sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Despedida de Portugal

Em 27 de novembro de 1807, a rainha de Portugal Maria I, o príncipe regente dom João, sua família, e toda a corte portuguesa, embarcaram no porto de Lisboa, de onde zarpariam dois dias depois em direção ao Brasil. A corte portuguesa fixaria residência no Rio de Janeiro até 1816.

A Revolução Francesa, que substituiu o Antigo Regime monárquico por algo semelhante a uma República burguesa, colocou a França no centro das atenções de todas as potências europeias. Todas monarquias mais ou menos absolutistas ou controladas por antigas oligarquias agrárias e mercantis, uma após a outra abriram hostilidades contra o movimento revolucionário no centro do continente (e vice-versa). Nesse rebuliço, Napoleão Bonaparte chegou ao comando da França Revolucionária, e iniciou um movimento expansionista em todas as direções.

A situação de Portugal no cenário pós-revolucionário já era delicada quando Napoleão entrou em cena. Sua relação com a França dependia da relação da França com a Inglaterra, de quem Portugal já era um antigo aliado. Portugal não abriria mão do poder inglês ao seu lado. Em 1801, a crise diplomática entre França e Inglaterra jogaram Portugal e Espanha (aliada da França) um contra o outro na atabalhoada Guerra das Laranjas, que resultou na incorporação da cidade portuguesa de Olivença pelos espanhóis, e ganhos significativos da colônia do Brasil sobre territórios da América Espanhola no Sul e no Mato Grosso.

João, que viria a ser coroado como rei João VI apenas em 1816, já era o regente desde 1799, devido à deterioração do estado mental de sua mãe. Ele manobrara rapidamente para evitar uma guerra destrutiva no episódio da Guerra das Laranjas (que durou apenas o tempo suficiente para um embaixador português sair de Lisboa e encontrar as autoridades espanholas e francesas para um acordo). Mas conforme os eventos na Europa central iam se desenvolvendo (Napoleão vencera em 1805 uma grande coalizão militar, conquistando os mais poderosos reinos da Itália, e causando a dissolução do Sacro Império Romano), estava ficando claro para Portugal que sua aliança com os ingleses, contra quem Napoleão se esforçava em subjugar no campo da economia com o Bloqueio Continental, iria lhe custar caro. Como Portugal não tinha poderio militar para fazer frente à França, João tentava ganhar tempo evitando enlaces diplomáticos que os colocassem em lados francamente opostos. Ele chegou mesmo a sugerir a George III da Inglaterra que os dois declarassem uma guerra fictícia. Mas como Portugal não obedecia ao Bloqueio Continental (a Inglaterra continuava exportando seus produtos para a Europa via Portugal), isso não adiantaria.

Em agosto Napoleão enviou uma carta com demandas a dom João, exigindo a adesão ao Bloqueio, a declaração de guerra à Inglaterra, a prisão de todos os ingleses no país e sequestro de seus bens. Às pressas reuniu-se o Conselho de Estado, cujos membros estavam divididos entre pró-ingleses e pró-franceses. Por um momento, esses últimos conseguiram formar uma maioria (com participação ativa do embaixador francês em Lisboa, general Jean Lannes), e apresentaram ao príncipe regente a carta aceitando parte dos termos exigidos, com exceção da prisão e sequestro de bens de cidadãos, por serem contra princípios cristãos (para os quais Napoleão e o que restava dos revolucionários franceses não davam a mínima). Porém, a decisão veio tarde demais.

Em meados de outubro de 1807, cerca de 28 mil soldados franceses sob o marechal Junot entraram na Espanha, ainda aliada da França. Este foi o sinal de alerta para dom João de que a guerra viria em sua direção. Antes de qualquer hostilidade, João acionou o embaixador português em Londres, Sousa Coutinho, para firmar um acordo secreto com a Coroa britânica para lhe fornecer proteção durante a transferência de Lisboa ao Rio de Janeiro, em caso de invasão estrangeira. O Conselho português já havia deliberado que, em caso de risco extremo, os filhos de João seriam transferidos para o Brasil. O novo acordo previa o transporte e a escolta para toda a família real e seus tesouros, o corpo de ministros, secretários, militares, religiosos, cortesões, suas respectivas famílias e serviçais. Para manter as aparências, no mesmo dia em que o tratado secreto era assinado em Londres, João ordenou o fechamento de seus portos aos ingleses, e o Conde da Barca, ministro da defesa, desviou parte do efetivo português para defender os portos contra uma invasão inglesa. Era a última cartada para testar a real intenção da aliança franco-espanhola.

A caricatura de dom João VI no Brasil é de um sujeito indolente e deselegante, mas quando exposto às adversidades, estava sempre um passo à frente: cinco dias depois da assinatura do tratado (esquivando-se da complacência do partido pró-francês, que ainda aguardava o desenrolar dos acontecimentos no país vizinho), França e Espanha assinaram um acordo de cooperação militar, cujo prêmio incluía a divisão do reino de Portugal entre seus signatários, prevendo, inclusive, a cessão do norte de Portugal ao extinto Reino da Etrúria, governado anteriormente pela filha do rei da Espanha e conquistado por Napoleão. João tomou conhecimento deste tratado através de um jornal francês que o publicara por ordem de Napoleão, expedido por Sousa Coutinho, de Londres (o imperador esperava que a publicação chegasse mais rápido ao marechal Junot, em marcha forçada, do que um decreto levado por um mensageiro). Ainda em outubro, a última esperança de resistência na Espanha, uma conspiração liberal arquitetada pelo príncipe Fernando (que mais tarde seria coroado Fernando VII) foi descoberta, e o príncipe preso. Era a guerra. Em meados de novembro, Junot estava cruzando a fronteira. Embora o exército português praticamente não tenha oferecido resistência, a marcha dos invasores não foi fácil: os camponeses e os proprietários de terras se retiraram com tudo que podiam carregar, deixando para trás suas terras queimadas, sua produção destruída, inclusive equipamentos e instalações, para que os franceses e espanhóis não pudessem tomar proveito de nada. Essa tática de terra arrasada seria repetida pelos russos em 1812.

