quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Breves alianças e uma guerra sangrenta

Em 10 de dezembro de 1508, o Papa Júlio II, o rei Luis XII da França, o imperador Maximiliano I do Sacro Império Romano, e o rei Fernando II de Aragão firmaram, mediante seus representantes legais, a formação da Liga de Cambrai, aliança militar originalmente contra a República de Veneza.

A passagem do século XV para o XVI apresenta muitos eventos dramáticos que transformaram a antiga Europa feudal numa região economicamente dinâmica, levando a um expansionismo comercial e colonial e a uma crescente proeminência nos negócios em escala global, alcançando África, Américas, Índia e China. Um dos eventos-chave que desencadearam vários desses processos foi, curiosamente, um revés: a perda de Constantinopla para os turcos otomanos em 1453. O Império Bizantino definhava havia séculos, mas ainda gozava da posição privilegiada da sua bem defendida capital, guardando o Estreito de Bósforo, que liga o Mediterrâneo ao Mar Negro, e permitia a passagem segura de navios até um trecho da Rota da Seda que não passava por território controlado por muçulmanos hostis. Quando os turcos tomaram a cidade, esta via se fechou. Na verdade continuou aberta, mas à mercê do humor do sultão e de piratas turcos e árabes, e acessível sob o pagamento de taxas que diminuíam a competitividade dos preços dos produtos que saíam e entravam na Europa. Apenas os venezianos, então senhores de um vasto império comercial marinho com possessões pontuais ao redor do Mediterrâneo, tinham o direito de operar o comércio nos domínios turcos. Veneza já tinha uma colônia comercial logo ao norte de Constantinopla, em Pera, quando ainda era controlada pelo Império Bizantino, e manteve os mesmos direitos depois da sua conquista.

Com a ligação com a Ásia via Mediterrâneo comprometida, as nações europeias tinham três opções: aliar-se aos turcos (como fazia Veneza, porém, com graves consequências no campo religioso), tentar quebrar seu domínio à força, ou lançar-se no desconhecido Oceano Atlântico em busca de novas rotas para o leste. Neste novo cenário, os reinos mais ocidentais de Portugal, Castela e Aragão tomaram a iniciativa. Portugal lançou repetidas expedições que tateavam a costa da África à procura de uma passagem ao sul até o Oceano Índico. O genovês Cristóvão Colombo convenceu os reis de Espanha a financiarem uma expedição que desbravaria uma rota alternativa para a Índia navegando para o oeste (adotando e convencendo-os da tese de que a Terra era esférica, embora não tivesse certeza do seu tamanho). Colombo nunca chegou à Índia, pois a América estava no caminho. Eventualmente essas nações, seguidas depois pela França e por aventureiros holandeses e ingleses, descobririam o potencial econômico da América e da África recém-descobertas, além de estabelecer rotas comerciais com a Ásia que evitavam os turcos e venezianos, guardando os lucros do comércio para si.

Países mais no interior, como a própria Veneza, os reinos e repúblicas italianos e o Sacro Império Romano, continuaram por muito tempo a insistir no Mediterrâneo como essencial às suas próprias aspirações econômicas. Veneza mesmo já estava vendo os recém consolidados reinos espanhóis, por exemplo, graças ao comércio oceânico, assumirem uma proeminência política sobre a cristandade que os venezianos só poderiam ambicionar em sonho. Mas na Itália, Veneza ainda era uma potência econômica considerável, talvez a única capaz de fazer frente à França, por exemplo, e uma atriz principal no cenário político local, que incluía o Papa. Na virada do século, quando cada nação estabelecia e adaptava seu próprio modelo de desenvolvimento, as alianças flutuavam de acordo com as conveniências de momento. Outra influência forte sobre a política italiana era a dos reis franceses, que herdaram, com ajuda do Papa, o reino de Nápoles (região pobre ocupada basicamente por pastores de ovelhas, mas que cobria praticamente metade da península).

Em 1494 explodiu uma guerra na Itália entre Ludovico Sforzza (extraoficialmente, senhor de Milão), Alfonso II (príncipe aragonês que reivindicava o direito ao trono de Nápoles) e Carlos VIII da França (que ainda pensava se aceitava ou não a oferta do Papa). Ao invadir a Itália para combater a resistência napolitana, Carlos destruiu a fortaleza de Mordano, próximo a Bolonha, e massacrou seus habitantes, deixando os italianos em choque. Rapidamente formou-se contra ele uma aliança capitaneada por Veneza (que pretendia, com o respaldo de potências ocidentais, romper relações com os otomanos e competir diretamente com eles), que incluía, entre outros, os aliados iniciais dos franceses, Milão e os Estados Papais. Também entraram na disputa o irmão de Alfonso, Fernando II de Aragão (cujo domínio incluía a Sicília), o Sacro Império Romano (aliado tradicional do Papa), e a Inglaterra.

