domingo, 24 de junho de 2018

Os Altos Reis da Irlanda

Em 24 de junho de 637 foi travada a Batalha de Moira, na atual Irlanda do Norte, entre os aliados de Congal Cáech, senhor do reino de Ulaid, e seu padrasto, Domnall II, Alto Rei da Irlanda.

A ilha da Irlanda foi colonizada por humanos por volta de 12500 anos atrás, ao fim última glaciação. Nessa época, até cerca de 8000 anos atrás, a Grã-Bretanha estava conectada ao continente europeu, via Alemanha, Países Baixos, e Dinamarca, por uma porção de terra hoje coberta pelo Mar do Norte, e é provável que as primeiras pessoas tenham vindo da ilha vizinha, num processo que se acelerou por volta de 10000 anos atrás. Há 6000 mil anos, culturas neolíticas vindas do continente se estabeleceram ali, trazendo consigo a agricultura, os animais de pasto, e técnicas de construção de habitações, monumentos, etc..

Quanto aos celtas, não se tem certeza de que eles, que ocupavam grande parte da Europa continental e Grã-Bretanha na alta Idade do Ferro, tenham colonizado a Irlanda e suplantado as populações locais. As ideias mais recentes, amparadas pela arqueologia e pela genética, apontam que a "celtização" da ilha tenha se dado por difusão cultural devido ao intenso e prolongado contato com os vizinhos. A última onda migratória veio provavelmente de povos ibéricos, por volta de 2500 a.C., sendo impossível identificá-los culturalmente como celtas.

A cultura céltica se conservou na Grã-Bretanha romana, mesmo após a introdução do Cristianismo, a ponto de observarmos uma regressão dos povos britânicos às suas tradicionais formas de organização social, baseadas em identidades tribais, quando a ocupação romana entrou em colapso no século V. E onde os romanos não conseguiram se estabelecer, como na Escócia, na Cornuália, e no País de Gales, os celtas nativos mantiveram suas identidades. A Irlanda, embora fosse conhecida em Roma (que a chamavam "Hibernia") por fazer parte, desde a emergência do Helenismo no Mediterrâneo, de uma rede de comércio marítimo que abastecia as grandes civilizações da Antiguidade com lãs, e trabalhos finos em metal, permaneceu relativamente intocada diante da ascensão e queda dos grandes impérios.

A Irlanda, mantida à margem por tanto tempo, passou então a desenvolver seu próprio modelo de organização social. As diferentes tribos que habitavam a ilha ocupavam territórios frouxamente determinados, e alianças voláteis ampliavam e dividiam esses territórios tao rápido que é difícil traçar sua história com solidez até a chegada do século VI. No entanto, as tribos admitiam a existência de um rei sobre elas.

Este rei, o Alto Rei, inicialmente cumpria uma função religiosa: para ser sagrado Alto Rei, o candidato precisava se casar com uma deusa (a deusa que personificava o reino que se pretendia governar), precisava ser "imaculado" (tanto fisicamente, sem ferimentos, manchas ou pintas pelo corpo, como espiritualmente), e apresentar as virtudes necessárias para não desobedecer, no passado ou no futuro, certos tabus. Quando um candidato ao cargo cumpria os requisitos, a tradição irlandesa diz que a coluna de pedra conhecida como Lia Fáil ("Pedra do Destino"), no alto Colina de Tara, literalmente gritava para que toda Irlanda ouvisse que havia um novo rei. A tradição local atribuiu a origem deste monumento à raça semi-divina dos Tuatha Dé Danann, que a trouxeram junto com outras relíquias (uma lança, uma espada, e um caldeirão, todos com poderes mágicos) das "Ilhas do Norte". O herói lendário Cúchulainn teria partido a pedra com sua espada, em fúria por ela não ter gritado quando seu protegido, Réoderg, se candidatou a Alto Rei, e desde então ela nunca mais gritou - exceto, segundo lenda mais recente, quando Brian Boru foi coroado Alto Rei da Irlanda em 1002.

As crônicas locais apontam os primeiros Altos Reis tendo reinado a partir do século XVI a.C., mas as extensas e detalhadas listas não tem embasamento em outras fontes ou evidências arqueológicas até o século V. Na verdade, a ausência de uma legislação específica reconhecendo e legitimando a figura do Alto Rei sobre os pequenos reinos tribais da Irlanda, coloca a existência da figura do Alto Rei, ou a sua importância política prática, em cheque até o seculo VIII. Muitas vezes, o Alto Rei da Irlanda era apenas o rei de Tara, não exercendo qualquer tipo de poder fora da cidadela que ocupava a colina. De qualquer forma, como se trata de figuras tradicionalmente cerimoniais, eleitas por um processo místico-religioso, é possível que fosse sim um cargo de influência, almejado por reis locais pretendendo exercer poder sobre os rivais, e assim fosse determinado, de maneira pragmática, pela rede de alianças que ele representasse. A sucessão raramente era hereditária, e frequentemente descontínua.

