntar como se sentia. "Com o coração na boca". Em outra exibição em Budapeste ela voara por 37 minutos, desviando de chaminés e esgrimando as correntes de ar geradas pelo calor das fábricas.

Voar naqueles primeiros anos era incrivelmente perigoso porque as máquinas eram tudo, menos seguras. Motivo pelo qual os pilotos eram vistos como heróis. A "Baronesa" se acidentou uma segunda vez numa exibição em Rouen ainda em 1910, quando uma forte corrente a obrigou a apontar o nariz para baixo, provocando a queda (ela teve a presença de espírito de manter o motor funcionando, porque se tivesse perdido velocidade, teria caído sobre o público). Ela teve múltiplas fraturas, mas voltou ao ar em alguns meses. Mais um acidente (desta vez, de carro) em 1912 causou mais ferimentos, mas Charles Voisin, que dirigia o veículo, faleceu. Não obstante, Elise voltou aos ares, conquistando um prêmio do Aeroclube da França por fazer um voo solo ininterrupto de 4 horas.

Em 1914 veio a Primeira Guerra Mundial. A Força Aérea Francesa recusou a participação de mulheres em combate, e, de fato, as poucas mulheres habilitadas a pilotar foram obrigadas a ficar em terra, mesmo para voos de demonstração, porque o ar tornara-se "muito perigoso". De forma que de Laroche contribuiu com o esforço de guerra como motorista, levando oficiais para as frentes de combate, não raro tendo que evitar os ataques de artilharia alemães. A guerra levaria a enormes avanços na aviação. Em 1919, com o fim da guerra e liberada do serviço militar, a Baronesa voltou aos ares, pilotando máquinas muito mais complexas e avançadas do que as que tinha aprendido a pilotar. Estimulada a explorar este novo potencial, em junho daquele ano ela estabeleceu dois recordes para mulheres, um de altitude máxima (4800 metros) e outro de distância percorrida (323 quilômetros).

Em 18 de julho ela se ofereceu para ser piloto de testes de um novo protótipo construído por René Caudron em Le Crotoy. Era uma aeronave de dois lugares, mas não existe informação concreta se ela estava no comando ou copilotando. De qualquer forma, na aproximação do pouso, o avião perdeu sustentação e desceu em parafuso em direção ao solo. Raymonde de Laroche morreu na hora, e o seu colega na ocasião a caminho do hospital. Seu corpo está sepultado no cemitério-parque Père Lachaise, em Paris. No aeroporto de Paris-Le Bourget, usado hoje por aeronaves de pequeno porte (onde Charles Lindbergh encerrou sua célebre travessia do Atlântico em 1927), há uma estátua em sua homenagem.

Embora mulheres intrépidas como a Baronesa de Laroche e a americana Amelia Earhart tenham se tornado celebridades da aviação do seu tempo, as mulheres nunca conquistaram muito espaço neste ramo. Em parte, talvez, por causa de restrições militares às mulheres piloto, como a que impediu a atuação de Laroche na Primeira Guerra - os "ases", todos homens, seriam heróis e se tornariam modelos para a profissão. Mesmo hoje, a aviação comercial não se apresenta como uma "coisa de mulher". Em pleno 2016, sete passageiros de um voo entre Miami e Buenos Aires se recusaram a embarcar quando souberam que a comandante e sua copiloto seriam mulheres. No Brasil, atualmente, existem apenas 197 mulheres entre quase 14 mil pilotos habilitados.