quinta-feira, 26 de outubro de 2017

A Revolta de Asen e Pedro

No dia de São Demétrio de Tessalônica, 26 de outubro de 1185, os irmãos Teodoro (mais tarde, Pedro) e Ivan Asen deflagraram uma revolta contra os impostos abusivos cobrados pelo Império Bizantino para custear o casamento do seu imperador. Esta revolta resultaria na independência da Bulgária e na coroação de ambos como tsares.

A partir do século IX os búlgaros, então uma confederação de tribos semi-nômades, se organizaram num império próprio que rivalizava com o Império Bizantino nos Bálcãs. Invasões de magyares (os atuais húngaros, que faziam parte originalmente da confederação búlgara), pechenegues (uma tribo proto-turca), e a ascendência da Rússia Kievita desestabilizaram o Primeiro Império Búlgaro ao ponto da maior parte do seu território ser absorvida pelo Império Bizantino, e os búlgaros perderem a sua autonomia.

As coisas permaneceram assim por mais ou menos um século e meio. A aristocracia búlgara era aplacada por privilégios garantidos pelo trono de Constantinopla, mas mesmo assim muitos deles foram expatriados para cidades na Anatólia, deixando a população búlgara sem líderes naturais ou legítimos (no sentido de "alguém com condições de recrutar um exército"). A religião também foi usada como forma de desconfigurar a identidade nacional búlgara: a estrutura to patriarcado ortodoxo búlgaro foi submetida a um arcebispo que respondia diretamente ao Patriarca de Constantinopla. Porém, os búlgaros continuaram em suas terras, e nenhum processo de aculturação funciona enquanto o Estado trata a população cativa de maneira distinta, especialmente dentro de sua própria casa. Foi o erro que levou à revolta de 1185.

Andrônico I Komnenos foi imperador bizantino por dois anos. Neste período, o idoso imperador parecia mais preocupado em assegurar um descendente da sua própria linhagem pela supressão ao poder de barões locais do que em manter as estruturas que o seu pré-antecessor, o reformador Manuel I Komnenos, havia estabelecido para reerguer o império em todos os campos. Num episódio particularmente violento, ele ordenou a execução de prisioneiros, exilados, e suas famílias, causando revoltas por todo o império. Andrônico foi deposto e executado por um militar (que, embora tivesse se envolvido em duas revoltas contra o mesmo, havia sido mantido no cargo graças aos laços com a família Komnenos), Isaque Angelos, que assumiu o trono como Isaque II.

O novo imperador assumiu no meio de uma invasão de normandos baseados na Sicília, e investiu tudo que podia para expulsá-los com sucesso. Antevendo as dificuldades econômicas políticas que enfrentaria dali para frente, achou melhor garantir-se no trono através de alianças com potências regionais. Ele arranjou rapidamente o casamento de uma sobrinha com um príncipe sérvio, e de sua irmã com um nobre italiano (Conrado de Montserrat, um senhor de terras influente que poucos anos depois viria a ser um dos principais comandantes na Terceira Cruzada, e coroado rei de Jerusalém). Para si mesmo, obteve a mão de uma princesa húngara, Margarida, cujo parentesco a ligava ao Sacro Império Romano, às nobrezas russa, italiana, e francesa, bem como à própria nobreza bizantina. O arranjo se deu ainda em 1185, mas a cerimônia seria realizada, em Constantinopla, no ano seguinte. A ocasião serviria para exibir todo o poder e glória do imperador. Porém, com os cofres vazios, a saída para bancar a festa seria o aumento de impostos.

Os búlgaros, na sua grande maioria, eram pastores, camponeses, artesãos. Desde a anexação da Bulgária, o antigo esplendor imperial de suas principais cidades foi diluído nos cofres bizantinos. A taxação criada por Isaque II, no entanto, não levava em consideração o que cada comunidade podia oferecer em relação ao que produzia. Era uma taxa horizontal e uniforme, que penalizava os mais pobres, que eram as populações dos Bálcãs propriamente ditos, os búlgaros e valáquios, que também haviam sido anexados. Em protesto, dois irmãos, Teodoro e Ivan Asen (ou "João", que é o equivalente a Ioan em búlgaro), filhos de um rico pastor valáquio e, possivelmente, administradores de uma criação de cavalos imperial perto de Tarnovo (atual Veliko Tarnovo), foram escolhidos pelos búlgaros e enviados à atual cidade de Ipsala expressar, diante do imperador, sua indignação com a medida. Condicionaram sua obediência a posições de comando no exército e a posse de terras. Isaque sequer concedeu-lhes audiência, mas um tio seu ordenou que Ivan fosse esbofeteado pela insolência.

Os irmãos Asen retornaram às suas terras e conclamaram o povo a uma rebelião. Mas seus compatriotas temiam mais a repressão bizantina do que a sua opressão fiscal. Era preciso outra estratégia para unir búlgaros e valáquios contra os bizantinos. Uma saída seria pela via religiosa, e, em meio à guerra entre bizantinos e normandos, a invasão à Trácia viria bem a calhar.

A cidade de Tessalônica foi saqueada pelos normandos em agosto de 1185, gerando a cadeia de eventos que levaria à queda de Andrônico. De alguma forma, os ícones de São Demétrio de Tessalônica, padroeiro daquela cidade e principal santo adorado pelos búlgaros, vieram parar em Tarnovo. Os irmãos Asen, ainda de mãos vazias, coordenaram a construção de um pequeno templo dedicado ao santo (atualmente a igreja de São Demétrio de Tessalônica, em Veliko Tarnovo), onde suas relíquias eram exibidas. Conhecidos profetas e adivinhos, que circulavam pelas aldeias balcânicas, foram convocados ao local. No dia de São Demétrio, em 26 de outubro de 1185, diante do povo, e sob a sugestão dos Asen, eles anunciaram que, em suas visões, a vinda de São Demétrio para Tarnovo significava que o santo havia retirado seus favores sobre os bizantinos e abençoado os búlgaros, e que os auxiliaria na revolta contra seus suseranos. Não poderia ter funcionado melhor: todos os presentes se ofereceram para lutar com os Asen.