O caso de Domnall e Congal ilustra a importância simbólica do Alto Rei, contrastando com a profunda descentralização do poder na Irlanda. No século VII, os reinos irlandeses tinham a participação dos reinos galeses e escoceses na sua vida política. De fato, galeses e escoceses estavam "espremidos" pelos saxões, que ocupavam quase a totalidade da Inglaterra, implantando ali uma sociedade de matriz germânica mais parecida com o que se via na França e norte da Itália pós-romanas, e a Irlanda, pela afinidade cultural, provavelmente era a válvula de escape para as pressões econômicas sofridas por esses reinos britânicos. A afinidade era tal que não era raro reis irlandeses serem aclamados senhores de reinos também na ilha vizinha. As lendas da Pedra do Destino, apontando sua origem para as "Ilhas do Norte" (provavelmente a Escócia) vão de encontro às lendas sobre a origem da Pedra do Coração (Stane o Scuin em gaélico escocês), pedra sobre a qual os reis da Escócia eram coroados, que teria se originado de fragmento da Lia Fáil original, levada à Escócia pelo Alto Rei Murtagh MacEirc para que um tio seu fosse coroado lá.

Domnall teria conhecido o monge Columba (canonizado como São Columba, creditado como responsável pela expansão do cristianismo na Escócia), que teria profetizado uma vida longa e bem sucedida ao rapaz. Domnall teria se tornado Alto Rei da Irlanda ao derrotar, com apoio de Congal e aliados escoceses, o então Alto Rei Suibne Menn, e depois invadir o reino de Leinster. Embora filho de sua esposa, Congal representava uma dinastia rival, apoiada pelo reino escocês de Dal Riata (que o nomearia rei, mesmo já sendo soberano de Ulaid), e a antiga aliança foi desfeita em 629, quando Congal apresentou-se diante da Pedra do Destino para ser sagrado Alto Rei, mas um olho cego (que a lenda atribui a uma picada de uma abelha pertencente a Domnall) foi tomado como uma "mácula", e seu requerimento negado. Ele resolveu provar a si mesmo merecedor do cargo enfrentando o parente em batalha, já que o sucesso na guerra podia ser suficiente para coroar alguém Alto Rei, como o próprio Domnall. Quase nada se sabe sobre a Batalha de Moira em si, mas milhares de esqueletos encontrados no local numa escavação recente dá uma ideia da dimensão e da reputação do evento - na França e na Inglaterra, por exemplo, batalhas contemporâneas raramente ultrapassavam 5 mil homens (guerras inteiras podiam ser decididas por batalhas travadas por algumas centenas de pessoas), dadas as dificuldades de se armar soldados sem exércitos profissionais, conceito abandonado por questões econômicas desde a retirada dos romanos.

Desde a época de Domnall II, o Cristianismo passou a exercer influência sobre a estrutura administrativa irlandesa. Mesmo o Alto Rei sendo originalmente um símbolo do paganismo nativo, a sua instituição passou a ser admitida, tendo em vistas a retribuição por parte do Alto Rei (então coroado formalmente numa cerimônia presidida por um representante do Papa, nos moldes europeus) na forma de doações de terras e castelos às paróquias católicas. A partir das invasões nórdicas, o Alto Rei passou a ter uma função unificadora mais efetiva, liderando esforços coletivos contra incursões norueguesas - os próprios noruegueses entrando no jogo político para posicionar algum aliado neste posto, assim como os saxões ingleses. A conquista normanda da Inglaterra repercutiu sobre a Irlanda, já que muitos normandos radicados na Inglaterra, ou da própria Normandia, eram encorajados a se estabelecerem na ilha. O Alto Rei passou a ser um líder contra os colonos normandos. Em 1258, após atacar com sucesso colônias normandas no Ulster, Brian O'Neill, rei de Tir Eoghain, foi coroado Alto Rei da Irlanda. Mas sua autoridade talvez não ultrapassasse a letra dos tratados, pois seus aliados nunca apareceram para apoiá-lo na Batalha de Druim-dearg contra normandos e aliados irlandeses. A morte de Brian, em 1260, marcou o fim da era dos Altos Reis. O modelo feudal normando esmagou a tradição tribal da Irlanda - no fim daquele século, a Irlanda contava com um parlamento e sua própria versão da Magna Carta, legitimando o rei da Inglaterra como senhor da Irlanda.

A Pedra do Destino ainda está sobre a Colina de Tara, o ponto mais notável do complexo arqueológico preservado no local (que inclui, entre outros, uma tumba de 3400 a.C., uma fortificação do século I onde foram encontrados artefatos de origem romana, e uma igreja do século XII), hoje uma propriedade rural. Desde o século XVIII a pedra e a colina tem sido usados como símbolos de união contra a dominação britânica. Israelistas britânicos (um movimento judaico-britânico de caráter nacionalista) vandalizaram o monumento no século passado, acreditando serem os irlandeses descendentes de uma das tribos perdidas de Israel, e a Lia Fáil o marco que guardaria o lugar onde a Arca da Aliança estaria guardada. Mais recentemente, a pedra foi atacada a golpes de picareta em 2012, e manchada de tinta em 2014, atos sem motivação evidente.

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