quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Inca ressurgido

Em 4 de novembro de 1780, Tupac Amaru II, clamando para si a descendência dos incas, lança sua declaração aos povos indígenas do Peru colonial a que se levantassem contra o domínio espanhol, dando início ao primeiro grande movimento indigenista da América do Sul.

Após quase 40 anos de resistência, os espanhóis subjugaram o último reduto inca em Vilcabamba, no Peru, e executaram seu último líder Túpac Amaru, em 1572. Durante esse longo período entre a conquista de Francisco Pizarro e a queda de Vilcabamba, os espanhóis empreenderam a aculturação e fragmentação das populações nativas com fins de usá-las como mão de obra e desestimular possíveis revoltas. As doenças trazidas da Europa serviram como espécies de armas biológicas passivas, dizimando talvez 2/3 da população nativa e desestruturando a sua sociedade, mas os conquistadores foram além. Seus símbolos, suas obras arquitetônicas, sua religião, e até mesmo seus sofisticados sistemas de agricultura em degraus foram sistematicamente destruídos. Os espanhóis ainda tiraram proveito do sistema de recrutamento de trabalhadores do Império Inca, que exigiam que cada família cedesse um membro para trabalhar em obras públicas, e demandavam um substituto em caso de morte ou invalidez, para manter as famílias e clãs sob controle e arregimentar mão de obra em regime semelhante à escravidão (chamado mita) para trabalhar nas minas de prata. A prata obtida pelo Vice-reinado do Peru (como se chamava a nova colônia espanhola no oeste da América do Sul, incluindo Peru, Equador, Bolívia e norte do Chile) alimentou a economia européia e elevou a Espanha ao status de superpotência.

Mais tarde, a relação de trabalho também se transformou numa relação de dependência entre o colonizador e o nativo, no sistema conhecido como Encomienda, em que um espanhol designado pelo rei ou autoridade em seu nome era encarregado da "segurança" da população, em troca dos seus serviços ou de tributação em espécie. O encomendero responsabilizava-se pela catequização, pelo ensino do castelhano, segurança, e manutenção e desenvolvimento da infra-estrutura (com mão de obra local). Criava-se automaticamente uma dívida que era impossível de ser paga. O sistema de Encomiendas derivou do modelo feudal da Europa Ocidental e foi aperfeiçoado na Espanha durante a Reconquista; espanhóis eram designados a cumprir as funções de encomendero sobre populações muçulmanas, com a diferença de que, na América do Sul, o encomendero não recebia posse da terra sob sua tutela (toda terra no Novo Mundo pertencia à instituição da Coroa, não uma posse pessoal dos seus monarcas). As Encomiendas contribuíram para o desmantelamento das identidades tribais graças a um dispositivo que impedia aos mestiços cristianizados de se submeterem a esse sistema, o que levou muitos nativos e mestiços integrantes de tribos locais a renegarem suas raízes ou buscarem casamento com espanhóis, e integrarem-se à sociedade colonial.

Eventualmente, as Encomiendas foram dando espaço para relações de trabalho mais eficientes, sendo abolidas em 1720. Mas a exploração da mão de obra nativa continuou opressiva em vários aspectos. Durante o século XVIII os reis espanhóis empreenderam várias reformas que pretendiam direcionar o desenvolvimento econômico das colônias para benefício direto da economia espanhola, que então perdia terreno para holandeses, ingleses e franceses no Velho Mundo. Essas reformas pretendiam restringir a autonomia dos criollos (espanhóis nascidos na colônia), recuperando o controle da Coroa sobre a atividade econômica. Por exemplo, os trabalhadores que não se empregavam em empreendimentos dirigidos ou supervisionados por espanhóis (os corregidores) eram taxados de forma a jamais conseguirem prosperar com seu próprio trabalho.

Neste contexto surge José Gabriel Condorcanqui, um mestiço nascido na província de Cuzco, filho de um cacique quéchua, Miguel Condorcanqui Usquiconsa, educado pelos jesuítas. Falava quéchua, castelhano e latim, o que lhe deu acesso à literatura. Seu livro de cabeceira era Comentarios Reales de los Incas, publicado no começo do século XVII pelo mestiço inca-espanhol Garcilaso de la Vega, que narrava, de maneira romântica e idealizada, sobre a sociedade inca pré-colonial e a sua resistência aos conquistadores. Ainda era leitor ávido da Bíblia, do Ollantay (poema dramático em quéchua que relata um romance proibido entre o general-plebeu Ollanta e uma princesa inca, Cosi Coyllur, no auge do império), e as obras de iluministas europeus como Voltaire. Se casou com Micaela Bastidas, descendente de incas e negros, mulher com forte senso de identidade cultural e nacional.