Por toda a Bulgária, grupos rebeldes passaram a atacar possessões imperiais, capturando gado e fazendo prisioneiros. A importante cidade de Preslav foi sitiada sob o comando de Teodoro Asen. A cidade não foi tomada, mas os búlgaros retornaram com bois, ovelhas, tudo que puderam saquear no seu entorno. Teodoro teria então investido a si mesmo como Tsar ("César", ou Imperador), e adotado o nome de Pedro II, provavelmente em homenagem a um certo Pedro Delyan, um rebelde búlgaro do século XI (Pedro I, imperador búlgaro, era um aliado dos bizantinos, por isso pouco provável de que tenha sido ele o homenageado).

Isaque estava ocupado demais com os normandos na Trácia para dar a devida resposta a uma revolta camponesa, mas em 1186, o cronista bizantino Nicolau Coniates conta que as forças de Isaque alcançaram os rebeldes em "lugares inacessíveis", mas que uma grande escuridão que subitamente tomou as montanhas (o eclipse solar da manhã de 21 de abril daquele ano) permitiu a sua vitória. No entanto, as fortalezas rebeldes eram construídas nas partes mais escarpadas das montanhas, onde os bizantinos não conseguiam alcançar, e os antigos castelos ao longo do Danúbio, deixados de lado (porque Isaque achava que sua vitória havia sido decisiva), serviam de refúgio aos búlgaros. Depois daquela derrota, enquanto Pedro ganhava tempo negociando uma rendição, Ivan Asen cruzou o baixo Danúbio, para onde regressou com um exército de cumanos (tribo turca que habitava o noroeste do Mar Negro).

Com o auxílio dos cumanos, Pedro liderou a campanha que culminou com a tomada da Moésia - antiga região que corresponde ao centro-norte da atual Bulgária. Enquanto isso, Ivan paralisava as contra-ofensivas bizantinas com a tática de ataques rápidos e retiradas. Em certa ocasião, Isaque II, temendo que seu tio João Doukas (o mesmo que mandou esbofetear Ivan) usurpasse o trono, retirou dele o comando das tropas na Moésia, dando comando a um certo João Cantacuzeno, que era cego e não tinha relações com a família imperial (o exército de Cantacuzeno foi esmagado em seu próprio acampamento em algum lugar nas montanhas). De acordo com uma carta de Nicolau Coniates ao imperador, os irmãos não se contentariam em controlar a Moésia, mas uni-la à "Bulgária" (região que na época correspondia a boa parte da Sérvia, Macedônia, e oeste da Bulgária propriamente dita), "em um império, como nos velhos tempos". Em algum momento de 1187, Ivan Asen teria sido aclamado extra-oficialmente co-Tsar junto a seu irmão.

Finalmente, depois de um cerco mal sucedido à cidade búlgara de Lovech em 1187, Isaque propôs um armistício, reconhecendo Pedro e Asen (Ivan é mais conhecido na posteridade pelo sobrenome) igualmente tsares da Bulgária e a sua independência. A paz entre os dois impérios não duraria muito. Frederico Barbarossa, sacro-imperador romano, conduzia um exército de 40 mil homens para a Terceira Cruzada em 1189, mas pretendia forçar a passagem pelo Império Bizantino (os bizantinos haviam proibido os cruzados a passarem por seu território devido a episódios de saques nas cruzadas anteriores, motivo que levava os cruzados a operações de transporte marítimo pelo Mediterrâneo extremamente complexas). Os Asen ofereceram um exército ao imperador alemão. Como Isaque e Barbarossa acabariam resolvendo a questão diplomaticamente, o imperador bizantino empreendeu campanha contra a Bulgária, mas foi derrotado numa passagem estreita entre as montanhas perto de Triavna por Ivan Asen. Isaque fugiu, deixando tesouros como seu elmo dourado, a coroa e a cruz imperiais, e um relicário de ouro maciço contendo um pedaço da cruz de Cristo para serem capturados (um clérigo búlgaro a jogou num rio, mas foi resgatada). Diz-se que a partir daquele momento Pedro teria coroado oficialmente seu irmão e deixado grande parte da administração imperial com ele, mantendo-se no cargo ao seu lado como conselheiro. Juntos, comandaram campanhas bem sucedidas contra os bizantinos.

Asen acabaria assassinado em 1196 por um nobre valáquio, Ivanko, que estaria tendo um caso com a sua cunhada (ou talvez sob influência de Isaque Angelos, na época deposto, cego e preso, mas que teria oferecido a ele uma filha sua em casamento, como de fato aconteceu). Ivanko, vendo que não teria apoio para destronar Pedro, fugiu para Constantinopla. Pedro nomeou então seu irmão mais novo, Caloian, co-Tsar. Contudo, o tempo inteiro, tanto Pedro como Ivan dependiam das espadas cumanas ao seu lado para fazer valer a sua lei, e teria sido o descontentamento com essa influência estrangeira que moveu um camponês anônimo a assassiná-lo meses depois. E Caloian morreu em 1207 enquanto cercava Tessalônica - dizem os cronistas, morto em sua tenda pela lança do próprio São Demétrio.

O assim chamado Segundo Império Búlgaro chegou a abocanhar a Valáquia, a Albânia e a maior parte da Grécia, e existiu até ser solapado pelos otomanos em 1396.

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