terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Uma Rosa contra a segregação

Em 1 de dezembro de 1955, na cidade de Montgomery, Alabama, Rosa Parks se recusou a ceder o seu lugar num ônibus a um passageiro branco, e foi presa. Este evento deu início à escalada das lutas pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos nas décadas seguintes:

Nos Estados Unidos, a abolição da escravatura em 1867 não garantiu imediatamente aos negros a igualdade de direitos conferidos aos brancos. Como um país com um alto grau de federalização, mesmo que a Constituição fosse emendada para deixar claro que os cidadãos "de cor" deveriam ter assegurados os mesmos direitos dos demais, os estados e municípios precisam ratificar, independentemente, essas emendas para que sejam adotadas em suas Constituições estaduais, e se criem leis nas esferas estaduais e municipais que as regularizem. É um processo que, dependendo da vontade política local, pode atrasar em mais de um século a implementação de determinações da legislatura federal. A história da segregação racial no país é longa e pautada por tumultos violentos e casos pontuais de confrontamento no âmbito legal que, com a força de uma opinião pública cada vez mais esclarecida (reforçada por canais de mídia de massa mais liberais), induziram lentamente aos ajustes legais que garantiram aos negros direitos como o de frequentar as mesmas calçadas e estabelecimentos comerciais de brancos, a estabelecer residência onde quiserem, a benefícios trabalhistas, ao casamento interracial, à reunião e manifestação, ao voto, etc.. Ainda hoje, mesmo com um presidente negro, existe um abismo social que compromete a ascensão do negro na sociedade americana e vestígios de racismo que afloram constantemente em explosões de violência (2015 tem sido um ano particularmente violento nesse aspecto nos Estados Unidos), que motivam a continuação das suas lutas.

O incidente em Montgomery não foi inédito. Nas cidades onde a segregação era permitida (na forma de proteção da lei ao cidadão branco que se sentisse ofendido em qualquer sentido pelo negro, ou explicitamente na legislação), negros e brancos até podiam compartilhar do mesmo transporte público, mas havia um acordo velado (às vezes, expresso também na lei) que determinava que cada um se sentasse em determinados assentos. Em Fort Hood, no Texas, os negros deviam ocupar os lugares ao fundo dos coletivos; se um branco entrasse no ônibus e solicitasse um lugar mais à frente ocupado por um negro, ou se o motorista o fizesse, mesmo que houvesse lugares vazios, este deveria ceder o assento. Fort Hood tinha uma base militar, e os soldados e oficiais negros que serviam ali se queixavam desta situação havia tempos (também havia queixas de racismo por parte dos próprios militares). Aconteceu, em 1944, de um oficial negro do exército, Jackie Robinson (que se tornaria o primeiro jogador negro num time de baseball em uma liga não exclusiva para "pessoas de cor"), se recusar a ir para o fundo do ônibus a pedido do motorista. A discussão continuou até que, ao parar num ponto, um fiscal da empresa se envolveu, e, entre alguns transeuntes brancos que gritavam ofensas, apareceram policiais militares para conduzir Robinson para prestar esclarecimentos. Todo o tratamento já no quartel fez o tenente Robinson explodir e ameaçar "quebrar ao meio" qualquer um que o chamasse de "crioulo" novamente (nigger, uma palavra usada com forte carga pejorativa nos Estados Unidos). O caso foi à corte marcial, e Robinson foi inocentado de qualquer acusação (injúria, desordem, insubordinação), abrindo um precedente jurídico para o julgamento de outros casos semelhantes.

No mesmo ano Irene Morgan foi presa na Virgínia ao se recusar a ceder seu assento em um ônibus interestadual; o transporte interestadual era regulado por leis federais, mas ao entrar na Virgínia, o motorista mandou que se sentasse no fundo do veículo, e chamou um xerife local que a prendeu segundo as leis do seu estado. O caso foi levado adiante, até chegar à Suprema Corte, pelos advogados militantes da Associação Nacional pelo Avanço das Pessoas de Cor (NAACP), que encontraram uma brecha numa lei que regula o comércio interestadual para inocentar Morgan dois anos depois. Em novembro de 1955, após uma ação perpetrada pelo Corpo de Mulheres do Exército, a Suprema Corte "amarrou" as pontas ainda deixadas no caso Morgan e proibiu qualquer tipo de segregação imposta por motoristas ou proprietários de qualquer tipo de transporte em rotas interestaduais. Mas ainda deixou a critério dos estados adotarem ou não medidas semelhantes em viagens intermunicipais.

