quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Phillibert e Jeanne

Em 18 de novembro de 1727 nasceu Phillibert Commerson (ou Commerçon) em Châtillon les Dombes, na França, na base dos Alpes. Ele seria um dos primeiros botânicos europeus a se aventurar numa viagem de volta ao mundo, e suas coletas no Brasil são alguns dos exemplares mais antigos da flora brasileira a serem amostrados e conservados em herbários até hoje.

Filho de um notário a serviço de um nobre local, seu pai esperava que ele aprendesse apenas a ler e escrever para seguir a sua profissão. Mas na escola, um professor o levou a um passeio no campo, despertando seu entusiasmo pela botânica. Estudou medicina e botânica (duas ciências que frequentemente andavam juntas, alternadamente com a farmácia e a química) em Montpellier, até hoje um dos principais centros universitários daquele país. Sua fixação por botânica o levava a coletar amostras clandestinamente no jardim botânico local, até o ponto de ser proibido de entrar nele. Entre 1754 e 1758 dedicou-se à coleta de plantas no Languedoc francês e à composição de jardins botânicos. Neste período conheceu o filósofo Voltaire, que, encantado com a acuidade do pensamento do jovem botânico, o convidou a ser seu assistente. Commerson recusou, alegando depois ter tido a impressão de que Voltaire era um velhaco, propenso a terrores noturnos (não obstante, sua carreira seria guiada pelos princípios do Iluminismo).

Nessa mesma época, Carl von Linnaeus estava trabalhando a pleno vapor nos seus novos sistemas de classificação dos seres vivos, e a ele interessava todo tipo de trabalho em ciências naturais que lhe fornecesse descrições precisas de espécies conhecidas com as quais pudesse posicionar os organismos em seus reinos, classes e ordens e formalizar seus nomes para uso de toda a comunidade científica. A Commerson ele encomendou uma monografia sobre peixes do Mediterrâneo. Commerson coletou e escreveu profusamente, mas nunca chegou a publicá-la (sua coleção de peixes ainda está preservada no Museu de Estocolmo).

Em 1760 ele se casou com Antoinette Beau e abriu um consultório médico numa aldeia. Sua vida parecia estabelecida, quando Antoinette faleceu enquanto dava à luz o filho do casal, François. Arrasado, Commerson caiu em depressão, e passou a se dedicar obcecadamente ao trabalho. Seu irmão, também François, dizia que Phillibert passara vários anos seguidos coletando plantas e insetos nos Alpes e nos Pirineus, subindo e descendo as mesmas montanhas várias vezes, vivendo de pão, leite e queijo que comprava de pastores locais e dormindo como hóspede em suas choupanas. Um amigo seu de infância, o astrônomo Jerôme Lalande, alertado pelo irmão de Phillibert, o convenceu a ir a Paris para expandir a mente, deixando o pequeno François aos cuidados de um tio, que era padre.

Em Paris, enquanto Commerson se entrosava com os principais nomes da botânica do seu tempo, como os irmãos Jussieu (Antoine, Bernard e Joseph) e Michel Adanson, quem tomava conta da sua casa era uma jovem órfã da Burgundia chamada Jeanne Barret (ou Baré). Com seus novos contatos, Commerson acabaria sendo recomendado ao almirante Louis Antoine de Boungainville como cirurgião-naturalista do seu navio, o Etoile, com o qual realizaria a primeira expedição francesa de circunavegação do globo, e a primeira expedição científica ultramarina da França.

Bougainville era um capitão experiente. Havia participado da Guerra Franco-Indígena na América do Norte. Em seguida, comandou o projeto colonial francês nas Ilhas Malvinas. O próprio Bougainville, às suas custas, levou colonos canadenses ao arquipélago para que a França o reclamasse formalmente à Espanha, que o deixara vago até então. Porém, por razões diplomáticas e econômicas, o rei Luis XV achou por bem devolver as Malvinas aos espanhóis (vendê-las, na verdade), ordenando a evacuação da colônia. Bougainville foi indenizado em 700 mil francos. Com esse dinheiro e a permissão do rei, ele armou dois navios, o Boudese e o Etoile, e contratou uma grande equipe de cientistas, entre geólogos, físicos, historiadores, cartógrafos, meteorologistas, botânicos, zoólogos e linguistas, que somavam, com a tripulação, 330 pessoas. Commerson estava entre eles, e fez questão de trazer a bordo Jeanne Barret, supostamente para auxiliá-lo com suas coletas. Porém, era comum que marinheiros se recusassem a trabalhar a bordo com uma mulher na tripulação. Na marinha francesa, o emprego de mulheres era expressamente proibido. Sabendo disso, Jeanne se apresentou ao capitão do Etoile como Jean, vestida como um rapaz. Commerson fez questão de viajar no Etoile, que era o menor dos navios, porque, com menos gente por perto, as chances de se descobrir o sexo de sua assistente seriam menores. O próprio comandante do navio, capitão Giraudais, cedeu sua cabine (que convenientemente tinha um banheiro exclusivo) para os dois acomodarem-se e a e seus equipamentos.