Esta primeira guerra se estendeu até 1498, quando Carlos retornou com seu exército para a França, com receio de que a aliança no norte o encurralasse em Nápoles. Carlos morreu e foi sucedido por Luis XII. Veneza, vendo a possibilidade de partilhar as conquistas francesas no norte da Itália (especialmente o Ducado de Milão), mudou de lado. Os reis de Espanha também mudaram de lado, com a promessa francesa de repartir também o reino de Nápoles entre eles (Luís temia, com razão, uma guerra em duas frentes se invadisse a Itália sem o consentimento de Fernando II). O Papa Alexandre VI (um Borgia) também esperava apoio francês para as aspirações de seus filhos bastardos e consentiu com suas manobras. Quando o então rei de Nápoles Frederico IV abdicou em favor de Luís, franceses e aragoneses entraram em disputa sobre quem levaria o que, e Fernando II mudou de lado. A França perdeu o apoio dos Borgia com a morte de Alexandre VI e a ascensão de Júlio II (que prendera Cesare Borgia, um dos principais comandantes ao lado dos franceses na Itália). Com soldados mais experientes devido à Reconquista, Fernando acabou com as pretensões de Luis e o mandou de volta à França em 1504.

A aliança geral contra a França se dissolveu com a morte de Alexandre e da rainha Isabela de Castela. O sacro imperador arranjara um casamento de um príncipe alemão com uma filha de Luis. Mesmo Veneza aceitaria reconhecer a soberania do papado sobre a Itália e pagar tributo por cada cidade italiana sob domínio da república. Porém, a recusa de Veneza de entregar as cidades em si se tornaria novo foco de tensão. Júlio costurou uma aliança frouxa com França e Sacro Império Romano contra Veneza, e persuadiu o sacro imperador Maximiliano a atacar a república em 1508, sem sucesso. Veneza ainda desafiaria o papado indicando seu próprio candidato ao bispado de Vicenza, então vago. O Papa então convocou França, Sacro Império, e os reinos unidos de Castela e Aragão para uma aliança formal especificamente contra Veneza, firmada na cidade de Cambrai, no norte da França, prevendo a partilha de territórios venezianos aos seus signatários. O Ducado de Ferrara, ao sul de Veneza, também entrara como aliado da França, e até a Hungria oferecera auxílio. A França se moveu primeiro e rapidamente obliterou a resistência veneziana no norte. A república se rendeu ao Papa sob duros termos para manter sua independência. Porém, a França continuou a atacar a região do Veneto no ano seguinte.

O jogo de poder estava apenas começando. A França, que ocupava militarmente o norte da Itália, insistia em uma atitude agressiva contra Veneza, que já havia se rendido. O Papa Júlio II começou a se agitar contra essa ameaça comum. Ele decidiu invadir o Ducado de Ferrara com ajuda de Veneza. O pontífice deixara mercenários suíços lutando contra os franceses perto de Milão, contando que isso os deteria tempo suficiente para tomar Ferrara sem grandes problemas. Mas os franceses subornaram os suíços e marcharam para o sul, tomando Bolonha e quase encontrando o Papa na cidade. A França seguiu na ofensiva, encurralando o Papa em Ravena. Sem saída, Júlio II proclamou uma Santa Aliança contra os franceses, atraindo para seu lado o Sacro Império Romano (que tinha pretensões em território francês), a Espanha, e a Inglaterra (Henrique VIII casara-se com a princesa espanhola Catarina de Aragão e via a oportunidade de empreender conquistas conjuntas na França com seu colega Fernando II). A Liga de Cambrai passou a existir sem a França.

Embora as forças combinadas da Liga comprometessem as posições francesas, seus aliados divergiam quanto a quem deveria ficar com qual território. Não havia consenso sobre quem deveria ser nomeado duque de Milão, nem sobre a anexação de Ferrara aos Estados Papais. Ninguém queria que um dos seus aliados subitamente se tornasse mais poderoso do que os outros. Maximiliano se recusava a desocupar o Veneto, exigência de Veneza. Vendo-se marginalizada nas negociações da Liga, Veneza buscou aliança com a França, e ambos voltaram a atacar no norte da Itália em 1513. Ingleses e espanhóis atacavam diretamente a França, que respondia através de seus aliados escoceses. Com cada lado praticamente lutando por si, houveram muitas escaramuças e saques, mas nenhum ganho real para qualquer um deles. Henrique assinou uma trégua com Luis. O Papa morreu em 1513, deixando a Liga de Cambrai (ou no que ela havia se transformado) sem liderança.