Como cacique, tinha influência sobre uma vasta área centrada em Cuzco e sua prosperidade econômica atraía a atenção da administração colonial. Era sua função como líder tribal mediar as relações entre o corregidor e os indígenas sob sua jurisdição. Isto o aproximava da realidade dos nativos sob o regime colonial, e seu contexto formativo colocava-o ideologicamente lado a lado com eles. Frequentemente se queixava às autoridades contra cobranças abusivas e tratamento desumano dos trabalhadores indígenas (muitos ainda submetidos à mita), mas sem retorno. Com o tempo, sobretudo após seu casamento e o nascimento dos filhos nos anos 1760, José Gabriel passou a fomentar um levante de criollos, nativos e mestiços contra a metrópole pela sua independência (de início, independência econômica, do ponto de vista meramente libertário). Micaela e seus parentes começaram a trabalhar às escondidas na divulgação das ideias e planos, recrutamento e recolhimento de recursos para o movimento. Vários caciques quéchua e aymara, suas tribos e muitos mestiços e escravos negros vieram a aderir à causa, chegando às dezenas de milhares homens e mulheres, do altiplano peruano, Bolívia, até o norte da Argentina, dispostos a lutar.

Em 4 de novembro de 1780, uma carta falsa atraiu Antonio Arriaga, corrigidor do distrito de Tinta, próximo a Cuzco, a uma emboscada. Ele foi preso e executado pelo seu próprio escravo negro, e com ele foram apreendidos boa quantidade de dinheiro, ouro e armas. Antes de morrer, foi obrigado a escrever cartas a espanhóis notáveis exigindo resgate, que foi pago quando Arriaga já era morto. José Gabriel viu que chegara num ponto se volta. Ele adotou para si o título de "Don José Primeiro, Senhor dos Césares e das Amazonas", adotando também para si o cognome Tupac Amaru II, alegando descendência matrilinear do último imperador inca. O chamado, agora pela independência política dos povos nativos do Vice-reinado do Peru, foi rapidamente divulgado. Enquanto Tupac Amaru II cuidava da parte política, Micaela coordenava a logística, a burocracia e a organização de pessoal do movimento. Sua influência até motivou a formação de um núcleo proto-feminista de ativistas quéchua e aymara pela afirmação da participação política e social da mulher indígena.

Os espanhóis mobilizaram tropas. Em 19 de novembro 900 soldados encontraram Tupac Amaru II e seus homens na aldeia de Sangarará, onde os nativos, em muito maior número, os esmagaram, capturando suas armas. Era fundamental a apreensão de qualquer tipo de armamento, pois os nativos eram proibidos de portar armas de fogo. Rapidamente, porém, apesar de um discurso integrador do seu líder, o movimento espiralizou em direção à violência racial: os assaltos, saques e assassinatos eram direcionados aos espanhóis, incluindo criollos (que em nada diferiam fisicamente de espanhóis europeus). De uma a duas mil pessoas foram massacradas em Chuquiasca por guerreiros de Tupac Amaru II.

A perda de apoio dos criollos se provaria fundamental na derrocada de Tupac Amaru. Foram os criollos legalistas que evitaram a conquista de Cuzco. Após uma série de derrotas e a deserção de grande parte dos seguidores, alguns aliados próximos entregaram às autoridades a localização do comando do movimento. Em maio de 1781, Tupac Amaru II, Micaela, seus filhos Hipólito e Fernando (este com 10 anos), vários dos seus familiares e colaboradores foram presos e condenados à morte em Cuzco. Tupac foi obrigado a assistir a execução de cada um deles (sua esposa teve a língua cortada, o pescoço amarrado e apertado por duas cordas como a um animal, e espancada até desfalecer asfixiada). Depois de tentarem desmembrá-lo atando braços e pernas a quatro cavalos, os executores decapitaram e esquartejaram o líder, e seus membros enviados a várias vilas na zona rebelde como aviso. A língua quéchua e vestimentas tipicamente indígenas, bem como celebrações tradicionais foram proibidas por decreto.

A resistência continuou com força no sul do Peru e Bolívia por mais um ano (cerca de 15 mil pessoas, a maioria aymaras, morreram num cerco de mais de 100 dias a La Paz). Seus líderes também assumiram o cognome Tupac Amaru, como se fosse uma espécie de título. Em março de 1782 o último líder, o mestiço Diego Cristóbal Tupac Amaru, foi preso e executado.

Embora tenha fracassado, a rebelião de Tupac Amaru II foi o maior movimento indigenista da América Espanhola até então, e inspirou diversos outros levantes indígenas pelo continente nas décadas seguintes. No século XX, movimentos armados no próprio Peru relembrariam Tupac Amaru II e se utilizariam da sua imagem: os militares no poder entre 1962 e 1980 se apropriavam da sua imagem para dar um rosto à sua "revolução", e depois o Movimiento Revolucionario Tupac Amaru, de orientação leninista, operaria ações de guerrilha e terrorismo contra os governos democraticamente eleitos. No Uruguai, Tupac Amaru II inspirou o Movimiento de Liberación Nacional-Tupamaros nas décadas de 1960 e 1970, de cunho anarco-socialista. Um dos seus membros, o anarquista José Mujica, viria a se tornar presidente do país. Outro movimento Tupamaro, na Venezuela, converteu-se em um partido político de esquerda de orientação leninista radical, acusado pela oposição de recorrer à violência armada contra manifestantes anti-governo em 2014.

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