terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Dois impérios, dois mundos

Em 8 de dezembro de 627, um exército bizantino esmagou outro bem menor do Império Sassânida, dando fim a mais de 650 anos de guerras entre os impérios Romano e Persa.

Os povos iranianos se estabeleceram como forças consideráveis no antigo Oriente Médio através do emergente reino Meda. Os persas propriamente ditos os sucederam como um poder central no Oriente Médio no século VI a.C. sob a dinastia Aquemênida, e assim prosseguiram até a sua conquista total pelos exércitos macedônios de Alexandre, O Grande, no século IV a.C.. Depois da sua morte prematura, seu vasto império foi repartido (não sem alguma violência) entre alguns dos seus principais generais. A maior parte da sua porção asiática, que correspondia ao território dominado anteriormente pelos persas, ficou nas mãos do general Seleuco, que fundaria sobre essas terras o Império Selêucida. Ali, os persas continuaram servindo como uma elite militar, administrativa e religiosa, conduzindo a predominante religião zoroastrista. Eventualmente, este novo império greco-asiático seria lentamente absorvido pelos partas (outra tribo iraniana, como os persas) no leste, e o emergente Império Romano no oeste. Durante o século I a.C., a tensão entre esses dois impérios iria crescer na região, com a instalação de Estados-satélites no Cáucaso e na Armênia, cujas lealdades flutuavam conforme a conveniência. Reis partas chegaram a tentar uma aliança com a República Romana, mas os romanos tinham suas pretensões. Roma invadiu a Armênia com auxílio dos partas, mas logo a fronteira ao longo do Eufrates se tornou uma zona de constante atrito. O controle sobre a Mesopotâmia - a região agrícola mais produtiva do mundo à época - era ambicionado por ambos os lados, e mudou de mãos com frequência.

Em 224 os persas recuperaram sua hegemonia sobre o mundo iraniano quando um persa, Ardashir I, depôs a dinastia parta, instituindo a dinastia Sassânida no poder. O Império Sassânida continuou a se opor ao Império Romano. Durante o século III, os romanos, em grave crise econômica e política, ainda entraram em uma guerra defensiva no oeste contra invasores germânicos, abrindo caminho para o avanço persa no oriente - em 260, os romanos foram derrotados em Edessa, e seu imperador, Valeriano, capturado, o que representou uma grande humilhação a Roma. Pouco mais de 20 anos depois, Roma chegou a saquear a capital Ctesifonte, mas seu imperador, Caro, morreu antes de dar prosseguimento à campanha. Em outra ofensiva romana em 363, o imperador Juliano chegou a bater os persas diante da sua capital novamente, mas não conseguiu capturá-la, e acabou emboscado e morto enquanto recuava.

A partir do final do século IV, tanto Roma como Pérsia tiveram problemas com invasores germânicos, iranianos e hunos (os hunos em especial, e seu ramo arianizado, os heftalitas, causaram considerável destruição no norte da Pérsia), o que diminuiu temporariamente as hostilidades entre os dois. Quando explodiu uma nova guerra, no começo do século VI, o Império Romano do Ocidente já não existia mais (esfacelado por invasores na Europa), e agora era o Império Bizantino, centrado em Constantinopla e construído sobre substrato helênico, quem antagonizava a Pérsia Sassânida. Novamente a região da Armênia e do Cáucaso eram os focos de disputa. Como ofensivas de ambos os lados eram constantemente repelidas, em 532 os dois impérios assinaram um "Tratado de Paz Eterna". Por alguns poucos anos, esse tratado permitiu aos bizantinos investirem na reconquista de antigos territórios romanos no ocidente, chegando a retomar grande parte da África, da Itália e da Espanha. Vendo o rival crescer, os persas logo violaram o tratado e retomaram a ofensiva na Síria. O competente general Belisário, sobrinho do imperador Juliano, responsável pela reconquista da Itália, deixou o front ocidental para lidar com os sassânidas, deixando o domínio bizantino no ocidente fatalmente mal consolidado.

As guerras continuaram de forma quase constante por todo o século VI e começo do século VII, sempre com avanços modestos, pontuais e efêmeros para um lado ou para o outro, tendo o rio Eufrates como a principal barreira geográfica impedindo a consolidação de poder de um lado sobre o outro. Uma crise política em 610 enfraqueceu a posição bizantina, e permitiu a conquista persa da Síria, da Palestina e do Egito, e ataques que arrasaram a Anatólia, a região economicamente mais importante para os bizantinos. Avaros e eslavos aproveitaram para invadir a Trácia e os Bálcãs, respectivamente, e em 626 os avaros, apoiados por forças persas, chegaram a cercar a capital bizantina. Enquanto isso, o imperador Heráclio (que tentara domar os eslavos pagãos enviando-lhes missionários ortodoxos) costurou uma aliança com as recém-chegadas tribos turcas, que arrasavam o Cáucaso e atacavam a Pérsia pelo norte (a tribo dos Khazares tinha estabelecido seu próprio império ao norte do Mar Cáspio, e aderiu à aliança). Tendo se livrado do cerco a Constantinopla graças à incapacidade dos invasores de romper as muralhas e impedir o abastecimento da cidade pelo mar, os bizantinos lançaram uma contra-ofensiva em pleno inverno, Mesopotâmia adentro (com apoio inicial dos turcos, que debandaram ao longo da expedição), chegando a Nínive, perto do coração do Império Sassânida.

