quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Atentado contra a humanidade

Na tarde de 19 de agosto de 2003, um caminhão-bomba explodiu próximo ao Hotel Canal, em Bagdá, onde operava a delegação da ONU para a mediação de conflitos no Iraque no período de transição que se seguiu à queda de Saddam Hussein. A explosão feriu mortalmente o líder da missão, Sérgio Vieira de Mello. Dias após o atentado, o jihadista jordaniano ligado à Al-Qaeda Abu Musab al-Zarqawi assumiu a autoria do atentado e declarou que Vieira de Mello era, especificamente, o alvo da explosão.

Sérgio Vieira de Mello era filho de um diplomata, e seguiu com a família pelo mundo. Enquanto estudava na França, participou dos protestos estudantis de 1968, guardando uma cicatriz do lado direito de um golpe de cassetete de um policial como recordação. Por causa do seu envolvimento nos protestos e associação com estudantes socialistas franceses, evitou de regressar ao Brasil em meio ao Regime Militar. Arrumou emprego na Comissão para Refugiados das Nações Unidas. A partir daí atuou em zonas de conflito, como na guerra de independência de Bangladesh, na guerra civil do Sudão de 1972, na invasão turca ao Chipre, auxiliando refugiados da guerra civil no Zimbabwe. Ele chefiou a missão para refugiados em Moçambique e no Peru, e mediou pessoalmente as conversações entre a ONU e o Khmer Vermelho no Camboja.

Em 1999 a ONU conseguiu mediar entre Indonésia e Portugal um acordo para supervisionar um referendo em Timor Leste pela sua independência (Portugal abandonara a colônia em 1974 mas ainda era nominalmente a sua metrópole; a Indonésia se aproveitou do vácuo de poder para anexar o território ilegalmente). Vieira de Mello foi escalado para liderar a missão na colônia, e ao longo de três anos lidou com uma guerra civil entre milícias pró-Indonésia e nacionalistas timorenses. Acontece que a Indonésia é um país majoritariamente muçulmano. Al-Zarqawi via Vieira de Mello como responsável pela usurpação de território do "califado" (97% dos timoreses do leste são católicos, muçulmanos restritos a 0,3%).

Em 2004 Vieira de Mello foi escalado para liderar a missão de paz da ONU no Iraque, o que, àquela altura, era um cargo da mais alta importância na política internacional, visto que a região, uma das mais importantes na produção mundial de petróleo era o principal centro de instabilidade do Oriente Médio e alvo de interferência militar americana. Foi a Segunda Guerra do Golfo que atraiu jihadistas, inclusive a Al-Qaeda (ironicamente, mantida em cheque no regime de Saddam Hussein), de quem Al-Zarqawi controlava uma célula terrorista, para o Iraque com o intuito de minar alvos associados à ocupação americana, como colaboracionistas iraquianos, e até a ONU. O diplomata teria recusado o cargo de início, mas teria sido persuadido pelo presidente americano George W. Bush e sua Secretária de Estado Condoleezza Rice. Ele se tornou um alvo óbvio.

Vieira de Mello confiava numa relação direta e aberta como forma de desarmar possíveis inimigos. Coordenando a desativação de minas terrestres na Bósnia, ele se recusava a ir a campo com um colete à prova de balas. No Iraque, onde o Hotel Canal era usado como centro de operações das Nações Unidas desde o final da Primeira Guerra do Golfo, no começo dos anos 1990. A própria segurança do edifício andava relaxada o suficiente para surpreender os visitantes e jornalistas na turbulenta capital iraquiana. O caminhão-bomba se aproximou e aparentemente foi detonado pelo próprio motorista, que pereceu no local, antes de despertar suspeita. Um hospital próximo também foi atingido. Nove pessoas estavam no gabinete de Vieira de Mello naquele momento, ele, sete funcionários, e um visitante. Sete deles morreram na hora. O diplomata sobreviveu ao primeiro impacto, e enquanto reteve a consciência procurou acalmar o jornalista Gil Loeschner, também ferido e preso sob os escombros. Ele seria resgatado com vida por um soldado americano, mas Vieira de Mello não sobreviveu. Naquele momento, era tido em alguns círculos como o mais forte candidato à sucessão de Koffi Annan como Secretário Geral da ONU.

No total, 23 pessoas perderam a vida naquele atentado. No mesmo dia, um homem detonou uma bomba num ônibus lotado em Jerusalém vitimando 21 israelenses e dois judeus americanos, num atentado sem relação com o de Bagdá (este, no caso, planejado pelo Hamas). Em 22 de setembro, antes de Al-Zarqawi divulgar o vídeo assumindo a autoria do atentado, outra explosão de um carro-bomba perpetrada pelo seu grupo mirou a força-tarefa da ONU em Bagdá, matando uma pessoa e ferindo 19. O paquistanês Ashraf Qazi assumiu o posto do brasileiro no Iraque. O país, com uma unidade política frágil, continua até o momento a ser disputado violentamente entre diversas milícias locais, entre elas o Estado Islâmico.

Em 2008 a ONU declarou o 19 de agosto como Dia Mundial do Humanitarismo. A praça do Largo da Memória, no Rio de Janeiro, foi batizada como Praça Sérgio Vieira de Mello.

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