quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Outono em Praga

Em 20 de agosto de 1968, os primeiros 200 mil de meio milhão de soldados do Pacto de Varsóvia, sob comando soviético, invadiram a antiga Tchecoslováquia para forçar a reversão das reformas empregadas pelo governo de Alexander Dubcek desde o início daquele ano, período conhecido como Primavera de Praga.

A Tchecoslováquia foi ocupada pela União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial, e eventualmente foi mantida na sua zona de influência como parte dos acordos entre os aliados no final da guerra. Assim, em 1946 o Partido Comunista da Tchecoslováquia elegeu a maioria no congresso tcheco, e em 1948 os comunistas tomaram o poder e anularam, na prática, a pluralidade partidária, assegurando assim sua hegemonia. Sem representatividade e com a mídia sob controle estatal, a oposição recorria às ruas, e protestos eram duramente reprimidos.

Após a morte de Joseph Stalin, a União Soviética passou por um período de reformas, ou desestalinização, abandonando projetos personalistas e perigosamente impopulares (ou simplesmente nocivos), e reabilitando presos políticos. A desestalinização se espalhou pelos países do Pacto de Varsóvia, inclusive na Tchecoslováquia, onde uma nova Constituição foi promulgada. Agora declarada socialista, a Constituição previa a entrega do poder, dos meios de produção, a planificação da economia, a extinção do poder executivo nacional da Eslováquia (dissolvido num Conselho Nacional local), serviço militar compulsório, e outras medidas centralizadoras.

A economia, porém, não ia bem. Durnte o regime de Stalin, o país foi forçado a transformar seu sistema industrial, até então saudável, em um modelo em miniatura do parque industrial soviético. O primeiro plano quinquenal transformou a indústria de bens de consumo em algo voltado à metalurgia pesada, para atender às demandas da indústria bélica soviética durante a Guerra da Coréia. Com uma economia absolutamente dependente da União Soviética, e um crescimento que não justificava o montante investido, ela rapidamente naufragou. O Secretário Geral do PC tcheco, Antonín Novotny, proclamou que reformas precisariam ser feitas, incluindo a descentralização da atividade econômica. Como a ideia era boa, mas o progresso era lento, o sindicato dos escritores começaram a sugerir que a literatura tcheca deveria, também, ser independente das diretrizes do Partido. Novotny ordenou que os escritores rebeldes fossem punidos. Ele rapidamente perdeu seu apoio político, a ponto do premier soviético Leonid Brezhnev, ao ser consultado pelo camarada, preferir se colocar ao lado da oposição.

Dubcek, um reformista, assumiu a liderança do Partido, e, efetivamente, do país, em janeiro de 1968. Ele criticava o crescimento da burocracia estatal para resolver assuntos triviais, o que afastava o povo das tomadas de decisão e tornava a máquina morosa demais diante da dinâmica econômica dos países logo além da fronteira. Para aproximar o Estado do povo, Dubcek estabeleceu planos de liberalização da liberdade de imprensa, de expressão, de reunião e movimento, a descentralização dos meios de produção (tentando fortalecer nichos especializados, especialmente a indústria de bens de consumo), a equanimidade política entre as repúblicas tcheca e eslovaca, e o fortalecimento da diplomacia com o ocidente. Como o país se declarava socialista, supunha-se que a classe burguesa havia sido enfim eliminada, o que possibilitaria que os trabalhadores fossem proporcionalmente remunerados de acordo com suas capacidades e funções. Ele previa que, em dez anos, seria possível realizar novamente eleições diretas num sistema aberto ao pluripartidarismo. Porém, a ideia original era de que essas reformas todas fossem controladas e supervisionadas pelo Partido. A sua divulgação, contudo, inflamou a população, que passou a exigir reformas imediatas, sobretudo quanto às liberdades civis.

Ao longo do ano, a liberdade de expressão e imprensa deu voz a opositores dos membros mais conservadores do Partido Comunista Tchecoslovaco, e às "forças externas" que atrasavam o progresso do país (a União Soviética). Na TV, comentários sobre política pontuavam a programação, e debates sobre a história recente da Tchecoslováquia questionando o período stalinista, seus presos políticos e vítimas iam ao ar. O sindicato dos escritores formou uma comissão independente para investigar os crimes cometidos pelo regime contra escritores durante a tomada de poder dos comunistas em 1948. Jornalistas uniram-se aos esforços.

