sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O homem sem sombra

Em 21 de agosto de 1838 faleceu de tuberculose Adelbert von Chamisso, escritor e naturalista franco-alemão que viria a ser bem sucedido nas duas carreiras.

Chamisso nasceu na França (seu sobrenome era grafado originalmente "Chamissot"), mas devido à Revolução, sua família emigrou para Berlim. Seguindo carreira militar na Prússia, ele permaneceu ali quando sua família recebeu permissão para retornar à França. Enquanto servia, estudava ciências naturais e arriscava uns versos. Dispensado do exército em 1807 e desempregado, recusou um emprego como professor para seguir Madame de Staël, uma socialite francesa, patrocinadora de escritores e poetas diversos, para seu exílio na Suíça. Convivia permanentemente com a dualidade de ser um francês em terra alemã (e em 1810, em visita a Paris, um alemão em terra francesa), tendo que lidar com o idioma alemão escrito enquanto pensava em francês e sonhava com as terras de seus pais. Sua dualidade também era vivida nos seus campos de interesse: simultaneamente a literatura e a botânica. Aos 35 anos embarcou numa expedição científica russa de volta ao mundo, onde coletou abundantemente espécimes minerais, vegetais e animais, realizou observações geológicas, meteorológicas e etnológicas. Se tornou um naturalista altamente respeitável. Além de um poeta de renome.

Sua vida e sua carreira foram estranhamente sumarizadas de forma profética no seu primeiro livro, Peter Schlemihl, de 1813.

O personagem-título era um infeliz (Chamisso o descrevia como alguém que é capaz de cair de costas e fraturar o nariz) que encontra o Diabo. O Diabo estava de posse de uma bolsa, a Bolsa de Fortunato, uma bolsa sem fundo de onde sempre se podia tirar dinheiro. Em troca dela, ele queria a sua sombra. Peter gostou da barganha e fez a troca. O Diabo prometeu que retornaria dentro de um ano. Embora agora se tornasse fabulosamente rico, o fato de não ter uma sombra alarmava as pessoas. Ele era visto pelas costas, excluído dos círculos sociais, destratado até por quem não tinha nada. Ele foge com dois empregados para uma pequena cidade, onde ele procura cativar os locais com demonstrações de generosidade, tomando cuidado para não revelar seu segredo. Ele se apaixona por Minna, filha de um notável local. Um dia antes de pedir sua mão em casamento, um dos seus empregados ameaça contar seu segredo (ou o segredo que ele acredita saber, que Schlemihl seria na verdade um rei... mas Peter não sabe disso, e a ameaça o deixa desesperado). Neste momento surge novamente o Diabo, que se oferece para devolver sua sombra em troca de sua alma. Ele lhe oferece uma visão do pai de Minna se recusando a dar a mão da filha a um homem sem sombra. Com seu segredo de fato revelado, Peter resiste e decide fugir novamente (deixando grande quantidade de ouro para o outro criado que lhe foi fiel).

O Diabo insiste em persegui-lo e assediá-lo, mas Peter resiste obstinadamente, até que ele joga a bolsa mágica num precipício e abre mão do benefício do primeiro contrato. O vínculo é desfeito e o Diabo desaparece. Perambulando sozinho até gastarem-se completamente as suas botas, ele acaba comprando um par de "botas de sete léguas", que lhe permitem viajar rapidamente, transpor montanhas e mares, e atravessar oceanos e continentes. Escolhendo o Egito como morada, ele decide aproveitar a nova habilidade para estudar a flora e a fauna de todo o mundo. Durante uma longa travessia, caiu doente no mar da Noruega, e despertou num hospital. Ele repara que o hospital levava o seu nome, e descobre que o seu fundador é o seu antigo criado fiel e sua antiga noiva, agora viúva, passa seus dias cuidando dos doentes. Nenhum deles sabe que Peter está internado ali. Ele entreouve uma conversa entre os dois, em que falam da infelicidade e da redenção e que, como eles, seu "velho amigo" devia também estar vivendo dias melhores. Quando se recupera, ele retorna ao Egito, deixando uma carta de agradecimento no seu leito: "Seu velho amigo está vivendo dias melhores do que antes, e embora ele tenha que pagar um preço, é o preço da conciliação".

"Schlemihl" provém do ídiche, quer dizer algo como "azarado", ou "tolo" no sentido de alguém que faz um mal negócio. Peter se livra da sua sombra, de algo inerente à sua existência física, em troca de riquezas infinitas, e a ausência dessa sombra torna o homem, mesmo rico, um estranho onde quer que vá. Chamisso deixara a França quando criança, mas nunca se sentira totalmente integrado à sociedade alemã (alguns dos seus primeiros poemas foram criticados pelo uso rude da língua alemã, que ele ainda estava tentando aprender), tampouco se sentia à vontade no seu país natal, vivendo como um alemão. Peter é o Eu de Chamisso, em cujos momentos de fraqueza surge um diabo para tentá-lo, cede às ânsias de um ego inflado e de uma carência afetiva que nunca é suprida - seus dois criados são o seu "bom" e o seu "mal", e ambos, a seu tempo, assumem o papel de uma figura paterna, terna e temida (Chamisso mal conheceu seu pai, mas projetava esse papel em seus mentores, como Humboldt e seu amigo Julius Hitzig). A melancolia do personagem solitário, e a própria melancolia que assombrava o naturalista/poeta refletem, segundo Sigmund Freud, a idealização da infância, do passado (com sombra), do tempo que o narcisismo infantil considerava perfeito - o mesmo narcisismo que levou Peter a trocar a sombra por riqueza infinita. E em um momento de confusão total, foge, corre o mundo até encontrar a paz, curiosamente rodando o mundo, estudando sua natureza, como viria a fazer no futuro - o livro é de 1813, e a expedição russa zarpou em 1815.

Peter Schlemihl foi traduzido para o francês e se tornou por um longo período um dos livros mais populares da Europa. Ele foi comentado por diversos autores (como Freud), e sobreviveu no século XX em peças de teatro e filmes (um deles estrelado por DeForest Kelley, o Doutor McCoy de Jornada nas Estrelas) em várias línguas. O tema também inspirou a obra de autores como Hans Christian Andersen. Frauenliebe und -liebe, uma coletânea de poemas líricos de Chamisso, foi musicado pelos compositores alemães contemporâneos Schumann, Loewe e Lachner. O legado do naturalista está em seus tratados minunciosamente bem escritos sobre floras locais e as descrições de suas espécies, bem como exemplares preservados em herbários do mundo, e inúmeras espécies e dois gêneros batizados em sua homenagem. Uma ilha no Alaska, descoberta durante a expedição russa, é conhecida como Ilha Chamisso.

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