As forças de Heráclio eram perseguidas pelo exército de Razates, um general armênio que decidira abandonar Tblisi, na Geórgia, no momento cercada por uma pequena força bizantina, para tentar impedir o avanço do exército principal do inimigo. No entanto, Razates só alcançou Heráclio quando se aproximavam de Nínive, já nas proximidades do Rio Tigre. Heráclio estava acampado junto às ruínas da antiga capital do Império Assírio. Seu exército constituía talvez o dobro do que dispunha o general armênio, mas haviam notícias de que pelo menos 3 mil persas estavam a caminho, e isso deve ter convencido o imperador a dar meia volta e oferecer combate.

O conhecimento superior do terreno de nada adiantou aos persas. Heráclio dispôs suas tropas em uma planície apropriada para seus lanceiros e cavaleiros pesados, e uma névoa que se erguia dos rios Tigre e Zab nas proximidades dificultava a ação dos exímios arqueiros persas. Razates, contudo, tentou um ataque massivo e decisivo. Após 8 horas de combate, as forças superiores dos bizantinos prevaleceram, e metade dos persas foram mortos, incluindo seu comandante: parece que Razates desafiou Heráclio para um combate mano-a-mano, e foi morto com apenas um golpe, a exemplo de outros dois ou três desafiantes. Triunfantes, os bizantinos continuaram a marchar, e tomaram o palácio de Dastagird, na atual Bagdá, residência favorita do imperador sassânida Cosroe II, que fugira dali. Diz-se que ali Heráclio recuperou a cruz original onde Jesus fora crucificado, capturada e mantida pelos persas como um tesouro, após uma negociação com o usurpador sassânida Cavades II, em troca da segurança de seu filho e herdeiro do trono, Ardashir. Impedido de prosseguir com a conquista da Pérsia por conta própria (as pontes sobre o canal de Haravan estavam destruídas, impedindo o avanço imediato do grosso do exército sobre o Tigre), Heráclio confirmou a aliança com o partido opositor de Cosroe, que seria assassinado logo depois. Os bizantinos retomaram o poder sobre a Síria, a Palestina e o Egito.

A guerra deixara ambos os impérios em frangalhos. A Anatólia arrasada representava um duro golpe na economia bizantina. A Pérsia mergulhou no caos político e não conseguiu reorganizar seus exércitos, nem a credibilidade de seus imperadores. A trégua após a Batalha de Nínive servia aos dois impérios. Mas enquanto ambas as potências se desgastavam infrutiferamente, um novo poder surgia ao sul: as tribos árabes estavam se unindo, pela persuasão ou pela força, em torno do profeta Maomé e sua nova fé e lei. Em 628, enquanto bizantinos e sassânidas lutavam no Rio Tigre, Maomé assegurava o domínio sobre Medina e começava a expandir em direção a Meca. A partir de 631, os muçulmanos avançariam com pouca resistência sobre a Palestina e a Mesopotâmia, conquistando vastos territórios tanto do Império Bizantino como do Sassânida. Enquanto os cristãos os freariam na Síria e resistiriam a dois novos cercos a Constantinopla (perdendo, porém, o controle sobre o Egito, o norte da África, a Espanha e algumas ilhas mediterrâneas), os sassânidas não teriam forças para impedir por muito tempo o avanço árabe e a queda de sua dinastia.

Para os bizantinos, os atritos com os persas custaram sua supremacia na Europa, e expuseram o império a sucessivas ondas de invasores, tanto árabes como turcos na Ásia, e búlgaros e húngaros na Europa, sujeitando-se também às novas potências católicas no ocidente, e dando início a um longo e agoniante declínio - de tudo que os representava, restou a ortodoxia cristã e a língua grega. Para os persas, as rachaduras deixadas pelos séculos de guerra contra o mundo romano abriram o caminho para a introdução da cultura árabe e da religião muçulmana no principal reduto do zoroastrismo, e novamente o fim do seu domínio sobre sua própria terra natal.

A perda da Palestina, tradicionalmente mantida sob domínio cristão, foi um golpe duro para a cristandade, e não demoraria muito até que esforços coordenados entre as potências cristãs na Europa (com participação restrita dos bizantinos) colocasse as duas religiões em oposição em sucessivas tentativas de retomar a Terra Santa. Os persas, por outro lado, assimilariam a cultura árabe, mas a transformariam em algo distinto - islamizado, mas não "arabificado", graças a um poderoso senso de identidade nacional e uma longuíssima e contínua tradição na língua (as línguas iranianas são indo-europeias, para quem o árabe semítico, mesmo considerado sagrado para a religião, é uma língua estranha), na escrita e no pensamento. De fato, à conquista árabe sucedeu a formação do Califado Abássida, centrado em Bagdá e administrado por califas árabes, mas baseando sua força em exércitos e comandantes iranianos, que garantiam para a Pérsia um status de semi-independência. Independente ou não, sob árabes, mongóis ou turcos, a Pérsia continuou a ser um centro de irradiação cultural do Oriente Médio, estendendo sua esfera de influência do oeste do Rio Indo até a Armênia, do Golfo Pérsico até o Mar de Aral (durante o domínio mongol na China, administradores persas eram recrutados em detrimento de chineses para exercer altos cargos administrativos da dinastia Yuan). O atual Irã, embora tenha uma participação modesta nas decisões globais, assume uma postura de contraponto às potências econômicas ocidentais, ao mesmo tempo em que, como principal centro da corrente xiita do Islã (ainda que minoritária), mantém uma posição proeminente no mundo islâmico e forte influência política no Oriente Médio.

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