A euforia que o novo estado de coisas provocava na Tchecoslováquia se tornou notícia no mundo. No bloco comunista, a Hungria, a Polônia e a Romênia se mostravam simpáticas às reformas tchecas (os líderes dos dois primeiros, contudo, alertavam que a abertura à imprensa criava um ambiente similar ao que levou à revolta húngara de 1956, que terminou esmagada sob os tanques soviéticos). Brezhnev era evidentemente contra um ambiente em que se questionasse a hegemonia soviética, e no princípio tentou negociar em acordos bilaterais a anulação de algumas reformas. Dubcek fazia promessas vagas de controlar a imprensa e esmagar tendências burguesas (a ideia de uma democracia pluripartidária era particularmente alarmante), sem efeito prático, então os soviéticos começaram a considerar uma intervenção militar. Foi durante a noite do dia 20 de agosto que 200 mil soldados e 2 mil tanques entraram no país e tomaram rapidamente o aeroporto de Praga, onde desembarcaram as demais tropas. As forças tchecas não revidaram, e a ocupação foi completa no dia seguinte. Os soviéticos divulgaram um documento extraoficial (e provavelmente apócrifo) do PC tcheco pedindo a intervenção militar. Nenhum partidário de Dubcek assumiu a autoria do pedido.

Dubcek fez um apelo à população para que não resistisse. Mas incidentes isolados ocorreram nos primeiros momentos (72 tchecoslovacos morreram em confrontos). Muitos tchecos reagiram de forma pacífica: um grande destacamento polonês desistiu da operação e deixou o país depois de ficar um dia inteiro vagando sem achar seu ponto de encontro por causa de placas de trânsito pintadas ou invertidas. Muitas aldeias tentaram confundir os invasores mudando seus nomes (para Dubcek, ou Svoboda, Presidente da República e outro membro reformista do Partido). Alguns perseguiram carros identificados como do serviço secreto tcheco para forçá-los a mudar sua rota para manter o disfarce. O estudante Jan Palach ateou fogo ao próprio corpo no centro de Praga contra o fim da liberdade de expressão. A reação se espalhou pelo bloco comunista. Nicolae Ceausescu, Secretário Geral do PC romeno, discursou condenando a iniciativa soviética. Comunistas na Itália, na França e na Finlândia denunciaram a invasão. Mesmo em Moscou houveram manifestações contra a ocupação.

Embora essas demonstrações não fossem suficientes para repelir a invasão, a mobilização popular deixou clara aos soviéticos a importância de Dubcek para a estabilidade do país, e por isso, mesmo depois de preso e levado a Moscou, ele foi mantido no cargo. Ele foi forçado a assinar o Protocolo de Moscou, um compromisso do governo em reverter as reformas iniciadas e impedir o resto do seu programa. Dubcek permaneceu no comando do Partido até abril de 1969. Em 1970, com a volta da planificação da economia, da censura na mídia e da repressão, quase todas as reformas haviam sido revertidas. Dubcek foi expulso do Partido Comunista. Depois de 18 anos trabalhando no serviço florestal eslovaco, retornou a Praga em 1989, em meio à Revolução de Veludo, para testemunhar a renúncia dos líderes do Partido Comunista e o fim do regime no país.

A Primavera de Praga havia dado aos comunistas no ocidente a esperança de progressos através do socialismo soviético em direção ao socialismo pleno e transnacional previsto na doutrina leninista, mas a intervenção soviética, justo a soviética, serviu para afastar a esquerda comunista ocidental do modelo soviético, além de criar dissenções que levaram setores progressistas dessa esquerda marxista-leninista para o lado da social democracia, para o socialismo verde, para o maoísmo, de onde ainda se nutria grandes expectativas, entre outros. A Primavera de Praga - que começou de fato na primavera - inspira ainda hoje a arte e a política: movimentos pela democratização dos países árabes iniciados no Egito em 2010 foram apelidados de "Primavera Árabe". O surto de protestos pela proteção de direitos civis em 2013 nas capitais do Brasil chegou a ser apelidado de "Primavera Brasileira".

Nenhum comentário:

Postar um comentário