quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Etruscos

Em 25 de novembro de 571 a.C., o etrusco Sérvio Túlio, rei de Roma, desfilou em triunfo por sua vitória contra outros reis etruscos. Sérvio Túlio é um personagem basicamente mitológico, mas os elementos mitológicos incorporados pelos historiadores romanos como parte da sua História dão pistas da enorme influência da civilização etrusca sobre a formação de Roma.

O poema épico Eneida, de Virgílio, uma espécie de continuação do poema homérico Odisseia, trata dos primórdios da fundação de Roma. Boa parte da "História" da Roma pré-republicana deriva dos relatos de historiadores notáveis, como Tito Lívio e Plutarco, entre outros. Ambos nos fornecem retratos coloridos da vida e da política romana do seu tempo, mas quando se alongam acerca das origens da cidade-Estado e suas instituições, chegam no pantanoso terreno da "pré-história" romana, delineada por mitos e tradições, e confundem-se com a poesia. Tito Lívio, por exemplo, como patriota, teria deliberadamente selecionado determinadas versões desses mitos para compor uma narrativa heroica e coerente com as tradições cultivadas pela alta sociedade, seu público alvo. Portanto, toda a História de Roma antes da consolidação das instituições republicanas e os seus metódicos registros escritos é um misto de lendas e fatos que apenas a arqueologia hoje em dia pode dar alguma substância.

Todos os sete reis de Roma são, a princípio, legendários, embora os seus ciclos narrativos possam rememorar alguns fatos históricos. Sérvio Túlio é o sexto rei de Roma. Ele era etrusco, não latino, o segundo dos três reis etruscos da Roma monárquica. Ascendeu ao trono vindo do nada (o mito "historificado" lhe dava uma biografia semelhante à dos heróis gregos, que tinham um deus como pai e uma desterrada de origem nobre como mãe, e viveram na servidão antes de se tornarem reis), e teria comandado os exércitos romanos em campanha contra os próprios etruscos, vencendo-os pelo menos três vezes (o triunfo celebrado em novembro de 571 a.C. teria sido o primeiro). Ele casou uma de suas filhas com Lúcio Tarquínio, filho homônimo do seu antecessor no trono, que acabaria conspirando e assassinando Sérvio.

A existência de três reis etruscos nos anais de Roma, embora não seja comprovada historicamente, resgata o contexto político da cidade nos séculos VII e VI a.C..

Os etruscos eram um povo provavelmente autóctone do centro e norte da Itália, ocupando aquela região ou algo próximo desde o fim da última glaciação, ao contrário dos latinos, úmbrios, faliscos, volscos, samnitas, e outros povos itálicos de língua indo-européia que migraram para lá apenas na primeira metade do primeiro milênio a.C.. Os etruscos, por consequência, desenvolveram sua própria língua, religião e sociedade. O intenso contato via comércio com os povos da Grécia, que lhes chamavam "tirrenos" ou "tirsênios", lhes trouxe o alfabeto, e com sua própria versão dele nos deixaram milhares de documentos escritos. Apesar da escrita ser perfeitamente legível, a língua etrusca, por ter se desenvolvido localmente, não tem qualquer paralelo com outra língua conhecida, o que a torna basicamente ininteligível (apenas algumas dezenas de palavras foram conjecturalmente decifradas, mas algumas delas parecem empréstimos de outras línguas, como o próprio grego). Uma obra que possivelmente nos auxiliaria nessa questão seria o livro que o imperador romano Cláudio, que falava etrusco, escreveu sobre a sua história, mas este livro se perdeu no tempo.

Portanto, apesar de tanta evidência escrita, muito pouco se sabe sobre sua origem. Mas os historiadores gregos e romanos, e a arqueologia, nos mostram que esses etruscos viviam em confederações de cidades-estado concentradas em três regiões da Itália (no vale do Rio Pó, na região da Toscana, e ao longo do litoral até a Campânia) que expandiram sua esfera de influência, incluindo aí os povos que acabavam de migrar para a Itália. Porém, nunca configuraram um império propriamente dito, pois cada cidade-estado tinha seu próprio rei (que, não raro, estava em guerra um com outro).

Roma foi fundada por volta de 750 a.C. por Rômulo - personagem igualmente mitológico, segundo Virgílio, descendia de Enéas, o herói troiano, e fora amamentado por uma loba com seu irmão gêmeo Remo, o qual assassinou. O provável é que Roma tenha sido mais uma das cidades fundadas pelos novos habitantes indo-europeus da região do Lácio (de onde "latino" deriva seu nome). Havia, inclusive, outro mito fundador para o povo latino, também retratado em Virgílio e em fontes gregas, como Heródoto, em que um certo Latino (ou Lavínio), filho de deuses, era o senhor daquela região, e ofereceu asilo a Enéas e seus companheiros.