Mais cedo em Montgomery, em março de 1955, uma adolescente militante da ala jovem do NAACP, Claudette Colvin, de 15 anos, foi algemada e presa por se recusar a ceder seu lugar em um ônibus a um homem branco. Em Montgomery, a segregação nos ônibus, em vigor oficialmente desde 1900, se dava da seguinte maneira: passageiros brancos sentavam-se na parte da frente e preenchiam o ônibus em direção à traseira; passageiros negros faziam o contrário, e assim iam até encher o ônibus. As primeiras cinco fileiras eram exclusivas para os brancos, e negros não deveriam se sentar ali mesmo com o ônibus vazio. Se mais passageiros negros entrassem, eles deveriam ficar de pé; se mais passageiros brancos entrassem, não apenas um, mas todos os negros nos quatro assentos da fileira mais à frente deveriam ficar de pé, mesmo que apenas um branco fosse sentar ali. Quando o ônibus enchia, para que os negros não ficassem em pé perto dos brancos, eles entravam pela frente, pagavam a passagem ao motorista, desciam e entravam novamente por trás. Era comum os motoristas arrancarem com o veículo antes dos passageiros que pagaram subirem pela outra porta. Leve-se em consideração que cerca de 75% dos usuários de ônibus na cidade à época eram negros.

Rosa Parks era uma costureira por ofício que atuava na época como conselheira da ala jovem do movimento. Doze anos antes, ela mesma havia experimentado a indignidade de ter de entrar no ônibus novamente pela porta de trás para não passar pelos assentos ocupados por brancos, e ver o motorista partindo antes de subir (chovia na ocasião); ela marcou o motorista, James Blake, e decidiu nunca mais subir num ônibus dirigido por ele.

No dia 1 de dezembro, no fim do expediente, Rosa Parks embarcou num ônibus de volta para casa. Ela pagou sua passagem sentou-se num assento no corredor da sexta fileira. Os bancos à frente iam enchendo, e em determinado momento subiram mais passageiros brancos. O motorista (por pura coincidência, porque Parks não o reconhecera, o mesmo James Blake), vendo dois brancos em pé, ordenou aos quatro negros sentados mais à frente que cedessem seus lugares. Três deles se levantaram. Parks mudou de lugar, mas apenas para ocupar o assento deixado vago ao seu lado na janela. Mais tarde ela justificou que o fez não porque estava fisicamente cansada, ou mais cansada do que nos outros dias, mas estava cansada do status quo ao qual ela e todos os outros negros estavam submetidos. Blake insistiu que ela se levantasse, e ela respondeu apenas "eu não acho que deva me levantar". Um policial foi chamado, ela o esperou no seu lugar, e foi detida por violar a lei de segregação do município. A lei não previa especificamente que negros deveriam ceder lugar aos brancos em assentos reservados a negros, mas ela foi presa mesmo assim. A NAACP e um amigo pessoal de Parks pagaram a fiança e ela respondeu ao processo em liberdade. Ela se apresentaria para julgamento na semana seguinte.

Enquanto isso, a NAACP, sob a liderança de Edgar Nixon, se articulou com outros movimentos sociais e sindicatos em volta do caso Parks e decidiram convocar um boicote. Na visão da NAACP, Rosa Parks era a personagem perfeita para se tornar um símbolo popular de luta contra a desigualdade: mulher madura, casada, de temperamento suave, com emprego e boa reputação, tratada como criminosa por exigir um tratamento digno. Igrejas frequentadas por negros atuaram como veículos de divulgação em boca-a-boca do ato, e um jornal local reproduziu os folhetos impressos que eram distribuídos. A comunidade negra começou a se mobilizar, e no domingo seguinte, 4 de dezembro, em uma das igrejas, houve uma conferência onde, por unanimidade, os presentes se comprometeram com o boicote (mesmo que lhes custasse um dia de trabalho ou de aula), até que eles fossem tratados com o nível de cortesia que eles achavam devido, até que motoristas negros fossem empregados, e que os assentos fossem preenchidos por ordem de embarque. Aquela igreja era gerida por um pastor batista recém-chegado a Montgomery chamado Martin Luther King Jr..

Rosa Parks foi a julgamento numa corte local no dia seguinte por "conduta desordeira", julgada culpada e multada em 10 dólares, mais 4 em custos processuais. Uma multa irrisória, contra a qual Rosa Parks recorreu, desafiando formalmente a legalidade da segregação racial.

