quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Breves alianças e uma guerra sangrenta

Em 10 de dezembro de 1508, o Papa Júlio II, o rei Luis XII da França, o imperador Maximiliano I do Sacro Império Romano, e o rei Fernando II de Aragão firmaram, mediante seus representantes legais, a formação da Liga de Cambrai, aliança militar originalmente contra a República de Veneza.

A passagem do século XV para o XVI apresenta muitos eventos dramáticos que transformaram a antiga Europa feudal numa região economicamente dinâmica, levando a um expansionismo comercial e colonial e a uma crescente proeminência nos negócios em escala global, alcançando África, Américas, Índia e China. Um dos eventos-chave que desencadearam vários desses processos foi, curiosamente, um revés: a perda de Constantinopla para os turcos otomanos em 1453. O Império Bizantino definhava havia séculos, mas ainda gozava da posição privilegiada da sua bem defendida capital, guardando o Estreito de Bósforo, que liga o Mediterrâneo ao Mar Negro, e permitia a passagem segura de navios até um trecho da Rota da Seda que não passava por território controlado por muçulmanos hostis. Quando os turcos tomaram a cidade, esta via se fechou. Na verdade continuou aberta, mas à mercê do humor do sultão e de piratas turcos e árabes, e acessível sob o pagamento de taxas que diminuíam a competitividade dos preços dos produtos que saíam e entravam na Europa. Apenas os venezianos, então senhores de um vasto império comercial marinho com possessões pontuais ao redor do Mediterrâneo, tinham o direito de operar o comércio nos domínios turcos. Veneza já tinha uma colônia comercial logo ao norte de Constantinopla, em Pera, quando ainda era controlada pelo Império Bizantino, e manteve os mesmos direitos depois da sua conquista.

Com a ligação com a Ásia via Mediterrâneo comprometida, as nações europeias tinham três opções: aliar-se aos turcos (como fazia Veneza, porém, com graves consequências no campo religioso), tentar quebrar seu domínio à força, ou lançar-se no desconhecido Oceano Atlântico em busca de novas rotas para o leste. Neste novo cenário, os reinos mais ocidentais de Portugal, Castela e Aragão tomaram a iniciativa. Portugal lançou repetidas expedições que tateavam a costa da África à procura de uma passagem ao sul até o Oceano Índico. O genovês Cristóvão Colombo convenceu os reis de Espanha a financiarem uma expedição que desbravaria uma rota alternativa para a Índia navegando para o oeste (adotando e convencendo-os da tese de que a Terra era esférica, embora não tivesse certeza do seu tamanho). Colombo nunca chegou à Índia, pois a América estava no caminho. Eventualmente essas nações, seguidas depois pela França e por aventureiros holandeses e ingleses, descobririam o potencial econômico da América e da África recém-descobertas, além de estabelecer rotas comerciais com a Ásia que evitavam os turcos e venezianos, guardando os lucros do comércio para si.

Países mais no interior, como a própria Veneza, os reinos e repúblicas italianos e o Sacro Império Romano, continuaram por muito tempo a insistir no Mediterrâneo como essencial às suas próprias aspirações econômicas. Veneza mesmo já estava vendo os recém consolidados reinos espanhóis, por exemplo, graças ao comércio oceânico, assumirem uma proeminência política sobre a cristandade que os venezianos só poderiam ambicionar em sonho. Mas na Itália, Veneza ainda era uma potência econômica considerável, talvez a única capaz de fazer frente à França, por exemplo, e uma atriz principal no cenário político local, que incluía o Papa. Na virada do século, quando cada nação estabelecia e adaptava seu próprio modelo de desenvolvimento, as alianças flutuavam de acordo com as conveniências de momento. Outra influência forte sobre a política italiana era a dos reis franceses, que herdaram, com ajuda do Papa, o reino de Nápoles (região pobre ocupada basicamente por pastores de ovelhas, mas que cobria praticamente metade da península).

