terça-feira, 21 de novembro de 2017

Timur na Geórgia

Em 21 de novembro de 1386, o exército liderado por Timur, o Coxo, tomou a capital georgiana de Tblisi e aprisionou seu rei, Bagrat V. O que poderia ter decretado o fim do reino independente da Geórgia diante do conquistador turco-mongol acabaria sendo, na verdade, o primeiro capítulo de uma longa guerra de resistência desse pequeno reino montanhoso, com um resultado improvável.

Timur era conhecido como "o Coxo" porque teria sido alvejado na juventude por uma flecha na coxa direita, deixando-o manco; outra flecha, na mesma ocasião, lhe decepou dois dedos da mão direita (alternativamente conhecido como Tamerlão, do persa "Temur Lang", "Timur, o Coxo"). Ele era um khan turco-mongol que reclamava para si a descendência direta de Genghis Khan (pelo menos uma descendência "espiritual", já que a sua linhagem era tão obscura na época como é agora). Seguindo a tradição de seu povo de eleger seus líderes entre os guerreiros mais capazes em batalha, Timur ganhou proeminência comandando raids entre as tribos turcas da Ásia Central sob jurisdição do Khanato Chagatai (este sim um império descendente direto das conquistas de Genghis Khan na Pérsia) contra búlgaros, kwarízmidas e outros povos rebeldes ou não ainda subjugados. A atuação de Timur teria sido tão decisiva que seus seguidores o teriam elevado acima dos khans de Chagatai, e sua generosidade com o povo sob seu comando o teriam consagrado como um favorito acima das autoridades formais, incluindo seu irmão e rival Husain. Nomeando a si mesmo "protetor" do khan chagatai Suyurghatmish, Timur ganhou a legitimidade que precisava para efetivamente governar seu próprio império, tomando para si a promessa de restaurar o fragmentado império mongol.

Novamente, a generosidade que legava ao seu povo o tornou um monarca celebrado, ao menos no centro-norte do Irã, Turquestão e Uzbequistão, núcleo de seu império, como um herói (é oficialmente um herói nacional no Uzbequistão). De fato, aquela região da Ásia viveu seu apogeu cultural sob Timur. Das cidades e reinos derrotados, ele ordenava expressamente que seus artesãos, arquitetos, engenheiros, poetas, músicos e artistas fossem poupados de qualquer violência, e conduzidos à cidade de Samarcanda, no Uzbequistão, capital do novo império timurida. Seu trabalho (compulsório) tornou aquela cidade uma das mais belas do mundo por gerações (e até hoje, muitas dessas obras continuam de pé e em uso). Timur cercava-se de belezas trazidas como butim, ou produzidas por artistas cativos, e não recusava ao pedido de quem quer que fosse de compartilhar desses tesouros. Também era um ávido jogador de xadrez, que usava para aprimorar seu pensamento tático, popularizando este jogo na Ásia e na Europa (embaixadores europeus e viajantes eram convidados a jogar com ele), chegando até a fixar as regras de uma variante, o xadrez de Tamerlão, disputado num tabuleiro maior e com maior variedade de peças, refletindo a diversidade de seu exército multi-étnico e do que ele encontrava entre seus inimigos em batalha.

Esta generosidade e apreço pelas finas artes contrastava com os horrores impostos aos seus conquistados. Em 1387 a cidade persa de Isfahan se rendeu sem luta, e Timur a tratou com benevolência. Mas meses depois, a cidade se rebelou contra os novos impostos, e o imperador ordenou o massacre total da sua população. Algo em torno de 100 a 200 mil pessoas foram mortas, e um cronista contemporâneo contou 28 torres erguidas com 1500 crânios humanos cada uma. Em outra ocasião, na Índia, seus homens construíram uma pirâmide com 70 mil crânios. O terror era um instrumento de persuasão com a qual Timur pretendia conquistar seus vizinhos com menor esforço, e quando havia resistência, era preciso agir com impiedade para manter essa aura em torno de si. Uma opção controversa, que custou 17 milhões de vidas (cerca de 5% da população asiática do último quarto do século XIV) durante as suas campanhas.

