terça-feira, 31 de outubro de 2017

Indira era a Índia

Em 31 de outubro de 1984, a primeira ministra da Índia, Indira Gandhi, foi assassinada na sua residência oficial por dois seguranças.

Indira Gandhi, apesar do sobrenome, não tinha laços de parentesco com o pacifista revolucionário Mohandas "Mahatma" Gandhi, líder do movimento de independência da Índia. Ela era, contudo, filha de Jawaharlal Nehru, o primeiro a ocupar o cargo de Primeiro Ministro da Índia independente e amigo próximo do Mahatma (o sobrenome Gandhi veio do marido Feroze Gandhi, jornalista que também não era parente do mesmo). Indira estudou na Europa, e ao retornar à Índia, serviu próxima ao pai enquanto primeiro ministro. Logo ela presidia o Congresso com punho firme, e, após a morte de Nehru, passou ao Ministério das Comunicações. Em 1966 o primeiro ministro Lal Bahadur Shastri morreu, e a cúpula do Partido do Congresso (a força política majoritária da Índia desde o tempo do protetorado britânico) orquestrou a eleição de Indira ao cargo, pensando que ela seria forte apenas o suficiente para vencer o candidato da oposição, porém não tão forte que pudesse impor quaisquer dificuldades às aspirações do partido. De fato, a mídia indiana a chamava de "fantoche". Contudo, dificuldades econômicas levaram a derrotas do Partido do Congresso nas eleições regionais, e Indira logo começou a se indispor com seus líderes buscando soluções à esquerda para os problemas do país, além de indicar políticos de outros partidos ou independentes para cargos públicos.

Indira foi reeleita em 1971. No seu segundo termo, Gandhi obteve uma vitória estratégica ao apoiar, com sucesso, a independência de Bangladesh, então sob controle do do Paquistão, com quem a Índia se atrita por questões territoriais e religiosas desde antes da sua independência até hoje. Ela resistiu a um processo de impeachment por crimes eleitorais, mas o processo (que aconteceu em 1975, enquanto o país sofria com a crise do petróleo deflagrada dois anos antes) foi desgastante politicamente. Seu gabinete e seus ministros apelaram ao presidente Fakhruddin Ali Ahmed (indicado ao cargo por Gandhi em 1974) para declarar Estado de Emergência, concedendo à chancelaria o poder de governar por decreto. O resultado das sucessivas crises veio nas eleições de 1977, quando Indira foi derrotada. Ela retornaria ao Congresso como a principal força de oposição (passando por cima de Yashwantrao Chavan, indicado como líder pelo próprio Partido do Congresso).

Nos seus dois termos como primeira ministra, Gandhi mantivera a inflação e o desemprego sob controle, implementando melhorias graças à nacionalização de setores estratégicos da economia, blindando-a contra as pressões internacionais. Porém a crise do Irã e a alta do petróleo atropelaram seu sucessor, pavimentando caminho para uma nova candidatura. Em 1980, buscando apoio de muçulmanos, tamiles (Indira foi atacada por membro de um grupo separatista tamil em visita a Madurai, no sul do país, mas o jornalista Nedumaram a protegeu com seu corpo, sendo apedrejado. Nedumaran ainda hoje milita em causas humanitárias na região), e outras minorias étnicas e religiosas, foi eleita com larga vantagem para um terceiro mandato.

No ínterim entre o segundo e o terceiro mandatos, o partido Akali Dal, de maioria sikh, assumiu o poder no importante estado de Punjab. Os sikhs são um grupo religioso de origem punjabi, que cultuam uma única divindade, revelada pela sabedoria de seus gurus. Pregam, se não a dissolução, ao menos a igualdade de tratamento a todas as castas, desafiando a tradição hinduísta. Também tem um código rígido de vestimenta, o que inclui um turbante alto chamado Dastar que envolve os cabelos, que não devem ser cortados (o código é tão rígido que sikhs residentes no Reino Unido tem autorização especial para portar o kirpan, uma adaga curva, um dos símbolos invioláveis da religião; o atual governo canadense conta com dois ministros de Estado sikhs, que se apresentam formalmente com seus Dastars, kirpans, e demais assessórios). Quando assumiram o Punjab em 1977, o Partido do Congresso passou a apoiar o líder ortodoxo Jarnail Singh Bhindranwale, visando minar o poder do partido dominante através de um líder religioso extremamente popular. Contudo, as disputas internas no Punjab logo se tornaram violentas, e o nome de Bhindranwale passou a ser associado com atos violentos e execuções de rivais. Ele se entregaria à polícia em 1981, mas seus seguidores ainda se envolveriam em episódios de violência. Ele recebeu perdão do ministro do interior de Indira Gandhi e foi para casa como um herói.

O norte da Índia entrava em um período de tumulto. Enquanto o Akali Dal pregava a desobediência civil, comunistas, grupos extremistas sikhs, e a polícia envolviam-se em constantes confrontos. Bhindranwale encorajava seus seguidores a andarem armados. Em 1982 ele foi convidado pelo líder do Akali Dal, Harcharan Singh Longowal, a uma reunião no Templo de Ouro, local sagrado para os sikh em Amritsar, Punjab. Bhindranwale ficou hospedado com uma comitiva na casa de hóspedes do templo, mas, com consentimento do partido sikh, acabaria trazendo cerca de 200 seguidores para lá, para compor sua segurança. Na prática, Bhindranwale transformava o santuário em uma fortaleza, onde recebia a imprensa internacional para chamar atenção à sua causa. O Akali Dal operava o braço político dos sikh, enquanto Bhindranwale era seu líder religioso mais importante e principal coordenador de ações diretas contra o governo de Nova Delhi. Nas entrelinhas do movimento estava a criação do estado do Khalistão e sua autonomia, fomentadas pelos Sikhs desde a década de 1940.