A morte de Luis XII em 1515 desmobilizou os esforços de guerra na Itália... mas apenas momentaneamente. Seu filho Francisco I assumiu o trono, reivindicando também o Ducado de Milão, Ainda em aliança com Veneza, Francisco expulsou os suíços do norte da Itália. Todas as partes, exauridas, concordaram com as pretensões de Francisco, com a devolução de territórios a Veneza, com a cessão de Nápoles ao rei da Espanha, e com a autoridade dos Estados Papais sobre seus vassalos na Itália. A região veria alguma estabilidade apenas até 1521, quando Carlos V é eleito sacro imperador, e arrasta toda a Itália e a Inglaterra consigo para um novo round contra a França, culminando (mas não terminando) com o horrendo saque a Roma de 1527 e o cativeiro do Papa Clemente VII.

Quanto a Veneza, pivô de tudo isso, os problemas na Itália fizeram-na perder controle sobre suas colônias mar afora. Rompendo com os turcos, os venezianos, incapazes de defender todas as suas cidades, acabariam perdendo o Chipre, sua principal base de operações com a Ásia. Atritos contínuos com o papado e com os otomanos, além da sua importância comercial reduzida pela sua insistência em manter um império naval numa região decadente, fizeram a república definhar. Quando Napoleão chegou à frente do exército revolucionário francês para combater os austríacos em 1796, Veneza tinha apenas 9 navios de guerra em sua frota; ela foi anexada e deixou de existir como entidade política independente (exceto como Estado-fantoche da Áustria, ou por 17 meses entre 1848 e 1849 como República de San Marco) e passou a integrar, alternadamente, a Áustria-Hungria e a Itália unificada.

Para a Itália, as constantes guerras só não foram mais catastróficas, do ponto de vista demográfico, porque a região vinha de um momento de prosperidade durante o Renascimento (o crescimento demográfico na Itália diminuiu até quase estabilizar na parte final do século XVI). O envolvimento ostensivo e direto do papado em questões territoriais e seculares influenciaram nas diferentes dissenções religiosas do período, principalmente na Reforma Protestante de Martinho Lutero, e na Reforma Anglicana, a resposta de Henrique VIII à recusa do Papa Leão X, sucessor de Júlio II, em ratificar o seu divórcio com Catarina de Aragão.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Dois impérios, dois mundos

Em 8 de dezembro de 627, um exército bizantino esmagou outro bem menor do Império Sassânida, dando fim a mais de 650 anos de guerras entre os impérios Romano e Persa.

Os povos iranianos se estabeleceram como forças consideráveis no antigo Oriente Médio através do emergente reino Meda. Os persas propriamente ditos os sucederam como um poder central no Oriente Médio no século VI a.C. sob a dinastia Aquemênida, e assim prosseguiram até a sua conquista total pelos exércitos macedônios de Alexandre, O Grande, no século IV a.C.. Depois da sua morte prematura, seu vasto império foi repartido (não sem alguma violência) entre alguns dos seus principais generais. A maior parte da sua porção asiática, que correspondia ao território dominado anteriormente pelos persas, ficou nas mãos do general Seleuco, que fundaria sobre essas terras o Império Selêucida. Ali, os persas continuaram servindo como uma elite militar, administrativa e religiosa, conduzindo a predominante religião zoroastrista. Eventualmente, este novo império greco-asiático seria lentamente absorvido pelos partas (outra tribo iraniana, como os persas) no leste, e o emergente Império Romano no oeste. Durante o século I a.C., a tensão entre esses dois impérios iria crescer na região, com a instalação de Estados-satélites no Cáucaso e na Armênia, cujas lealdades flutuavam conforme a conveniência. Reis partas chegaram a tentar uma aliança com a República Romana, mas os romanos tinham suas pretensões. Roma invadiu a Armênia com auxílio dos partas, mas logo a fronteira ao longo do Eufrates se tornou uma zona de constante atrito. O controle sobre a Mesopotâmia - a região agrícola mais produtiva do mundo à época - era ambicionado por ambos os lados, e mudou de mãos com frequência.