Em 1385, o Khanato da Horda Dourada, vasto remanescente do império mongol centrado na Rússia, passou a atacar o norte do Irã, atravessando o Cáucaso. Havia muito a Horda Dourada havia se desconectado dos outros setores do antigo império, nutrindo desavenças mesmo com os turco-mongóis convertidos ao islã (sua religião oficial) na Pérsia. Timur, que seria exaltado por ter conseguido unificar a Grande Pérsia muçulmana (estendendo suas fronteiras do Rio Indo até a Mesopotâmia, área de tradicional influência cultural persa), também era visto mais como um rival e uma ameaça às fronteiras do que como um irmão de fé pelo khan mongol Tokhtamysh (que recebera apoio de Timur na ocasião da sucessão ao trono). Timuridas (que incluía mongóis, turcos, turcomanos, bactrianos, transoxanos, e diversas tribos turcas, mongóis e de matriz iraniana) e mongóis já haviam se enfrentado numa campanha de Timur à estepe russa. Como resposta ao avanço mongol pelo Cáucaso, os pequenos reinos situados entre as fronteiras dos dois impérios foram tomados um a um por Tamerlão, com pouca resistência, enquanto abria caminho para a Horda Dourada. E como todas as vezes que uma força vinda do Oriente Médio ou da Pérsia tentou invadir a Rússia pelo Cáucaso, ele encontrou a Geórgia pela frente.

A Geórgia é um país localizado entre as escarpadas montanhas do Cáucaso, cordilheira mais alta da Europa considerada sua fronteira sudeste com a Ásia, espraiando-se pelos seus vales até as margens orientais do Mar Negro. A dificuldade de se conquistar pela via militar e se estabelecer um sistema de governo integrado a um império estrangeiro, devido às dificuldades apresentadas pela natureza, manteve os georgianos no seu lugar, cultivando língua, escrita, cultura e religião que se mantiveram como bastiões quase imutáveis ao longo de milênios a despeito de gregos, romanos, persas, árabes, turcos e mongóis, no meio de uma das zonas historicamente mais dinâmicas do mundo.

A expedição de Timur, com o objetivo de pressionar a fronteira da Horda Dourada e bloquear sua passagem pelo Cáucaso, chegou ao sul da Geórgia no final de 1385, atacando a província de Samtskhe. O exército timurida arrasou o sul do país antes de marchar para a capital Tblisi. O rei Bagrat V, tido pelos seus contemporâneos como um administrador justo e um "soldado perfeito" (lembrado localmente como "O Grande"), optou por fortificar a cidade ao invés de encontrar os invasores em campo. Mas Timur, que havia decretado uma Jihad (Guerra Santa) contra a Geórgia Cristã, foi implacável. Em 21 de novembro de 1386, prevendo uma derrota iminente e as consequências dela para a capital, Bagrat se entregou a Timur. Sob a ponta de uma espada, o rei georgiano se converteu ao islã. Um cronista armênio da época, Tomás de Metsoph, exaltou a artimanha de Bagrat em usar a apostasia como forma de ganhar a confiança de Timur - essa visão tinha fundamento, já que Timur designara de 12 a 20 mil soldados para a guarda pessoal e os deixado às ordens de Bagrat.

Tblisi caiu, mas Timur não conseguiu assegurar o domínio sobre a Geórgia. Por toda a parte, bastiões em encostas de difícil acesso fustigavam a passagem dos timuridas e ameaçavam suas linhas de suprimentos. Mais preocupado com outras frentes, Timur recuou. Ele ordenara que Bagrat, agora um suposto aliado e irmão de fé, marchasse com seus soldados emprestados de volta a Tblisi para retomar o trono, ocupado provisoriamente pelo seu filho Jorge VII. Pai e filho, no entanto, entraram em negociações secretas, e Bagrat conduziu seus homens diretamente para uma emboscada. Com a guarda aniquilada, o filho resgatara o pai. Ambos se apressaram em antecipar a vingança de Timur, evacuando a população civil no sul do país, e organizando as defesas nas montanhas.

De fato Timur voltou em 1387, mas foi forçado a retornar de mãos vazias quando a Horda Dourada voltou a atacar o Irã. A próxima investida seria em 1394, quando Bagrat V já estava morto e o país era governado por Jorge. Desta vez, Timur em pessoa comandou a devastação das comunidades montanhesas no vale de Aragvi, ao norte de Tblisi, enquanto seus generais varriam o sul. Jorge VII escapou devido a mais um ataque providencial de Tokhtamysh ao Irã.

