quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Briga de Torcidas

Em 11 de janeiro de 532, uma briga de torcidas durante uma corrida de carruagens em Constantinopla degenerou em dias de confrontos violentos pela cidade e numa tentativa de golpe de estado contra o Imperador Justiniano, conhecida como a Revolta de Nika.

Durante os tempos do Império Romano, e depois no Império Bizantino, competições esportivas eram espetáculos populares de primeira grandeza, gradualmente suplantando em tamanho e importância as encenações épicas de mitos e eventos históricos importantes. Competições atléticas, lutas com gladiadores, corridas de cavalo e carruagens. Atletas, lutadores e corredores eram patrocinados por organizações sociais, ou facções, que retiravam do interesse popular e sucesso de seus pupilos uma gorda margem de lucros. Eram como os clubes que nos são familiares. E, tanto lá como cá, cada facção atraía torcedores para suas bandeiras. E, tanto lá como cá, em muitos casos as competições acobertavam transações ilícitas e jogos políticos, e gangues sob uma ou outra bandeira eram empregadas para proveito ou prejuízo de terceiros.

Em Roma, as facções eram quatro, identificadas por cores: vermelhos, azuis, verdes e brancos. No Império Bizantino, as facções atuavam basicamente nas corridas de carruagem, e eram apenas duas: Azuis e Verdes. Numa era e lugar onde a participação popular na política era muito limitada, as facções tomavam ares de partidos políticos munidos de milícias que tomavam partido publicamente de assuntos de interesse público, como a nomeação ou eleição de políticos e herdeiros do trono e questões teológicas - para apaziguar uma revolta ou afirmar-se diante de uma ou outra facção, políticos de alto escalão, e mesmo o imperador, defendiam publicamente alguma bandeira, até porque o Hipódromo ficava ao lado do Palácio Imperial em Constantinopla. Aristocratas, políticos, empresários do ramo e cidadãos ricos assumiam posições de comando dentro das facções. O Imperador Justiniano torcia pelos Azuis. As corridas no Hipódromo eram pequenos campos de batalha virtual pelo poder em Bizâncio.

Justiniano era um homem inseguro, talvez tímido, o que se refletia na proeminência de sua esposa Teodora nas decisões políticas e no trato com a Igreja Ortodoxa. É possível associar à habilidade de Teodora a manutenção de Justiniano no trono em boa parte do seu reinado. Mas Justiniano tinha uma virtude: sabia escolher como poucos os mais capazes para o desempenho de cada função. Desta maneira, ele estabilizou o antigo Império Romano do Oriente (atacado por todos os lados por germanos na Europa e persas na Ásia), reconquistando territórios que antes pertenciam à metade ocidental do Império sob controle germano (Cartago, parte da Espanha, Sicília, boa parte da Itália, incluindo a própria Roma, sob a liderança competente de seu sobrinho Belisário). Contra os persas, que antagonizavam Bizâncio no leste, Justiniano chegava a um acordo de paz que lhe permitiria aliviar impostos e investir na reestruturação dos territórios conquistados.

O outro gume da faca é que, nomeando pessoas competentes para cargos importantes, Justiniano negligenciava o poder de influência de aristocratas na administração do império. As famílias nobres ressentidas por não figurarem no controle das instituições inflamavam a população contra o que acusavam ser uma política abusiva de impostos, empregados para financiar a expansão do Império e a contenção da fronteira oriental. Ao invés de negociar com os aristocratas descontentes, Justiniano apostou no sucesso da política externa para reverter a situação internamente a seu favor.

Porém, toda a campanha contra sua política se manifestava de maneira progressivamente violenta a cada evento no Hipódromo. Semanas antes da Revolta de Nika, verdes e azuis se envolveram numa onda de confrontos, onde sete deles foram presos sob acusação de homicídio e condenados à pena de morte. No dia das execuções, dois presos, um verde e um azul, escaparam e se refugiaram na Igreja de São Laurêncio. Partidários dos verdes e azuis protestavam pela sua liberdade em torno da igreja, mas Eudaemon, o prefeito da cidade, cercou-a com soldados e os arrancou de lá. A situação durou três dias, aumentando a tensão na capital.

