quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Duas Chinas

Em 11 de outubro de 1142 foi ratificado o tratado de Shaoxing entre a Dinastia Jin, que controlava o norte da China, e a Dinastia Song, que dominava o sul, formalizando o fim da guerra entre os dois Impérios.

Embora se sustente que a China seja o país que existe continuamente há mais tempo no mundo atual (desde a unificação dos seus reinos em 221 a.C.), a sua história é bem mais complicada do que uma uma sucessão linear de governantes no atual território chinês. Por vezes, o que chamamos de "China" chegou a ter mais de um imperador simultaneamente. Era o caso das dinastias contemporâneas Song e Jin.

A Dinastia Song emergiu do caos que se seguiu à dissolução da dinastia Tang em 907. Os Tang vinham perdendo controle sobre os senhores da guerra e administradores provinciais do seu território, que, cada um à sua maneira, tornaram suas terras virtualmente independentes debaixo do nariz dos seus últimos imperadores. Depois de 907, pelo menos 10 reinos diferentes existiram na China, enquanto famílias nobres lutavam inutilmente entre si pelo cargo simbólico de Imperador (o período entre 907 e 960 é conhecido como Cinco Dinastias e Dez Reinos). Foi um período de disputas violentas entre os vários poderes emergentes em busca de estabilidade e supremacia, até que em 960, Zhao Kuangyin, um jovem militar que tivera ascensão meteórica no reino de Hou Zhou, depôs o neto do seu antigo suserano e assumiu para si o título de Imperador. Aconteceu de Zhao Kuangyin estar à frente de um exército em marcha quando espalhou-se o rumor entre os soldados de que um vidente teria visto um sinal indicando que o Mandato dos Céus (o ato divino conferido aos "justos" que legitimava o poder imperial) deveria ser entregue a ele. O rei era um menino de 7 anos, e não foi muito difícil para que Zhao fosse entronizado pelos seus comandados depois disso. Ficaria conhecido como Imperador Taizu, fundador da Dinastia Song.

Nos 17 anos de reinado de Taizu, o Império Song, firmemente centrado na cidade de Kaifeng, no noroeste da China, conquistou primeiro os reinos do sul, para depois investir nos reinos ao norte. O sucesso dos Song se deveu principalmente à reforma administrativa de Taizu (instituindo nomeações por concurso público ou exame de mérito, ao invés do loteamento de cargos entre aristocratas e militares), e no investimento em cartografia - o conhecimento detalhado dos domínios Song levou à confecção de um atlas, favorecendo a aplicação eficiente de políticas públicas. Inovações técnicas e científicas também eram favorecidas por incentivos públicos. A diplomacia Song mantinha embaixadas na Índia, Pérsia, Coréia, Egito, Srivijaya (o opulento império comercial que dominava a passagem do Estreito de Malaca), mantendo ainda relações com o Japão e o Império Bizantino.

Ao norte do que os Song consideravam seu, nas vastas planícies entre a Mongólia e a Manchúria, a ausência de um poder central chinês favoreceu a organização e estabelecimento de Estados rivais controlados por antigos povos nômades que emulavam o modelo administrativo chinês. Após a queda dos Tang, a etnia kitai foi unificada num império próprio, designando sua casa reinante como a Dinastia Liao. Liao é tratado pela historiografia chinesa tradicional como um reino estrangeiro, mas seu sucessor, a Dinastia Jin, teria tratamento diferente. Como os kitai, os jurchen, nativos da Manchúria, emergiram como tribos mais ou menos independentes, embora submetidas a Liao. Porém, conforme o poder central afrouxava, os jurchen rebelavam-se, realizando ataques pontuais e saques a cidades. Depois de uma campanha bem sucedida ao lado dos coreanos, os jurchen uniram-se sob um governante comum, e a partir de 1115, forjariam seu próprio império sobre as ruínas de Liao, a Dinastia Jin. Os kitai manteriam sua soberania por mais algum tempo no reino de Qara Kitai, no noroeste da China.