Em 224 os persas recuperaram sua hegemonia sobre o mundo iraniano quando um persa, Ardashir I, depôs a dinastia parta, instituindo a dinastia Sassânida no poder. O Império Sassânida continuou a se opor ao Império Romano. Durante o século III, os romanos, em grave crise econômica e política, ainda entraram em uma guerra defensiva no oeste contra invasores germânicos, abrindo caminho para o avanço persa no oriente - em 260, os romanos foram derrotados em Edessa, e seu imperador, Valeriano, capturado, o que representou uma grande humilhação a Roma. Pouco mais de 20 anos depois, Roma chegou a saquear a capital Ctesifonte, mas seu imperador, Caro, morreu antes de dar prosseguimento à campanha. Em outra ofensiva romana em 363, o imperador Juliano chegou a bater os persas diante da sua capital novamente, mas não conseguiu capturá-la, e acabou emboscado e morto enquanto recuava.

A partir do final do século IV, tanto Roma como Pérsia tiveram problemas com invasores germânicos, iranianos e hunos (os hunos em especial, e seu ramo arianizado, os heftalitas, causaram considerável destruição no norte da Pérsia), o que diminuiu temporariamente as hostilidades entre os dois. Quando explodiu uma nova guerra, no começo do século VI, o Império Romano do Ocidente já não existia mais (esfacelado por invasores na Europa), e agora era o Império Bizantino, centrado em Constantinopla e construído sobre substrato helênico, quem antagonizava a Pérsia Sassânida. Novamente a região da Armênia e do Cáucaso eram os focos de disputa. Como ofensivas de ambos os lados eram constantemente repelidas, em 532 os dois impérios assinaram um "Tratado de Paz Eterna". Por alguns poucos anos, esse tratado permitiu aos bizantinos investirem na reconquista de antigos territórios romanos no ocidente, chegando a retomar grande parte da África, da Itália e da Espanha. Vendo o rival crescer, os persas logo violaram o tratado e retomaram a ofensiva na Síria. O competente general Belisário, sobrinho do imperador Juliano, responsável pela reconquista da Itália, deixou o front ocidental para lidar com os sassânidas, deixando o domínio bizantino no ocidente fatalmente mal consolidado.

As guerras continuaram de forma quase constante por todo o século VI e começo do século VII, sempre com avanços modestos, pontuais e efêmeros para um lado ou para o outro, tendo o rio Eufrates como a principal barreira geográfica impedindo a consolidação de poder de um lado sobre o outro. Uma crise política em 610 enfraqueceu a posição bizantina, e permitiu a conquista persa da Síria, da Palestina e do Egito, e ataques que arrasaram a Anatólia, a região economicamente mais importante para os bizantinos. Avaros e eslavos aproveitaram para invadir a Trácia e os Bálcãs, respectivamente, e em 626 os avaros, apoiados por forças persas, chegaram a cercar a capital bizantina. Enquanto isso, o imperador Heráclio (que tentara domar os eslavos pagãos enviando-lhes missionários ortodoxos) costurou uma aliança com as recém-chegadas tribos turcas, que arrasavam o Cáucaso e atacavam a Pérsia pelo norte (a tribo dos Khazares tinha estabelecido seu próprio império ao norte do Mar Cáspio, e aderiu à aliança). Tendo se livrado do cerco a Constantinopla graças à incapacidade dos invasores de romper as muralhas e impedir o abastecimento da cidade pelo mar, os bizantinos lançaram uma contra-ofensiva em pleno inverno, Mesopotâmia adentro (com apoio inicial dos turcos, que debandaram ao longo da expedição), chegando a Nínive, perto do coração do Império Sassânida.

As forças de Heráclio eram perseguidas pelo exército de Razates, um general armênio que decidira abandonar Tblisi, na Geórgia, no momento cercada por uma pequena força bizantina, para tentar impedir o avanço do exército principal do inimigo. No entanto, Razates só alcançou Heráclio quando se aproximavam de Nínive, já nas proximidades do Rio Tigre. Heráclio estava acampado junto às ruínas da antiga capital do Império Assírio. Seu exército constituía talvez o dobro do que dispunha o general armênio, mas haviam notícias de que pelo menos 3 mil persas estavam a caminho, e isso deve ter convencido o imperador a dar meia volta e oferecer combate.