O terceiro dia coincidiu com os idos de janeiro, data em que Justiniano declarara grandes corridas no Hipódromo, em que o próprio deveria estar presente. Durante o evento, torcedores das duas facções (vestindo-se com as cores correspondentes e agrupando-se em setores distintos das arquibancadas), em trégua previamente acordada, clamavam pelas vidas dos fugitivos. Justiniano, na sua tribuna, não dava resposta aos apelos. Lá pela décima segunda corrida do dia, alguém nas arquibancadas gritou "Vida longa aos Verdes e Azuis". De repente, as duas facções tornaram-se uma só, e seus membros trocavam entre si gritos de "Nika", "Nika" ("Vença" em grego, daí o nome da revolta). Justiniano recolheu-se ao seu palácio. As pessoas saíam do Hipódromo e inundavam as ruas, e incêndios e saques rapidamente tomaram lugar. Grande parte da massa permaneceria por dias no Hipódromo, por conta da sua proximidade com o palácio e como via de acesso ao imperador.

De forma relutante e desastrada, Justiniano acabou autorizando a soltura dos dois torcedores fugitivos, mas a revolta havia tomado outro rumo: antes de atendida sua ordem, os revoltosos se reuniram na prefeitura, e como Eudaemon se recusasse a soltar os prisioneiros, as pessoas atacaram os guardas e os arrastaram para fora. Agora a nova massa, recém empoderada, começou a exigir a substituição de três mandatários impopulares (incluindo Eudaemon). No dia seguinte Justiniano tentou dar reinício às corridas, e ao público concordou com suas demandas.

Mas a revolta assumiu uma dimensão mais sinistra: não eram apenas cidadãos de Constantinopla que reclamavam de uma situação política desfavorável e explodia no único canal de comunicação com o poder de que dispunham: havia uma grande massa de camponeses que, arruinados pela política fiscal do império, emigraram para a capital em situação de extrema pobreza, e mais do que novos nomes para cargos públicos, exigiam vingança contra os que percebiam serem causadores da sua miséria. E, manobrando essa massa, senadores ansiosos não por nomeações, mas pelo próprio trono bizantino. A incapacidade de pacificar pela negociação levou ao emprego da força, mas como os soldados enviados eram incapazes de conter os tumultos, isto foi visto pela população como um ato de hostilidade. Quando Justiniano apareceu em público novamente (e as revoltas já tomavam ares de guerra civil, com confrontos violentos, mortes e destruição por toda a cidade), com uma cópia do Evangelho nas mãos, prometeu atender a todas as exigências. Mas o povo respondia com "Viva Hipácio!" (sobrinho do seu antecessor Justino). Suspeitando dos senadores que se encastelavam no palácio consigo, Justiniano ordenou que eles saíssem, junto com qualquer um que questionasse a ordem - fazendo com que os que ainda não haviam tomado partido se juntassem às fileiras em ebulição.

Cercado, Justiniano apelaria para seu exército, leal e endurecido pelas recentes conquistas no ocidente, mas pensava em fugir pelo mar. Neste momento, Teodora levantou-se e disse que a fuga era inoportuna, e que trocaria a segurança do exílio pela morte - e que um palácio seria uma sepultura mais do que digna para a realeza. Isso parece ter impressionado Justiniano e seus apoiadores, porque imediatamente ele tomou o controle sobre as ações para debelar a revolta: primeiro enviou um eunuco para espalhar dissenção entre as facções, espalhando boatos de que uma delas pretendia apoiar um ou outro para o trono, e que conspiravam mutuamente (ele também subornada lideranças dos azuis para lembrá-los de que Justiniano pertencia à sua facção). Belisário, no comando do exército, se encarregaria de enfrentar, perseguir e executar quem resistisse; cercando-os no Hipódromo com os soldados que quase destruíram o reino Ostrogodo na Itália, Belisário teria ordenado a morte de até 30 mil pessoas, basicamente civis armados com o que encontravam à mão.

Hipácio foi executado e senadores rebeldes exilados. Mais da metade da cidade foi destruída, incluindo a monumental catedral de Santa Sofia. Graças à altivez decisiva de Teodora, Justiniano agora via-se livre para dar sequência à sua ambição, reunir o Império Romano - porém a arrastada campanha na Itália, desfalcada do seu principal general Belisário (tratando nos anos seguintes dos conflitos com a Pérsia), e a alta carga de impostos, começaria a causar revoltas nas províncias recém conquistadas no oeste. A demanda excessiva por recursos e a incapacidade de arrecadá-los e administrá-los transformou o renovado Império Bizantino num pão muito grande com pouca manteiga em cima, e logo após a morte do imperador, incapaz de se adaptar à dinâmica das mudanças sócio-políticas no oeste e ao Islã no leste, ele tomaria um caminho lento e inexorável à sua destruição final, em 1453, quando os turcos tomaram Constantinopla.

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