Em abril de 1983, depois de uma reunião com Bindranwale, o inspetor de polícia do Punjab foi assassinado na saída do templo. Logowal acusou Bindranwale pelo assassinato e retirou seu apoio. Em dezembro de 1983, homens de Bindranwale, armados com fuzis, entraram no templo, montaram barricadas e armaram metralhadoras no seu terraço. A cidade viveu meses de inquietação silenciosa.

Em junho de 1984, após negociações infrutíferas e mal conduzidas, Indira Gandhi ordenou a execução da Operação Estrela Azul. Contra recomendações de militares de alta patente, alertando para o sacrilégio de usar força militar contra fiéis refugiados em um templo, ela ordenou o corte das comunicações, da eletricidade, e o bloqueio de todas as estradas e paralisação do transporte público em todo o estado de Punjab, isolando-o do resto do mundo. Ao longo de 9 dias, 10 mil soldados, paraquedistas, e helicópteros invadiram, bombardearam e perseguiram rebeldes no Templo de Ouro e arredores. Bindranwale e outros 150 militantes morreram, causando 700 baixas ao exército indiano.

O que poderia representar uma vitória acabou sendo um revés para Indira. A opinião de militares, imprensa, e órgãos de defesa dos direitos humanos dentro e fora da Índia oscilavam entre críticas ao uso excessivo da força, à violação à liberdade de informação (pelo corte das comunicações), e violações graves aos direitos humanos - a escolha da época do ataque, início de junho, coincidiu com o fim das celebrações do martírio de um guru sikh, ou seja, a cidade e toda a região do templo recebia visitantes peregrinos de todas as partes. Mais de 400 mortes de civis foram registradas oficialmente, e isso foi considerado por muitos como um ataque deliberado àquela religião. O historiador Harjinder Singh Dilgeer defende que Indira Gandhi planejava o ataque ao Templo de Ouro havia muito tempo para construir uma imagem heroica e vencer as eleições no fim daquele ano (outra tese era de que o ataque visaria bloquear a influência do Paquistão, que planejaria o apoio aos rebeldes). Cinco mil soldados sikhs do exército indiano se amotinaram, resultando em repressão violenta.

Indira era naturalmente escoltada por seguranças armados, mas temia que pudesse ser assassinada a qualquer momento. No dia 30 de outubro de 1984, visitando o estado de Odisha, teria dito: "Eu estou viva hoje. Posso não estar aqui amanhã. (...) e quando eu morrer, posso dizer que cada gota do meu sangue revigorará a Índia e a fortalecerá." Um destes seguranças era Satwant Singh Agwan. Outro era Beant Singh. Ambos, nos dias que sucederam à Operação Estrela Azul, converteram-se ao sikhismo. Ambos trabalhavam em turnos alternados, mas Satwant alegou problemas estomacais e trocou de horário com outro segurança, para levar a cabo o plano com o colega.

Na manhã de 31 de outubro, enquanto Indira saía de casa para uma entrevista com o ator inglês Peter Ustinov, Beant se aproximou e disparou três tiros de revolver na sua barriga. Quando ela caiu, Satwant descarregou sua submetralhadora sobre a primeira ministra, que só viria a morrer no hospital, 5 horas depois. Ambos largaram as armas e se entregaram imediatamente. Beant teria sido morto durante uma confusão com os demais seguranças na sala em que havia sido levado a interrogatório, e o colega ferido e levado a julgamento.

Na corte, Satwant disse não ter "ódio contra qualquer hindu, muçulmano, cristão, nem ódio por qualquer religião. Depois do meu martírio, não permita que um sikh atire uma pedra a qualquer hindu. (...) Se criarmos um banho de sangue, não haverá diferença entre nós e Rajiv Gandhi" (filho de Indira, nomeado seu sucessor, e responsabilizado pela onda de perseguição aos sikhs que se seguiu ao assassinato de sua mãe). A execução de Satwant e um tio de Beant (condenado por ter orientado o sobrinho a cometer o assassinato) em 1989 foi seguida de violência, com a morte de 14 hindus por militantes sikhs no Punjab no mesmo dia. Seus corpos foram cremados e as cinzas nunca devolvidas às famílias.

A família de Indira Gandhi continua protagonizando a política indiana - Sonia Gandhi, nora de Indira, é atualmente presidente do Congresso Nacional; o neto Rahul é vice-presidente do Partido do Congresso, e seu primo Varum Gandhi deputado pelo partido Bharatiya Janata. Indira construiu uma reputação internacional positiva atuando na mediação de conflitos, mantendo a Índia, na medida do possível, como um protagonista entre os países não alinhados durante a Guerra Fria (a despeito do seu movimento a favor da União Soviética por conta da hostilidade da China e dos Estados Unidos nos anos 1970), e por ter implantado, pela via socialista, políticas públicas que impediram a ruína econômica diante de crises internacionais de grande magnitude, diminuindo o desemprego e controlando a inflação, conferindo à outrora frágil economia indiana uma autonomia que a levaria a um contínuo crescimento nas décadas seguintes. Contudo, a Índia permanece em constante tensão interna por questões étnicas e religiosas, que ela não conseguiu resolver - e, no caso da relação com os sikhs, apenas piorou. No Punjab, onde os sikhs somam mais de 20 milhões de pessoas, os assassinos de Indira Gandhi ainda recebem homenagens - em 2014 foi produzido um filme exaltando o seu feito no incidente do assassinato, mas sua distribuição foi proibida pela autoridade de Nova Delhi.

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