O conhecimento superior do terreno de nada adiantou aos persas. Heráclio dispôs suas tropas em uma planície apropriada para seus lanceiros e cavaleiros pesados, e uma névoa que se erguia dos rios Tigre e Zab nas proximidades dificultava a ação dos exímios arqueiros persas. Razates, contudo, tentou um ataque massivo e decisivo. Após 8 horas de combate, as forças superiores dos bizantinos prevaleceram, e metade dos persas foram mortos, incluindo seu comandante: parece que Razates desafiou Heráclio para um combate mano-a-mano, e foi morto com apenas um golpe, a exemplo de outros dois ou três desafiantes. Triunfantes, os bizantinos continuaram a marchar, e tomaram o palácio de Dastagird, na atual Bagdá, residência favorita do imperador sassânida Cosroe II, que fugira dali. Diz-se que ali Heráclio recuperou a cruz original onde Jesus fora crucificado, capturada e mantida pelos persas como um tesouro, após uma negociação com o usurpador sassânida Cavades II, em troca da segurança de seu filho e herdeiro do trono, Ardashir. Impedido de prosseguir com a conquista da Pérsia por conta própria (as pontes sobre o canal de Haravan estavam destruídas, impedindo o avanço imediato do grosso do exército sobre o Tigre), Heráclio confirmou a aliança com o partido opositor de Cosroe, que seria assassinado logo depois. Os bizantinos retomaram o poder sobre a Síria, a Palestina e o Egito.

A guerra deixara ambos os impérios em frangalhos. A Anatólia arrasada representava um duro golpe na economia bizantina. A Pérsia mergulhou no caos político e não conseguiu reorganizar seus exércitos, nem a credibilidade de seus imperadores. A trégua após a Batalha de Nínive servia aos dois impérios. Mas enquanto ambas as potências se desgastavam infrutiferamente, um novo poder surgia ao sul: as tribos árabes estavam se unindo, pela persuasão ou pela força, em torno do profeta Maomé e sua nova fé e lei. Em 628, enquanto bizantinos e sassânidas lutavam no Rio Tigre, Maomé assegurava o domínio sobre Medina e começava a expandir em direção a Meca. A partir de 631, os muçulmanos avançariam com pouca resistência sobre a Palestina e a Mesopotâmia, conquistando vastos territórios tanto do Império Bizantino como do Sassânida. Enquanto os cristãos os freariam na Síria e resistiriam a dois novos cercos a Constantinopla (perdendo, porém, o controle sobre o Egito, o norte da África, a Espanha e algumas ilhas mediterrâneas), os sassânidas não teriam forças para impedir por muito tempo o avanço árabe e a queda de sua dinastia.

Para os bizantinos, os atritos com os persas custaram sua supremacia na Europa, e expuseram o império a sucessivas ondas de invasores, tanto árabes como turcos na Ásia, e búlgaros e húngaros na Europa, sujeitando-se também às novas potências católicas no ocidente, e dando início a um longo e agoniante declínio - de tudo que os representava, restou a ortodoxia cristã e a língua grega. Para os persas, as rachaduras deixadas pelos séculos de guerra contra o mundo romano abriram o caminho para a introdução da cultura árabe e da religião muçulmana no principal reduto do zoroastrismo, e novamente o fim do seu domínio sobre sua própria terra natal.

A perda da Palestina, tradicionalmente mantida sob domínio cristão, foi um golpe duro para a cristandade, e não demoraria muito até que esforços coordenados entre as potências cristãs na Europa (com participação restrita dos bizantinos) colocasse as duas religiões em oposição em sucessivas tentativas de retomar a Terra Santa. Os persas, por outro lado, assimilariam a cultura árabe, mas a transformariam em algo distinto - islamizado, mas não "arabificado", graças a um poderoso senso de identidade nacional e uma longuíssima e contínua tradição na língua (as línguas iranianas são indo-europeias, para quem o árabe semítico, mesmo considerado sagrado para a religião, é uma língua estranha), na escrita e no pensamento. De fato, à conquista árabe sucedeu a formação do Califado Abássida, centrado em Bagdá e administrado por califas árabes, mas baseando sua força em exércitos e comandantes iranianos, que garantiam para a Pérsia um status de semi-independência. Independente ou não, sob árabes, mongóis ou turcos, a Pérsia continuou a ser um centro de irradiação cultural do Oriente Médio, estendendo sua esfera de influência do oeste do Rio Indo até a Armênia, do Golfo Pérsico até o Mar de Aral (durante o domínio mongol na China, administradores persas eram recrutados em detrimento de chineses para exercer altos cargos administrativos da dinastia Yuan). O atual Irã, embora tenha uma participação modesta nas decisões globais, assume uma postura de contraponto às potências econômicas ocidentais, ao mesmo tempo em que, como principal centro da corrente xiita do Islã (ainda que minoritária), mantém uma posição proeminente no mundo islâmico e forte influência política no Oriente Médio.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Uma Rosa contra a segregação

Em 1 de dezembro de 1955, na cidade de Montgomery, Alabama, Rosa Parks se recusou a ceder o seu lugar num ônibus a um passageiro branco, e foi presa. Este evento deu início à escalada das lutas pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos nas décadas seguintes:

Nos Estados Unidos, a abolição da escravatura em 1867 não garantiu imediatamente aos negros a igualdade de direitos conferidos aos brancos. Como um país com um alto grau de federalização, mesmo que a Constituição fosse emendada para deixar claro que os cidadãos "de cor" deveriam ter assegurados os mesmos direitos dos demais, os estados e municípios precisam ratificar, independentemente, essas emendas para que sejam adotadas em suas Constituições estaduais, e se criem leis nas esferas estaduais e municipais que as regularizem. É um processo que, dependendo da vontade política local, pode atrasar em mais de um século a implementação de determinações da legislatura federal. A história da segregação racial no país é longa e pautada por tumultos violentos e casos pontuais de confrontamento no âmbito legal que, com a força de uma opinião pública cada vez mais esclarecida (reforçada por canais de mídia de massa mais liberais), induziram lentamente aos ajustes legais que garantiram aos negros direitos como o de frequentar as mesmas calçadas e estabelecimentos comerciais de brancos, a estabelecer residência onde quiserem, a benefícios trabalhistas, ao casamento interracial, à reunião e manifestação, ao voto, etc.. Ainda hoje, mesmo com um presidente negro, existe um abismo social que compromete a ascensão do negro na sociedade americana e vestígios de racismo que afloram constantemente em explosões de violência (2015 tem sido um ano particularmente violento nesse aspecto nos Estados Unidos), que motivam a continuação das suas lutas.

O incidente em Montgomery não foi inédito. Nas cidades onde a segregação era permitida (na forma de proteção da lei ao cidadão branco que se sentisse ofendido em qualquer sentido pelo negro, ou explicitamente na legislação), negros e brancos até podiam compartilhar do mesmo transporte público, mas havia um acordo velado (às vezes, expresso também na lei) que determinava que cada um se sentasse em determinados assentos. Em Fort Hood, no Texas, os negros deviam ocupar os lugares ao fundo dos coletivos; se um branco entrasse no ônibus e solicitasse um lugar mais à frente ocupado por um negro, ou se o motorista o fizesse, mesmo que houvesse lugares vazios, este deveria ceder o assento. Fort Hood tinha uma base militar, e os soldados e oficiais negros que serviam ali se queixavam desta situação havia tempos (também havia queixas de racismo por parte dos próprios militares). Aconteceu, em 1944, de um oficial negro do exército, Jackie Robinson (que se tornaria o primeiro jogador negro num time de baseball em uma liga não exclusiva para "pessoas de cor"), se recusar a ir para o fundo do ônibus a pedido do motorista. A discussão continuou até que, ao parar num ponto, um fiscal da empresa se envolveu, e, entre alguns transeuntes brancos que gritavam ofensas, apareceram policiais militares para conduzir Robinson para prestar esclarecimentos. Todo o tratamento já no quartel fez o tenente Robinson explodir e ameaçar "quebrar ao meio" qualquer um que o chamasse de "crioulo" novamente (nigger, uma palavra usada com forte carga pejorativa nos Estados Unidos). O caso foi à corte marcial, e Robinson foi inocentado de qualquer acusação (injúria, desordem, insubordinação), abrindo um precedente jurídico para o julgamento de outros casos semelhantes.

No mesmo ano Irene Morgan foi presa na Virgínia ao se recusar a ceder seu assento em um ônibus interestadual; o transporte interestadual era regulado por leis federais, mas ao entrar na Virgínia, o motorista mandou que se sentasse no fundo do veículo, e chamou um xerife local que a prendeu segundo as leis do seu estado. O caso foi levado adiante, até chegar à Suprema Corte, pelos advogados militantes da Associação Nacional pelo Avanço das Pessoas de Cor (NAACP), que encontraram uma brecha numa lei que regula o comércio interestadual para inocentar Morgan dois anos depois. Em novembro de 1955, após uma ação perpetrada pelo Corpo de Mulheres do Exército, a Suprema Corte "amarrou" as pontas ainda deixadas no caso Morgan e proibiu qualquer tipo de segregação imposta por motoristas ou proprietários de qualquer tipo de transporte em rotas interestaduais. Mas ainda deixou a critério dos estados adotarem ou não medidas semelhantes em viagens intermunicipais.