Os Song haviam firmado aliança com os Jin contra Liao, mas nunca forneceram os exércitos prometidos. Logo após o fim da Dinastia Liao - pela captura do seu Imperador Tianzuo em 1125 - a Dinastia Jin rompeu a aliança e partiu para a ofensiva sobre o nordeste do domínio Song. Em dois anos, a capital Song, Kaifeng, cairia sob domínio Jin. Uma conspiração de nobres centrados em Beijing contra os Song foi instrumental para o sucesso dos Jin no norte da China. Os Imperadores Jin, agora controlando partes da China de facto, só poderiam tê-lo feito sob o Mandato dos Céus, o que os legitimaria, portanto, como governantes chineses. Na prática, os jurchen, à medida em que migravam para as novas áreas conquistadas, incorporavam para si características culturais chinesas, e sua nobreza era educada nos clássicos chineses.

Jin e Song passaram mais de uma década numa guerra de atrito, interrompida temporariamente por intrigas palacianas, rebeliões internas, e questões de sucessão. Para os Song a situação ainda era mais crítica, pois a crise levava oficiais chineses (tanto leais aos Song, como os que estiveram a serviço de Liao) a preferirem oferecer seus serviços aos conquistadores estrangeiros do que ao seu próprio imperador.

A corte Song (ou o que restava dela após a captura de Kaifeng) havia cruzado o rio Yantse e reagrupado na atual cidade de Hangzhou, virtualmente abandonando todas as terras ao norte do rio Huai para os Jin. Porém, há evidência de que o novo Imperador Song eleito, Gaozong (um usurpador, mas o usurpador que a nobreza Song precisava), preferia evitar o conflito com os Jin para impedir a restauração do imperador deposto em Kaifeng, Qinzong. Manobras políticas conduziram a acusação de importantes militares Song por traição, responsabilizando-os pelas derrotas dos Song. Um deles, Yue Fei, estava prestes a retomar Kaifeng quando foi chamado a Hangzhou, onde foi preso e executado. A política de conciliação dos Song do sul com o Jin conduziu ao Tratado de Shaoxing, em que os Song abdicavam de todas as terras ao norte do Huai e se comprometiam a pagar tributo anual aos rivais do norte. Os Song sobreviveram no sul graças ao investimento na construção de uma marinha mercante e uma marinha de guerra, já que manteve controle sobre algumas das principais cidades portuárias da China.

Já os Jin precisaram desviar energia para conter revoltas dos remanescentes kitai em seus domínios, bem como de clãs jurchen que se opunham à sinificação, e conflitos com o reino tangute de Xi Xia no leste. A guerra com os Song foi suspensa não apenas por força de tratado (rompido em algumas ocasiões, porém em batalhas inconclusivas), mas pela incapacidade dos Jin de direcionar recursos para esta frente. Mas a queda começou quando as tribos mongóis começaram a se movimentar pela unificação em torno de Genghis Khan. Genghis arrasou Xi Xia entre 1205 e 1209, e em 1211 invadiu o império Jin com 50 mil guerreiros montados, dez vezes menos do que o estimado para o exército Jin - e mesmo assim, em 1214, os Jin assinaram um tratado desfavorável com os mongóis. O filho de Genghis, Ogedei, comandando um exército engordado por chineses insatisfeitos, esmagou tanto Xi Xia quanto Jin entre 1232 e 1234.

Já os Song resistiram até 1279. Foi durante a campanha de expansão para o sul que Kublai Khan, que acumulava para si o cargo de Grande Khan do imenso Império Mongol e de administrador da China, instaurou a si mesmo Imperador chinês, fundando a dinastia Yuan em 1271. Uma batalha naval em Yamen (com enorme superioridade numérica Song, e um exército invasor composto praticamente todo por soldados e marinheiros chineses) resultou na morte do último imperador Song e sua corte, ou por suicídio, ou por afogamento.

Ironicamente, a China como existia precisou ser destruída por outro invasor estrangeiro para ser, enfim, reunificada. Após o estabelecimento da Dinastia Yuan, a China, embora tenha sido invadida e repartida entre administradores estrangeiros e estados-fantoches algumas vezes, nunca mais foi dividida.

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