O boicote funcionou: apesar da chuva, nenhum morador negro em Montgomery usou o ônibus naquela segunda-feira. Alguns pegaram carona ou optaram por táxis dirigidos por negros (cobrando o valor da passagem de ônibus). Algumas mulheres brancas, sabendo o que acontecia, usaram seus carros para trazer e levar suas empregadas. A maioria foi ao trabalho ou à escola à pé. Alguns caminharam 32 quilômetros. O ato foi uma demonstração de que a comunidade estava disposta aos sacrifícios que fossem necessários dentro da lei para mudar o sistema. Desobediência civil e resistência pacífica em ação. À noite, ativistas dos movimentos envolvidos se reuniram, com a presença de Parks, para decidir pela continuação do boicote. Luther King foi nomeado para presidir a associação responsável pela organização do movimento. Quando Parks pediu a palavra, King pronunciou: "A senhora já nos falou o bastante." O boicote continuou.

A perda de 3/4 dos seus passageiros causou um impacto imediato nas operações da empresa de ônibus local. Seus advogados fizeram um acordo com a seguradora Lloyd's para anular o seguro dos carros usados no transporte de negros na cidade. Autoridades multaram taxistas que cobrassem passagem a menos de 45 cents (a passagem de ônibus era 10 cents). Chegou-se a cogitar uma reorganização nas linhas de ônibus de maneira a atender apenas os brancos (elas não passariam mais pelos distritos de maioria negra). O Conselho de Cidadãos Brancos da cidade (formado por supremacistas brancos em resposta à crescente articulação dos movimentos pelos direitos civis dos negros) dobrou de tamanho naquele mês. Alguns negros que caminhavam pelas calçadas (apinhadas de gente na hora do rush por causa do boicote) eram agredidos. A casa de Luther King, de outros líderes negros e igrejas foram atacadas com coquetéis molotov. Depois destes ataques, Martin Luther King discursou a 300 cidadãos negros enfurecidos, exortando-os a não responderem com violência, citando o verso bíblico: "Aquele que vive pela espada perecerá pela espada". Por causa da sua proeminência, Luther King também foi indiciado por interferir ativamente nos negócios da empresa de transporte (ele e outros indiciados se entregaram antes que oficiais de justiça viessem buscá-los em suas residências). Como Rosa Parks, ele optou por não pagar a multa imputada e ficou preso, atraindo atenção nacional ao movimento.

O boicote seguiu firme durante meses. Em novembro de 1956, uma ação de movimentos pelos direitos civis, que pedia a declaração de inconstitucionalidade da lei de segregação no estado do Alabama, subscrita por Claudette Corvin, pela dona de casa Aurelia Browder (cujo nome encabeçava a ação) e outras mulheres que passaram por situação semelhante à de Rosa Parks em Montgomery. chegou à esfera federal, que julgou a sua procedência. Em 20 de dezembro de 1956, 381 dias depois do início do boicote, o prefeito recebeu a notificação da Suprema Corte para anular a lei. Apesar de atos violentos em retaliação terem se seguido (atentados à vida de Luther King), a vitória em Montgomery foi a ignição de algo muito maior, protagonizado pelo recém-formado Movimento pelos Direitos Civis dos Afro-Americanos, que mobilizou o país nos anos 60 teve influência além da fronteira dos Estados Unidos (pela causa e pelo emprego de não-violência, Martin Luther King foi vigiado de perto pela CIA, recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1964 e foi assassinado em 1968).

Quanto a Rosa Parks, ela sofreu as sanções comuns aos demais ativistas políticos da época; ela e seu marido perderam o emprego e tiveram muita dificuldade em conseguir trabalho e em lidar com suas dívidas. Ela continuou se manifestando contra sinais de segregação racial, mesmo no norte do país, tido como progressista neste sentido (ela notou que Detroit, onde passou a viver, tinha distritos dominados por maiorias raciais, com os negros vivendo em piores condições que os brancos). Ela e Luther King ajudaram a eleger um deputado negro, John Conyers, pelo estado de Michigan, para quem trabalhou até se aposentar (Conyers cumpre hoje seu décimo terceiro mandato no Congresso). Com o passar dos anos, o reconhecimento do seu ato e de suas consequências lhe renderam diversas homenagens e convites para eventos comemorativos relacionados à igualdade racial (ela foi convocada para fazer parte do grupo que receberia Nelson Mandela na sua saída da prisão em 1990). Em 1995, a Ku Klux Klan, a mais notória organização supremacista branca dos Estados Unidos, resolveu patrocinar reformas na rodovia interestadual 55, no trecho do estado do Missouri, o que lhes dava o direito de exibir outdoors e placas informando que a rodovia era mantida pela organização. Como o estado não podia negar o patrocínio e suas consequências, a sua legislatura votou pela mudança de nome daquele trecho da rodovia para Autoestrada Rosa Parks. "É sempre bom ser lembrada". Quando morreu em 2005, a prefeitura de Montgomery decidiu marcar os assentos da frente dos ônibus municipais com uma tarja preta. Parks velada em Washington e Detroit com honras de um chefe de Estado.

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