Em 1494 explodiu uma guerra na Itália entre Ludovico Sforzza (extraoficialmente, senhor de Milão), Alfonso II (príncipe aragonês que reivindicava o direito ao trono de Nápoles) e Carlos VIII da França (que ainda pensava se aceitava ou não a oferta do Papa). Ao invadir a Itália para combater a resistência napolitana, Carlos destruiu a fortaleza de Mordano, próximo a Bolonha, e massacrou seus habitantes, deixando os italianos em choque. Rapidamente formou-se contra ele uma aliança capitaneada por Veneza (que pretendia, com o respaldo de potências ocidentais, romper relações com os otomanos e competir diretamente com eles), que incluía, entre outros, os aliados iniciais dos franceses, Milão e os Estados Papais. Também entraram na disputa o irmão de Alfonso, Fernando II de Aragão (cujo domínio incluía a Sicília), o Sacro Império Romano (aliado tradicional do Papa), e a Inglaterra.

Esta primeira guerra se estendeu até 1498, quando Carlos retornou com seu exército para a França, com receio de que a aliança no norte o encurralasse em Nápoles. Carlos morreu e foi sucedido por Luis XII. Veneza, vendo a possibilidade de partilhar as conquistas francesas no norte da Itália (especialmente o Ducado de Milão), mudou de lado. Os reis de Espanha também mudaram de lado, com a promessa francesa de repartir também o reino de Nápoles entre eles (Luís temia, com razão, uma guerra em duas frentes se invadisse a Itália sem o consentimento de Fernando II). O Papa Alexandre VI (um Borgia) também esperava apoio francês para as aspirações de seus filhos bastardos e consentiu com suas manobras. Quando o então rei de Nápoles Frederico IV abdicou em favor de Luís, franceses e aragoneses entraram em disputa sobre quem levaria o que, e Fernando II mudou de lado. A França perdeu o apoio dos Borgia com a morte de Alexandre VI e a ascensão de Júlio II (que prendera Cesare Borgia, um dos principais comandantes ao lado dos franceses na Itália). Com soldados mais experientes devido à Reconquista, Fernando acabou com as pretensões de Luis e o mandou de volta à França em 1504.

A aliança geral contra a França se dissolveu com a morte de Alexandre e da rainha Isabela de Castela. O sacro imperador arranjara um casamento de um príncipe alemão com uma filha de Luis. Mesmo Veneza aceitaria reconhecer a soberania do papado sobre a Itália e pagar tributo por cada cidade italiana sob domínio da república. Porém, a recusa de Veneza de entregar as cidades em si se tornaria novo foco de tensão. Júlio costurou uma aliança frouxa com França e Sacro Império Romano contra Veneza, e persuadiu o sacro imperador Maximiliano a atacar a república em 1508, sem sucesso. Veneza ainda desafiaria o papado indicando seu próprio candidato ao bispado de Vicenza, então vago. O Papa então convocou França, Sacro Império, e os reinos unidos de Castela e Aragão para uma aliança formal especificamente contra Veneza, firmada na cidade de Cambrai, no norte da França, prevendo a partilha de territórios venezianos aos seus signatários. O Ducado de Ferrara, ao sul de Veneza, também entrara como aliado da França, e até a Hungria oferecera auxílio. A França se moveu primeiro e rapidamente obliterou a resistência veneziana no norte. A república se rendeu ao Papa sob duros termos para manter sua independência. Porém, a França continuou a atacar a região do Veneto no ano seguinte.