Mais cedo em Montgomery, em março de 1955, uma adolescente militante da ala jovem do NAACP, Claudette Colvin, de 15 anos, foi algemada e presa por se recusar a ceder seu lugar em um ônibus a um homem branco. Em Montgomery, a segregação nos ônibus, em vigor oficialmente desde 1900, se dava da seguinte maneira: passageiros brancos sentavam-se na parte da frente e preenchiam o ônibus em direção à traseira; passageiros negros faziam o contrário, e assim iam até encher o ônibus. As primeiras cinco fileiras eram exclusivas para os brancos, e negros não deveriam se sentar ali mesmo com o ônibus vazio. Se mais passageiros negros entrassem, eles deveriam ficar de pé; se mais passageiros brancos entrassem, não apenas um, mas todos os negros nos quatro assentos da fileira mais à frente deveriam ficar de pé, mesmo que apenas um branco fosse sentar ali. Quando o ônibus enchia, para que os negros não ficassem em pé perto dos brancos, eles entravam pela frente, pagavam a passagem ao motorista, desciam e entravam novamente por trás. Era comum os motoristas arrancarem com o veículo antes dos passageiros que pagaram subirem pela outra porta. Leve-se em consideração que cerca de 75% dos usuários de ônibus na cidade à época eram negros.

Rosa Parks era uma costureira por ofício que atuava na época como conselheira da ala jovem do movimento. Doze anos antes, ela mesma havia experimentado a indignidade de ter de entrar no ônibus novamente pela porta de trás para não passar pelos assentos ocupados por brancos, e ver o motorista partindo antes de subir (chovia na ocasião); ela marcou o motorista, James Blake, e decidiu nunca mais subir num ônibus dirigido por ele.

No dia 1 de dezembro, no fim do expediente, Rosa Parks embarcou num ônibus de volta para casa. Ela pagou sua passagem sentou-se num assento no corredor da sexta fileira. Os bancos à frente iam enchendo, e em determinado momento subiram mais passageiros brancos. O motorista (por pura coincidência, porque Parks não o reconhecera, o mesmo James Blake), vendo dois brancos em pé, ordenou aos quatro negros sentados mais à frente que cedessem seus lugares. Três deles se levantaram. Parks mudou de lugar, mas apenas para ocupar o assento deixado vago ao seu lado na janela. Mais tarde ela justificou que o fez não porque estava fisicamente cansada, ou mais cansada do que nos outros dias, mas estava cansada do status quo ao qual ela e todos os outros negros estavam submetidos. Blake insistiu que ela se levantasse, e ela respondeu apenas "eu não acho que deva me levantar". Um policial foi chamado, ela o esperou no seu lugar, e foi detida por violar a lei de segregação do município. A lei não previa especificamente que negros deveriam ceder lugar aos brancos em assentos reservados a negros, mas ela foi presa mesmo assim. A NAACP e um amigo pessoal de Parks pagaram a fiança e ela respondeu ao processo em liberdade. Ela se apresentaria para julgamento na semana seguinte.

Enquanto isso, a NAACP, sob a liderança de Edgar Nixon, se articulou com outros movimentos sociais e sindicatos em volta do caso Parks e decidiram convocar um boicote. Na visão da NAACP, Rosa Parks era a personagem perfeita para se tornar um símbolo popular de luta contra a desigualdade: mulher madura, casada, de temperamento suave, com emprego e boa reputação, tratada como criminosa por exigir um tratamento digno. Igrejas frequentadas por negros atuaram como veículos de divulgação em boca-a-boca do ato, e um jornal local reproduziu os folhetos impressos que eram distribuídos. A comunidade negra começou a se mobilizar, e no domingo seguinte, 4 de dezembro, em uma das igrejas, houve uma conferência onde, por unanimidade, os presentes se comprometeram com o boicote (mesmo que lhes custasse um dia de trabalho ou de aula), até que eles fossem tratados com o nível de cortesia que eles achavam devido, até que motoristas negros fossem empregados, e que os assentos fossem preenchidos por ordem de embarque. Aquela igreja era gerida por um pastor batista recém-chegado a Montgomery chamado Martin Luther King Jr..

Rosa Parks foi a julgamento numa corte local no dia seguinte por "conduta desordeira", julgada culpada e multada em 10 dólares, mais 4 em custos processuais. Uma multa irrisória, contra a qual Rosa Parks recorreu, desafiando formalmente a legalidade da segregação racial.

O boicote funcionou: apesar da chuva, nenhum morador negro em Montgomery usou o ônibus naquela segunda-feira. Alguns pegaram carona ou optaram por táxis dirigidos por negros (cobrando o valor da passagem de ônibus). Algumas mulheres brancas, sabendo o que acontecia, usaram seus carros para trazer e levar suas empregadas. A maioria foi ao trabalho ou à escola à pé. Alguns caminharam 32 quilômetros. O ato foi uma demonstração de que a comunidade estava disposta aos sacrifícios que fossem necessários dentro da lei para mudar o sistema. Desobediência civil e resistência pacífica em ação. À noite, ativistas dos movimentos envolvidos se reuniram, com a presença de Parks, para decidir pela continuação do boicote. Luther King foi nomeado para presidir a associação responsável pela organização do movimento. Quando Parks pediu a palavra, King pronunciou: "A senhora já nos falou o bastante." O boicote continuou.