É justamente após a época da fundação que os etruscos expandiram sua influência sobre o Lácio. Em Roma, segundo o que os antigos historiadores comentam, a influência etrusca aparece impondo-se como uma elite que se infiltra na estrutura do governo local, como o senado (a assembléia de anciãos que representavam as famílias mais tradicionais da cidade). Em 616 a.C., finalmente um etrusco, Lúcio Tarquínio Prisco, assumiu o trono convencendo o senado a elegê-lo, quando da morte do rei latino Anco Márcio. Os etruscos em poder de Roma teriam usado a cidade para expandir seu poder sobre os outros latinos, e sobre os próprios etruscos das cidades rivais, até que o terceiro rei etrusco, Lúcio Tarquínio Superbo, foi expulso da cidade, e a República foi instaurada. Este último rei teria pedido auxílio a outro rei etrusco, Lars Porsena, da cidade de Clusium (onde está a atual Chiusi), que foi rechaçado pelas forças republicanas. A partir daí Roma começou a criar sua própria zona de influência, primeiro conquistando e assimilando as outras cidades latinas, depois os outros povos itálicos e os próprios etruscos, e mesmo as colônias gregas no litoral sul, até dominar a Itália.

Mesmo que o período da monarquia romana seja uma reconstrução da memória coletiva infundida com um sentimento de identidade nacional, e os seus personagens provavelmente mais fantásticos do que reais, ainda assim podemos identificar na Roma histórica elementos que remetem àqueles tempos. Além do vocabulário, onde o latim tomou emprestado algumas palavras etruscas (o que ajuda no limitadíssimo conhecimento dessa língua), e do alfabeto (o alfabeto latino que usamos hoje deriva mais diretamente do alfabeto etrusco do que do seu primo mais velho, o grego), os romanos parecem ter compartilhado alguma parte da sua religião original com eles. Em inscrições etruscas é possível identificar referências a deuses e heróis comuns à mitologia romana e grega, com as quais também tinham contato e em certo nível influenciou ambas: Hércules-Hercle, Saturno-Satre, Apolo-Aplu, Proserpina-Phersipnai, Perseu-Perse, Netuno-Nethuns; o deus meteorológico que os etruscos chamavam de apa, "pai", era Tinia, que os romanos posteriormente associaram a um demônio, Tigna, que causava tempestades e trovoadas. A toga, vestimenta típica da elite romana, inclusive a toga púrpura típica dos cônsules, e, depois, dos imperadores romanos, eram heranças da nobreza etrusca, que assim se vestia. Na própria cidade de Roma, obras fundamentais, como o Circo Máximo e o Templo de Júpiter, teriam sido construídas pelos reis etruscos. Várias famílias de origem etrusca (os Lárcios, os Cecina, os Ceiônios) permaneceram influentes em Roma, onde se juntaram às famílias locais mais tradicionais na classe superior dos patrícios.

Os romanos, curiosamente, parece que guardavam rancor contra aqueles que os desafiavam. Depois de serem vencidos pelos celtas no século IV a.C., expandiram seu território na Europa especificamente sobre território céltico, culminando com a conquista da Gália e a prisão do chefe gaulês Vercingetorix; desafiados pelos cartagineses pelo controle do comércio no Mediterrâneo, empreenderam três campanhas punitivas a Cartago, e na terceira (provocada por um pagamento atrasado de tributo, imposto a Cartago) fizeram questão de salgar a terra para que nada mais pudesse crescer ali; depois de uma derrota na Germania, em que três legiões foram derrotadas e as águias de bronze dos seus estandartes levadas como troféus, os romanos passaram os 50 anos seguintes fazendo incursões nas florestas alemãs até que a última águia fosse recuperada.

Da mesma forma, os romanos guardaram enorme ressentimento contra a instituição da monarquia. Assim que a República foi proclamada, o cargo de "rei" foi extinto, substituído por dois cônsules (porque um só tinha ares de monarquia), eleitos anualmente. Uma função do rei, a nomeação ou demissão de senadores, que seria dos cônsules, foi passada aos censores. Essa supressão à figura monárquica se estendeu ao rex sacrorum (o "rei sagrado", sumo-sacerdote da cidade), que passou a ser subordinado ao sacerdote que, originalmente, vigiava os rituais de sacrifício (o pontifex maximus, o sumo-pontífice, que tinha esse nome porque era responsável pelos auspícios para a construção e manutenção das pontes sobre o rio Tibre, que era considerado um deus; o arcebispo católico de Roma, o Papa, herdou este título). Até o Regia, ou palácio real, habitado pelo rex sacrorum, passou a ser morada do pontifex maximus. Com exceção dos senadores, que eram designados pelos censores, e do próprios "reis sagrados" (que, contudo, continuaram existindo até o advento do cristianismo) quase todos os cargos da estrutura administrativa e religiosa romana passaram a ser eletivos e temporários, e todo aquele que, por ambição ou aclamação, arrogou-se a sentar-se por tempo demais no banco do cônsul, foi removido pelo senado, pelo exército, ou por demanda popular. Até o advento de Otaviano, o primeiro Imperador de Roma.

Os etruscos deixaram de existir como identidade étnica ainda durante a República, e a língua deixou de ser usada em meados do século II. O romancista finlandês Mika Waltari escreve apaixonadamente sobre os etruscos (na verdade, sobre a "periferia" do mundo mediterrâneo antigo, centrado num fictício personagem etrusco) no ocaso da sua civilização em seu livro O Etrusco.

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