O jogo de poder estava apenas começando. A França, que ocupava militarmente o norte da Itália, insistia em uma atitude agressiva contra Veneza, que já havia se rendido. O Papa Júlio II começou a se agitar contra essa ameaça comum. Ele decidiu invadir o Ducado de Ferrara com ajuda de Veneza. O pontífice deixara mercenários suíços lutando contra os franceses perto de Milão, contando que isso os deteria tempo suficiente para tomar Ferrara sem grandes problemas. Mas os franceses subornaram os suíços e marcharam para o sul, tomando Bolonha e quase encontrando o Papa na cidade. A França seguiu na ofensiva, encurralando o Papa em Ravena. Sem saída, Júlio II proclamou uma Santa Aliança contra os franceses, atraindo para seu lado o Sacro Império Romano (que tinha pretensões em território francês), a Espanha, e a Inglaterra (Henrique VIII casara-se com a princesa espanhola Catarina de Aragão e via a oportunidade de empreender conquistas conjuntas na França com seu colega Fernando II). A Liga de Cambrai passou a existir sem a França.

Embora as forças combinadas da Liga comprometessem as posições francesas, seus aliados divergiam quanto a quem deveria ficar com qual território. Não havia consenso sobre quem deveria ser nomeado duque de Milão, nem sobre a anexação de Ferrara aos Estados Papais. Ninguém queria que um dos seus aliados subitamente se tornasse mais poderoso do que os outros. Maximiliano se recusava a desocupar o Veneto, exigência de Veneza. Vendo-se marginalizada nas negociações da Liga, Veneza buscou aliança com a França, e ambos voltaram a atacar no norte da Itália em 1513. Ingleses e espanhóis atacavam diretamente a França, que respondia através de seus aliados escoceses. Com cada lado praticamente lutando por si, houveram muitas escaramuças e saques, mas nenhum ganho real para qualquer um deles. Henrique assinou uma trégua com Luis. O Papa morreu em 1513, deixando a Liga de Cambrai (ou no que ela havia se transformado) sem liderança.

A morte de Luis XII em 1515 desmobilizou os esforços de guerra na Itália... mas apenas momentaneamente. Seu filho Francisco I assumiu o trono, reivindicando também o Ducado de Milão, Ainda em aliança com Veneza, Francisco expulsou os suíços do norte da Itália. Todas as partes, exauridas, concordaram com as pretensões de Francisco, com a devolução de territórios a Veneza, com a cessão de Nápoles ao rei da Espanha, e com a autoridade dos Estados Papais sobre seus vassalos na Itália. A região veria alguma estabilidade apenas até 1521, quando Carlos V é eleito sacro imperador, e arrasta toda a Itália e a Inglaterra consigo para um novo round contra a França, culminando (mas não terminando) com o horrendo saque a Roma de 1527 e o cativeiro do Papa Clemente VII.

Quanto a Veneza, pivô de tudo isso, os problemas na Itália fizeram-na perder controle sobre suas colônias mar afora. Rompendo com os turcos, os venezianos, incapazes de defender todas as suas cidades, acabariam perdendo o Chipre, sua principal base de operações com a Ásia. Atritos contínuos com o papado e com os otomanos, além da sua importância comercial reduzida pela sua insistência em manter um império naval numa região decadente, fizeram a república definhar. Quando Napoleão chegou à frente do exército revolucionário francês para combater os austríacos em 1796, Veneza tinha apenas 9 navios de guerra em sua frota; ela foi anexada e deixou de existir como entidade política independente (exceto como Estado-fantoche da Áustria, ou por 17 meses entre 1848 e 1849 como República de San Marco) e passou a integrar, alternadamente, a Áustria-Hungria e a Itália unificada.

Para a Itália, as constantes guerras só não foram mais catastróficas, do ponto de vista demográfico, porque a região vinha de um momento de prosperidade durante o Renascimento (o crescimento demográfico na Itália diminuiu até quase estabilizar na parte final do século XVI). O envolvimento ostensivo e direto do papado em questões territoriais e seculares influenciaram nas diferentes dissenções religiosas do período, principalmente na Reforma Protestante de Martinho Lutero, e na Reforma Anglicana, a resposta de Henrique VIII à recusa do Papa Leão X, sucessor de Júlio II, em ratificar o seu divórcio com Catarina de Aragão.

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