quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Favorita das Nove Musas*

Em 18 de outubro de 1773, Phillis Wheatley, poetisa e escrava, recebeu a alforria.

Phillis Wheatley nasceu na África ocidental (talvez no Senegal, mas a origem é incerta), e foi vendida por um chefe tribal aos 7 anos a um comerciante de escravos. A menina, ainda sem nome, foi trazida num navio negreiro chamado Phillis ao mercado de escravos no porto de Boston em 1761. Ali, a sorte que havia lhe faltado sorriu: ela foi adquirida pelo alfaiate John Wheatley, para servir de companhia e ajudante à sua esposa Susannah. Wheatley era reconhecidamente um progressista notável que, embora mantivesse escravos domésticos a seu serviço, os tratava e mantinha com dignidade. A menina, batizada Phillis (em lembrança ao navio que a trouxe à América), e Wheatley (como de costume, para assinalar a propriedade da família que a comprou), ficou sob a tutoria da filha mais velha do casal, Mary, que a alfabetizou.

Mary, contudo, percebeu a facilidade de aprendizado e uma habilidade notável no uso e na expressão de línguas, não apenas do inglês - aos 12 anos, Phillis lia grego e latim, e interpretava passagens da Bíblia. Estava familiarizada com os poemas de Pope, Milton, Virgílio, Homero. Phillis começou a escrever aos 14 anos. Seu primeiro poema, "To the University of Cambridge, in New England" começa assim (e eu traduzo livremente):

"Enquanto um intrínseco ardor induz a escrever,
As musas prometem assistir a minha caneta;
Não faz muito tempo desde que deixei minha costa nativa
A terra de erros, e melancolia egípcia:
Pai de misericórdia, foi tua mão graciosa
Que me trouxe em segurança daquelas escuras moradias."

Impressionados pelo talento de Phillis, os Wheatley dispensaram-na dos serviços domésticos e investiram integralmente em sua educação. Quando completou 20 anos, Phillis foi enviada a Londres sob recomendação médica. Susannah Wheatley incentivou a viagem porque acreditava que Phillis teria mais facilidade para publicar seus poemas lá do que em Boston. De fato, em 1772, antes de partir para Londres, uma comissão de cidadãos de Boston abriu processo contra Phillis, questionando que uma escrava africana pudesse escrever poesia de qualidade, e precisou que ela se submetesse a uma corte, na presença de intelectuais locais (entre eles, John Hancock, um dos signatários da Declaração de Independência), para atestar a autoria dos seus poemas. Em 1773, em Londres, publicou seu livro "Poemas Sobre Vários Assuntos, Religiosos e Morais" (o documento produzido pelos intelectuais de Boston no ato do julgamento foi incluído no prefácio da primeira edição), e caiu nas graças da nobreza britânica. Já editores na América se recusaram a publicá-lo. Foi logo após a publicação em Londres e seu retorno que John Wheatley (talvez por pressão dos influentes amigos de Phillis) concedeu-lhe a alforria:

"Desde meu retorno à América meu Mestre, segundo o desejo de meus amigos na Inglaterra, deu-me a liberdade".

A vida de Phillis Wheatley depois da escravidão, contudo, não foi fácil. Seus antigos mestres e protetores faleceram, Susannah em 1774 e John em 1778. A poetisa não gozava de boa saúde, o que atrapalhava seu trabalho. Em 1778 casou-se com John Peters, um negro livre que tinha uma quitanda, e com ele viveu anos de pobreza, perdendo dois bebês. Ela tentou publicar um segundo volume de poesias, mas já na época da Revolução Americana havia pouco interesse e recursos para isso. Peters foi preso por dívidas em 1784, e poucos meses depois, ela morreu enquanto trabalhava como assistente de cozinha de uma estalagem. Seu terceiro filho morreu na mesma época, e os dois foram enterrados juntos numa cova comum.

Phillis Wheatley tornou-se a primeira escrava negra na América a publicar uma obra literária. Em Londres, onde o estigma da escravidão não lhe tomava a liberdade de expressão, relatava experiências e opiniões diversas nos círculos de intelectuais que frequentava. Porém o corpo da sua poesia, finamente ritmado e essencialmente devocional, religioso, raramente toca nas suas experiências pessoais. De fato, ela expressava, por exemplo, sentimentos ambíguos quanto à escravidão, devido à benfeitoria dos Wheatley em sua vida, o que levou autores negros contemporâneos, e estudiosos posteriores a criticar a postura (o uso progressivo de símbolos classicistas nos seus poemas, uma provável adaptação ao que ainda guardava da sua cultura ancestral, levou o escritor e escravo Jupiter Hammon a criticar seu "paganismo", dedicando a ela um poema composto por versículos bíblicos). No poema "Sobre Ter Sido Trazida da África para a América", ela louva a sua condição de escrava por ter permitido que conhecesse o Cristianismo, mas firma o pé na contestação do senso comum da época de que negros tinham uma linhagem e um destino espiritual distintos dos brancos:

"Foi misericórdia que me trouxe de minha terra Pagã,
Ensinou minha alma ignorante a entender
Que há um Deus, que há um Salvador também:
Uma vez que a redenção não procurei nem conhecia.
Alguns veem nossa negra raça com olhos desdenhosos,
'Sua cor é uma tintura diabólica.'
Lembrem-se, Cristãos, Negros, pretos como Caim
Podem ser refinados e juntar-se ao seu cortejo de anjos."

Em 1775, já durante a Revolução, época em que os poemas de Phillis Wheatley tomavam ares heroicos frequentando temas patrióticos e elogiando figuras públicas, ela escreveu uma carta ao recém nomeado comandante-em-chefe do Exército Continental, George Washington. O poema terminava nos versos:

"Continua, grande chefe, com virtude ao teu lado,
Todas as tuas ações deixa que a deusa guie.
Uma coroa, uma mansão, e um trono que brilhe,
Com ouro inalterável, WASHINGTON! Sejam teus."

Washington respondeu a carta, endereçando-se a "Senhorita Phillis", desculpando-se pela demora (5 meses entre o envio da carta de Phillis e a resposta de Washington), elogiando as "linhas elegantes" e seu "marcante talento poético". Ele diz ainda que teria arranjado sua publicação, se isso não parecesse um ato de vaidade e auto-promoção da sua parte (mas compartilhou-o com o tenente-coronel Joseph Reed, que teria encaminhado-o para o jornal The Pennsylvania Magazine em 1776), convidando-a a encontrá-lo em Cambridge. Por fim, dedica a carta à ex-escrava como "seu obediente e humilde servo".

Em Boston foi erigido em 2003 um monumento homenageando três mulheres importantes da história americana: Abigail Adams, esposa e conselheira do "Founding Father" John Adams e mãe do presidente John Quincy Adams; Lucy Stone, abolicionista, feminista e sufragista; e Phillis Wheatley.

*O almirante escocês-americano John Paul Jones pediu que um subordinado enviasse seus próprios escritos a "Phillis a Africana, favorita das Nove e Apolo".

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