A missão de Bougainville zarpou de Nantes em novembro de 1766 e chegou ao Rio de Janeiro em 1767. Foi a primeira expedição científica européia a aportar na colônia portuguesa. Porém, o Rio não era a vistosa capital imperial inspirada em Lisboa ou Paris do século XIX, mas ainda uma cidade portuária provinciana e perigosa (o capelão do Etoile foi assassinado enquanto o navio esteve ancorado), então Commerson nunca se arriscou muito longe do porto, coletando espécimes na cidade e arredores, enquanto os seus colegas realizavam todo tipo de experimento científico. A taxonomia era uma ciência que ainda estava em seu período formativo (Linnaeus ainda era vivo), e como nada havia sido coletado ainda no Brasil com o objetivo de ser classificado e entrar na coleção de um herbário como testemunho, praticamente tudo era novidade. Commerson coletou e produziu descrições (nunca publicadas) de centenas de novas espécies. Uma planta ornamental, que já era muito conhecida e cultivada por aqui mas ainda era desconhecida da ciência européia, recebeu de Commerson o nome de Bougainvillea spectabilis Willd. (alguns a conhecerão como "primavera" ou "buganvílea"), em homenagem ao almirante, que também era fascinado pelas ciências naturais. As coletas de Commerson, que duraram até julho de 1767 (com uma pausa entre fevereiro e junho, quando Bougainville seguiu para as Malvinas para formalizar a entrega da colônia à Espanha), são as mais antigas que se tem notícia no Brasil, ainda preservadas em herbários europeus como o do Jardim Botânico Real, em Kew, e do Museu Nacional de História Natural, em Paris.

Commerson tinha uma ferida na perna, que nunca cicatrizava, adquiria possivelmente nas suas andanças pelas montanhas na Europa. A bordo, Jeanne cuidava dele, e em terra, o auxiliava em suas coletas (as coletas no Rio de Janeiro talvez tenham sido feitas quase todas por ela, e na Patagônia, seu vigor no campo foi elogiado pelo próprio Bougainville em seu diário). Sua proximidade era evidente. François Vives, cirurgião do Etoile que não gostava do colega, insinuava em seu diário que os dois eram gays, especulando que Barret era um eunuco. A expedição seguiu para Montevideo, descendo pela Patagônia, e, do Estreito de Magalhães, partiu para o Taiti. Bougainville acreditava ter descoberto aquele arquipélago (reclamando a ilha de Otaheite para a França), tendo notícia apenas mais tarde de que o inglês Samuel Wallis havia passado por ali meses antes. Apenas no Taiti, em abril de 1768, um ano e meio depois do início da viagem, o disfarce de Jeanne foi descoberto: aparentemente Jeanne teria sido apontada inequivocadamente por um taitiano trazido a bordo como uma mulher (ou um travesti). A história seria reproduzida pelos taitianos quando o capitão James Cook chegou nas ilhas no ano seguinte, dando a entender que eles sabiam do seu sexo, mas que os europeus ainda nem desconfiavam. Depois que a tripulação finalmente descobriu (aparentemente atacando e despindo-a à força), Jeanne foi levada à presença de Bougainville, que se divertiu com a história e decidiu não punir nem a ela, nem a Commerson.

A expedição foi atacada por nativos na ilha da Nova Irlanda, a nordeste da Nova Guiné, e fez uma parada na colônia holandesa da Batávia (atual Jacarta, na Indonésia) para reabastecer. De lá seguiu pelo Oceano Índico até as Ilhas Maurício. Commerson ficou surpreso e satisfeito ao saber que um amigo seu, o também botânico Pierre Poivre, servia como governador daquela colônia francesa. Como Poivre o convidou a se hospedar em sua casa (possivelmente, também, a conselho de Boungainville, para evitar complicações com a lei francesa), Commerson e Jeanne se despediram da expedição, que seguiu de volta para a França. Commerson usou Maurício como base para uma expedição em Madagascar, mas a sua saúde se deteriorava. Sua sorte também virou: Poivre foi chamado de volta à França em 1772, e o novo governador retirou os privilégios e a própria hospedagem da dupla, deixando Commerson e Jeanne em situação precária. Commerson faleceu em 13 de março de 1773. Sem suporte na ilha Maurício, Jeanne regressou à França (tornando-se a primeira mulher a circunavegar o planeta), onde reclamou uma modesta herança deixada pelo seu patrão (e possível amante), levando consigo todo o material coletado ao longo dos últimos anos, e que Commerson não tivera tempo de organizar. Coube a Jussieu (Antoine Laurent, sobrinho dos Jussieu que Commerson conheceu em Paris) e a Pierre Lamarck descrever e publicar formalmente as espécies descobertas pelo colega.

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