A perda de 3/4 dos seus passageiros causou um impacto imediato nas operações da empresa de ônibus local. Seus advogados fizeram um acordo com a seguradora Lloyd's para anular o seguro dos carros usados no transporte de negros na cidade. Autoridades multaram taxistas que cobrassem passagem a menos de 45 cents (a passagem de ônibus era 10 cents). Chegou-se a cogitar uma reorganização nas linhas de ônibus de maneira a atender apenas os brancos (elas não passariam mais pelos distritos de maioria negra). O Conselho de Cidadãos Brancos da cidade (formado por supremacistas brancos em resposta à crescente articulação dos movimentos pelos direitos civis dos negros) dobrou de tamanho naquele mês. Alguns negros que caminhavam pelas calçadas (apinhadas de gente na hora do rush por causa do boicote) eram agredidos. A casa de Luther King, de outros líderes negros e igrejas foram atacadas com coquetéis molotov. Depois destes ataques, Martin Luther King discursou a 300 cidadãos negros enfurecidos, exortando-os a não responderem com violência, citando o verso bíblico: "Aquele que vive pela espada perecerá pela espada". Por causa da sua proeminência, Luther King também foi indiciado por interferir ativamente nos negócios da empresa de transporte (ele e outros indiciados se entregaram antes que oficiais de justiça viessem buscá-los em suas residências). Como Rosa Parks, ele optou por não pagar a multa imputada e ficou preso, atraindo atenção nacional ao movimento.

O boicote seguiu firme durante meses. Em novembro de 1956, uma ação de movimentos pelos direitos civis, que pedia a declaração de inconstitucionalidade da lei de segregação no estado do Alabama, subscrita por Claudette Corvin, pela dona de casa Aurelia Browder (cujo nome encabeçava a ação) e outras mulheres que passaram por situação semelhante à de Rosa Parks em Montgomery. chegou à esfera federal, que julgou a sua procedência. Em 20 de dezembro de 1956, 381 dias depois do início do boicote, o prefeito recebeu a notificação da Suprema Corte para anular a lei. Apesar de atos violentos em retaliação terem se seguido (atentados à vida de Luther King), a vitória em Montgomery foi a ignição de algo muito maior, protagonizado pelo recém-formado Movimento pelos Direitos Civis dos Afro-Americanos, que mobilizou o país nos anos 60 teve influência além da fronteira dos Estados Unidos (pela causa e pelo emprego de não-violência, Martin Luther King foi vigiado de perto pela CIA, recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1964 e foi assassinado em 1968).

Quanto a Rosa Parks, ela sofreu as sanções comuns aos demais ativistas políticos da época; ela e seu marido perderam o emprego e tiveram muita dificuldade em conseguir trabalho e em lidar com suas dívidas. Ela continuou se manifestando contra sinais de segregação racial, mesmo no norte do país, tido como progressista neste sentido (ela notou que Detroit, onde passou a viver, tinha distritos dominados por maiorias raciais, com os negros vivendo em piores condições que os brancos). Ela e Luther King ajudaram a eleger um deputado negro, John Conyers, pelo estado de Michigan, para quem trabalhou até se aposentar (Conyers cumpre hoje seu décimo terceiro mandato no Congresso). Com o passar dos anos, o reconhecimento do seu ato e de suas consequências lhe renderam diversas homenagens e convites para eventos comemorativos relacionados à igualdade racial (ela foi convocada para fazer parte do grupo que receberia Nelson Mandela na sua saída da prisão em 1990). Em 1995, a Ku Klux Klan, a mais notória organização supremacista branca dos Estados Unidos, resolveu patrocinar reformas na rodovia interestadual 55, no trecho do estado do Missouri, o que lhes dava o direito de exibir outdoors e placas informando que a rodovia era mantida pela organização. Como o estado não podia negar o patrocínio e suas consequências, a sua legislatura votou pela mudança de nome daquele trecho da rodovia para Autoestrada Rosa Parks. "É sempre bom ser lembrada". Quando morreu em 2005, a prefeitura de Montgomery decidiu marcar os assentos da frente dos ônibus municipais com uma tarja preta. Parks velada em Washington e Detroit com honras de um chefe de Estado.