Em 1395, Jorge conseguiu o feito de vencer em batalha os timuridas liderados por Miran Shah, filho de Timur, durante o cerco à fortaleza de Alindjak, capturando um príncipe mongol. Em 1399, Timur retaliou mais uma vez, causando o máximo de destruição possível ao país, sem contudo tomar definitivamente qualquer posição importante. Em 1400 Timur exigiu que o tal príncipe fosse devolvido. Desta vez, Jorge foi derrotado em batalha, e na perseguição que se seguiu, atraiu desastradamente Timur para o interior do país, conseguindo despistá-lo em uma floresta. Mas, furioso, Timur sistematicamente devastou e pilhou tudo que pôde por meses, escravizando 60 mil georgianos, mas ainda assim não conseguiu firmar sua autoridade.

Em 1401, Jorge VII e Timur chegaram a um acordo. Os timuridas estavam em guerra com os turcos otomanos e era interessante assegurar a estabilidade na região até, pelo menos, poderem tomar alguma ação decisiva contra a Geórgia. Com a vitória em 1402, Timur usou como pretexto para deflagrar uma oitava campanha contra a Geórgia o fato do rei local não ter lhe oferecido as devidas congratulações. Tamerlão invadiu o país mais uma vez, mas Jorge recuou até a Abkhazia, região montanhosa no extremo noroeste do país. Cerca de 700 aldeias, vilas e cidades foram arrasadas e seus habitantes mortos. A essa altura, a Geórgia já não tinha muito mais o que oferecer em pilhagens (ou mesmo em impostos a arrecadar), e em algum momento, os conselheiros de Timur sugeriram oferecer o perdão a Jorge VII, em troca do pagamento de tributos (com o país continuamente arrasado pelos timuridas, os tributos incluíam termos muito específicos sabidamente ao alcance do rei, como um certo rubi que pesava mais de 80 gramas). No ato, Timur reconheceu a independência da Geórgia e seu status como uma nação cristã. Porém, antes de retornar à Ásia, ele ainda passou por Tblisi e colocou no chão todos os templos cristãos que encontrou de pé.

Timur morreu em 1405, durante uma campanha infrutífera contra a dinastia Ming, na China. Sua morte levou seus netos a uma guerra civil pela sucessão, e a confusão que se seguiu deu brecha para que forças internas (de nativos iranianos, afegãos, turcomanos, etc.) se firmassem e levassem à fragmentação do império. Não fosse a linhagem de um dos seus netos resultar na dinastia Mughal no norte da Índia algumas gerações mais tarde, e o seu atual status de herói nacional uzbeque (uma estátua sua foi erigida no local onde, em tempos soviéticos, ficava uma estátua de Karl Marx, em Tashkent), o legado de Timur teria virado poeira na História. Já a Geórgia aguentou o quanto pôde, mas os ataques constantes fragilizaram o país economicamente e demograficamente, e desde 1401 a região central de Imereti já havia se declarado independente (pelo próprio irmão de Jorge VII, Constantino, que era simpático a Timur), e o sudoeste do país entregue a um dos netos de Timur no último tratado firmado. Jorge VII terminou seus dias governando apenas uma fração do reino que herdara do pai. De uma forma ou de outra, a Geórgia sobreviveria como país independente até 1810, quando foi anexada pelo império russo, recuperando sua soberania, já como república, em 1991.

P.S.: Uma lenda ficou muito popular no século XX a respeito de Timur. Antes de morrer, ele teria dito o que se tornaria seu epitáfio: "Quando eu me levantar da tumba, o mundo tremerá". Em 1941, Joseph Stalin enviou o arqueólogo Milhail Gerasimov (um célebre especialista na reconstrução facial de figuras históricas) a Samarcanda para resgatar os restos de Timur, enterrados no seu mausoléu de Gur-e-Amir. Os ossos foram encontrados e examinados, e até aí as coisas foram devidamente registradas por Gerasimov e sua equipe, mas a lenda acrescenta que, além do suposto epitáfio, dentro da tumba ainda haveria uma segunda advertência: "Aquele que abrir minha tumba lançará um invasor mais terrível do que eu". Isto teria se passado no dia 19 de junho. No dia 21, Gerasimov e equipe teriam exumado o crânio. No dia 22, rompendo inesperadamente o pacto de não agressão com os soviéticos, a Alemanha Nazista deflagrou a Operação Barbarossa, campanha com objetivo de subjugar a Rússia comunista que resultaria no cenário mais sangrento da Segunda Guerra Mundial. Em novembro de 1942, os nazistas estrangulavam os russos na Batalha de Stalingrado, quando os arqueólogos sepultaram novamente os restos de Timur, seguindo, inclusive, os rituais islâmicos apropriados. Nos dias que se seguiram a maré virou para os russos, e três meses depois os alemães seriam derrotados em Stalingrado.

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