quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Abalo nas fundações

Em 1 de novembro de 1755, um terremoto seguido de tsunami (e um incêndio só controlado 6 dias depois) devastou a capital portuguesa de Lisboa, causando dezenas de milhares de mortes e a destruição da maior parte da cidade. Este evento geológico seria o epicentro de mudanças radicais, desde a reformulação da estrutura urbana de Lisboa, à vida política portuguesa, e levando as principais mentes da Europa a questionarem o próprio mundo em que viviam.

Portugal está próximo à fronteira entre duas placas tectônicas, a Africana e a Eurasiana, fronteira esta que corre a partir da Dorsal Atlântica (ponto onde a atividade vulcânica fez emergir do oceano o arquipélago dos Açores) e atravessa o Mediterrâneo. Assim como Itália, Grécia, Turquia (onde a história recente registra sismos bastante destrutivos), é uma região suscetível a tremores de terra mais ou menos violentos. O primeiro deles a ser registrado naquela área ocorreu em 60 a.C., afetando a costa. Um terremoto na região de Lisboa, em 1531, seguido de um tsunami que resultou na morte de 30 mil pessoas provocou um recuo do projeto português de implantar colônias economicamente funcionais na América recém-descoberta enquanto investimentos eram direcionados para a reconstrução da cidade (religiosos responsabilizaram os cristãos-novos, judeus recém convertidos, pelo desastre). A violência do sismo de 1755 seria capaz de apagar da memória tamanha tragédia, a tal ponto que aquele só voltaria a ser estudado com a redescoberta de documentos de época no século XX.

Era uma manhã ensolarada do Dia de Todos os Santos. Os lisboetas acordaram cedo, e tomaram as ruas, em direção às igrejas, para as missas e festejos. A Lisboa de 1755 era uma Lisboa medieval que se expandira lentamente nos séculos anteriores a partir do seu núcleo primitivo às margens do Tejo em direção ao norte e ao oeste, com uma estrutura urbanística confusa que prezava a utilização máxima dos espaços para habitação. O resultado eram ruas estreitas e muradas por edifícios e casas, palácios e, particularmente, igrejas, que constituíam o centro de cada novo núcleo urbano agregado ao plano urbanístico anterior. Haviam poucos largos e praças, e as vias ficavam constantemente congestionadas por pessoas, animais, e carruagens. Naquela manhã, a maior parte de uma população estimada em 300 mil habitantes estava apertada entre paredes, acorrendo às suas paróquias.

Às 9:30 um violento tremor de terra (próximo de 9 de magnitude de momento, com epicentro no Atlântico), com pelo menos 3 minutos de duração (em outros lugares de Portugal, a terra tremeu por até duas horas), surpreendeu a população. No primeiro momento, houve desabamentos. Pessoas em fuga desordenada pisoteavam-se, enquanto feridos pediam socorro. Houve relatos de furtos no meio da confusão. Nas igrejas que continuaram em pé, ouvia-se o canto de músicas sacras contrastando com o lamento dos fiéis. Alguns procuravam por seus parentes desgarrados, outros os iam buscar nos escombros. Fissuras de até 5 metros de largura abriram-se no chão, no centro da cidade. Boatos de que o antigo Castelo de São Jorge estava em chamas, e que seu armazém de pólvora poderia explodir, levaram as pessoas a se afastarem do local, que fica numa colina. O medo de desabamentos, incêndios e explosões conduziu a massa para o cais do porto. Os cais Sodré, São Paulo, e Terreiro do Paço (onde ficava o palácio real), para onde desembocavam as ruas principais, ficaram apinhados de gente.

Ali no cais, o povo assistiu, confuso, o mar retroceder. Rochas, pedras de antigas construções, destroços de navios e cargas perdidas estavam expostas. Um tsunami não surge como uma parede de água que se quebra como uma onda na praia, mas como uma invasão rápida e contínua de água em alta velocidade, subindo rapidamente de nível e arrastando tudo que há no caminho, então os lisboetas não puderam antever a onda de até 20 metros (no Algarve, mais ao sul, a onda pode ter chegado a 30 metros) que se aproximava do porto. Muitos pressentiram o perigo e guiaram sobreviventes para lugares altos, mas cerca de 900 pessoas foram subitamente arrastadas pela onda. O que havia ficado em pé nas partes mais baixas da cidade foi demolido pela onda. E o que a onda não derrubou estava prestes a ser consumido pelo fogo.

A infraestrutura da cidade foi perdida. As chamas consumiam as casas e igrejas sem que houvesse uma resposta organizada para detê-las, de maneira que os incêndios persistiram por 6 dias. Nesta fase, a grandiosa Casa de Ópera, inaugurada naquele ano, foi consumida, e também ardeu o Hospital Real de Todos os Santos (vitimando os pacientes internados). O acervo da biblioteca na Torre do Tombo foi salvo (a torre mesmo colapsou pouco depois), mas as bibliotecas dos dominicanos e franciscanos foram perdidas. Ao final daquela semana, 85% da cidade fora destruída, e até 90 mil pessoas pereceram apenas em Lisboa (as estimativas não são precisas para os demais lugares em Portugal; em Fez, no Marrocos, que passou pelo mesmo tremor e tsunami, morreram cerca de 10 mil).