No dia 23 de novembro chegou oficialmente a notícia da invasão francesa. O general Lecor, designado por João para observar o movimento do inimigo, mandava notícias alarmantes da velocidade de marcha de Junot. Imediatamente, o príncipe regente tomou as providências para a fuga de Lisboa. Nos três dias seguintes, a família real e seu séquito, somando cerca de 15 mil pessoas e seus pertences, embarcaram numa numerosa esquadra formada por grande parte da marinha portuguesa (16 navios de guerra no total, além de 21 navios mercantes com cargas e mantimentos). Um soturno dom João era visto subindo e descendo o porto com lágrimas nos olhos, evitando de falar ao povo que assistia à cena sobressaltado. No embarque, as pessoas aflitas se aproximavam tanto que o príncipe precisava afastá-los com as mãos; outros diziam que elas as beijavam. Dona Maria pediu ao cocheiro que a levasse calmamente até o porto, porque não estava fugindo.

Cinco nomes foram designados a permanecer no país e constituir uma Junta Governativa, a qual foi instruída a não oferecer resistência os franceses. Apenas alguns navios de linha (grandes embarcações armadas com canhões que recebiam este nome porque se destinavam a combater alinhadas paralelamente a outras embarcações ou alvos terrestres) foram mantidos ao largo da costa portuguesa e colocados, por força de tratado, à disposição da marinha inglesa. Uma flotilha de navios de guerra ingleses os escoltou até a Ilha da Madeira, passando com alguma dificuldade por uma tempestade que dispersou a frota, nas sem casualidades. De lá, uma parte das naus inglesas regressou, restando quatro navios para cruzar o oceano até Salvador.

A contrapartida portuguesa ao apoio inglês para a retirada da família real seria a abertura dos portos brasileiros ao comércio com os ingleses, privilégio até então exclusivo dos portugueses. João oficializou o acordo por um decreto assim que chegou ao porto de Salvador, em janeiro de 1808, abrindo os portos brasileiros "às nações amigas". Este detalhe, acertado em um anexo do acordo secreto (que também cedia aos ingleses o comando sobre os fortes portugueses ao longo do rio Tejo e da Ilha da Madeira), teria enorme impacto na história do Brasil dali para frente. O comércio com o Brasil era um canal de escoamento para os comerciantes ingleses, cuja entrada na Europa continental estava limitada pelo Bloqueio Continental (violado clandestinamente aqui ou ali), e se tornou mais importante ainda quando Inglaterra e Estados Unidos entraram em guerra em 1812. Para o Brasil, a movimentação de capital (agilizada com a fundação do Banco do Brasil) e intercâmbio técnico permitiu um rápido desenvolvimento da colônia a partir do Rio de Janeiro. A infraestrutura montada por dom João, com a instituição de correios, imprensa, instituições acadêmicas, academias militares, uma fábrica de pólvora (outra medida em que dom João se antecipava a Napoleão, tornando possível fabricar pólvora no Brasil sem depender do tráfego oceânico e de possíveis bloqueios franceses, além de armar a colônia contra uma possível invasão), etc., e uma relação comercial saudável com a Inglaterra, fez a colônia prosperar. Quando João retornou a Portugal em 1816 para enfrentar as crises políticas que ocorriam na metrópole após a morte da rainha Maria, deixou seu herdeiro Pedro de Alcântara no Rio de Janeiro, cercado por uma emergente elite liberal que o influenciaria a tomar para si as rédeas da parte economicamente mais importante do Império Português.

Quanto à campanha francesa na Península Ibérica, Junot chegou a Lisboa apenas 4 dias após o embarque da família real, dois após a sua partida. Ele ainda conseguia ver os últimos navios sumirem no horizonte. Com a rainha e seu príncipe regente governando o Império Português no Brasil (na única vez em que uma colônia sediou uma corte europeia), o plano de substituir a casa real portuguesa por monarcas títeres foi por água abaixo. Apesar do comando de João para não haver resistência por parte da administração deixada no país, os portugueses não se entregariam facilmente. De fato, Junot nem conseguiu efetivamente ocupar Portugal, restringindo sua presença a uma estreita faixa entre a fronteira e Lisboa. Enquanto isso, na Espanha, Napoleão foi além de mandar prender o príncipe Fernando; como suspeitasse de que o imperador francês planejava substituí-lo por algum parente seu (como vinha fazendo em outros lugares), um incidente que resultou na prisão do ministro pró-francês Manuel de Godoy resultou na abdicação do rei Carlos VII em favor de Fernando. Napoleão tentou resolver o assunto forçando a renúncia de ambos ao trono e a coroação de seu irmão José Bonaparte. A interferência direta na monarquia, além da própria invasão a Portugal, foram extremamente impopulares entre os espanhois. A tomada de Madri pelo general Murat foi a gota d'água para revoltas generalizadas estourarem por toda a Espanha, transformando uma campanha relativamente simples de tomada de Portugal numa longa e desgastante guerra de guerrilha por toda a península (a Guerra Peninsular, que se desenvolveria para uma guerra formal com a entrada da Inglaterra), que no final iria a custar a Napoleão sua própria coroa.

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