O rei José I escapou porque suas filhas pediram para passar o feriado em Belém, próximo à cidade. A destruição que testemunhara também ali, e a que assistiu ao retornar à capital, criou no rei uma claustrofobia, a ponto dele viver o resto da vida em amplas tendas erguidas na colina da Ajuda (onde construiu-se depois o Palácio Real da Ajuda). O futuro Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, então ministro dos negócios estrangeiros, tomou para si o comando dos esforços para socorrer as vítimas, impedir novos acidentes, impor a lei e a ordem (para combater os saques, fez com que a cidade fosse patrulhada por trios compostos por um padre, um juiz, e um carrasco), e planejar a reconstrução da cidade. Para resolver o problema do que fazer com os mortos, ordenou que os corpos despedaçados fossem levados em barcaças e jogados no mar: "Deus lá no Céu saberá a que corpo pertencem". Questionado sobre a opção de refazer a parte baixa da cidade adotando ruas e avenidas largas, teria dito que "Ainda um dia as vão achar estreitas". O novo centro da cidade é conhecido até hoje como Baixa Pombalina. Sua atuação enérgica e objetiva lhe renderam a nomeação para o cargo de primeiro ministro, posição de que se aproveitou para promover uma reformulação de larga escala da capital e grandes reformas administrativas. Os altos custos foram cobertos com empréstimos à Inglaterra e um aumento de impostos sobre a colônia, atingindo de maneira mais dura a capitania de Minas Gerais, onde pelo menos duas insurreições tiveram que ser aplacadas por Pombal.

O engenheiro-mor Manuel da Maia conduziu a parte prática da reforma urbanística, que incluía o controle e fiscalização do governo à construção de novas edificações (inibindo as construções feitas pelos próprios moradores, e regulando a altura dos edifícios, e quanto de cada terreno deveria ser ocupado) e a adoção pioneira de métodos de construção anti-terremoto. Casas que ainda estivessem de pé e não estivessem conforme as novas normas deveriam ser demolidas. Grande parte das obras foi supervisionada pelo engenheiro húngaro Carlos Mardel, que assinou as grandiosas construções do Aqueduto das Águas Livres, do Palácio da Inquisição, e o Palácio do Marquês de Pombal.

As notícias de Lisboa chocaram a Europa. Na Inglaterra, na Áustria, na Alemanha, na França, na Itália, a devastação e a perda de vidas foram recebidas com horror. Lisboa era uma das principais capitais do catolicismo, se assim se poderia dizer: pontilhada de igrejas, com grande participação do clero na vida pública, e capital de um império colonial onde a questão religiosa era o pilar das novas sociedades. Entre muitos observadores, incluindo lisboetas, o fato do terremoto ter ocorrido no Dia de Todos os Santos, e ter devastado a cidade, especialmente as grandes catedrais não passou despercebido, e foi interpretado como uma punição divina. Filósofos contemporâneos foram além: Voltaire questionou a destruição de uma cidade católica e suas igrejas e a morte de tantos devotos em relação à noção de que o mundo seria regido o tempo todo por uma divindade fundamentalmente benevolente (ou de como um Deus bom permitiria a existência do mal, questão levantada anteriormente por Leibniz e Pope, que contudo defendiam que, seja como for, este é o melhor dos mundos). Jean-Jacques Rousseau (crítico dessa mesma ideia de Voltaire) atribuiu o grande número de fatalidades ao fato dos lisboetas viverem concentrados numa área urbana relativamente pequena, e usou este argumento para advogar um modo de vida mais naturalístico e menos urbano (um argumento na sua tese do "bom selvagem"). O corpo de ideias formuladas sobre as causas e consequências do terremoto de Lisboa deram musculatura ao Iluminismo.

O sedutor escritor veneziano Giacomo Casanova relatou ter sentido o tremor enquanto estava encarcerado no Piombi, a prisão que funcionava nos porões do Palácio do Doge, em Veneza. O tsnumai varreu os portos dos Açores e Madeira, atingiu da Finlândia ao Caribe, e chegou ao nordeste brasileiro: ondas de até 6 metros de altura invadiram o litoral nordestino e alcançaram quase 5 quilômetros terra adentro (um relato da capitania de Pernambuco nota o desaparecimento de uma mulher e uma criança perto da cidade de Tamandaré; em Salvador, a água chegou à base do cruzeiro situado em frente à Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem, 3 metros acima do atual nível do mar, numa praia voltada para o interior da Baía de Todos os Santos). Um terremoto raro e inesperado, de média intensidade causando desabamento de telhados e chaminés, aconteceu ainda no dia 1 de novembro em Cape Ann, ao norte de Boston, uma região relativamente protegida, o que leva pesquisadores a tentarem associar o evento com o sismo de Lisboa.

Com 85% da Lisboa medieval e pré-moderna destruídos, há poucas estruturas na cidade anteriores a 1755. Uma delas, talvez a mais impressionante, seja o Convento do Carmo, templo neogótico erigido em 1389, cujo interior foi consumido pelo fogo, derrubando seus telhados e cúpulas. A estrutura básica é preservada e abriga um museu arqueológico.

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