sexta-feira, 7 de agosto de 2015

A expedição Kon-Tiki e a ciência aventureira

Em 7 de agosto de 1947, a expedição liderada pelo norueguês Thor Heyerdahl, terminou quando sua embarcação, a balsa Kon-Tiki, se chocou contra recifes no arquipélago de Tuamotu.

Um assunto tradicionalmente quente nas ciências humanas é a origem dos povos americanos. Sabendo, pelo registro fóssil e arqueológico, que o homem moderno surgiu na África e seguiu um caminho para a Europa, para a Ásia, e chegou na Austrália, a presença humana na América antes da chegada dos europeus sempre intrigou muita gente. Houve, e ainda há, correntes que defendem uma rota migratória vinda da Sibéria, passando pelo congelado Estreito de Bering no Alaska, e chegando à América do Sul vinda do norte; outra corrente defende uma ou mais ondas migratórias vindas das ilhas do Pacífico, chegando na costa oeste da América do Sul e/ou Central, e de lá se difundindo para o resto do continente; outra, mais recente, defende a chegada dos primeiros americanos vindos da África subsaariana pelo Oceano Atlântico; e há os que defendem duas ou mais teorias.

Enquanto escrevia um projeto sobre espécies vegetais usadas como alimento, me deparei com vários trabalhos etnobotânicos e arqueobotânicos que apontavam para uma convergência no uso de determinadas espécies na América, na Ásia e na Polinésia: espécies de Lagenaria, uma cabaceira, e de algodão cultivadas por indígenas americanos teriam mais semelhança genética com espécies dos mesmos gêneros cultivadas na Ásia do que das suas outras parentes americanas. De maneira semelhante, a presença da batata-doce, espécie nativa da América, na dieta dos ilhéus do Pacífico descrita por navegantes europeus do século XVII indicaria algum grau de contato entre essas regiões tão afastadas do globo. Eu também trabalhava no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, para onde o famoso fóssil de Luzia - um crânio caracteristicamente africano, o mais antigo fóssil humano do continente - era guardado e estudado. Então naquele período, enquanto tentava me concentrar na botânica, eu entrei em contato com as várias teorias sobre a ocupação humana na América.

A ciência tem avançado bastante rápido nos últimos 50 anos para responder essas e outras perguntas. Mas até que o conhecimento e as metodologias chegassem ao refinamento atual, a disputa era muito acirrada, as correntes teóricas eram pesadamente influenciadas por tendências políticas e etnocêntricas, e atraía a atenção de leigos e exploradores. Um desses exploradores era o biólogo e etnógrafo Thor Heyerdahl. Enquanto fazia faculdade de biologia, Heyerdahl se interessou nos polinésios, acessando vasta literatura acerca de suas culturas, suas línguas seus mitos, e suas relações com outros povos. Seu primeiro contato com eles foi na ilha de Fatu Hiva, nas Ilhas Marquesas, Polinésia Francesa. Sua estada na ilha foi publicada em livro - veículo pelo qual se tornaria uma celebridade ao longo do século XX.

Embora tivesse atingido um nível de erudição a respeito dos polinésios, Heyerdahl não teve formação acadêmica em antropologia (assim como eu não tenho de História), de maneira que seus métodos e teorias foram repetidamente considerados equivocados - uma crítica comum aos seus projetos é de que ele selecionava teorias que queria provar, e moldava seus métodos especificamente para prová-las, sem testar outras hipóteses possíveis. No final da vida, isso o levou a uma expedição arqueológica infrutífera no Azerbaijão, acreditando, por meio de evidências que ele mesmo escolheu, que ali havia sido a origem dos povos proto-germânicos (aceitando que o mito de Odim conduzindo seu povo da terra de Asir representava a memória de um líder tribal conduzindo uma migração a partir do lugar com o nome mais próximo possível que ele encontrou). Não obstante, sua pesquisa literária o ajudou a reproduzir, por exemplo, embarcações típicas usadas no Rio Nilo no Egito Faraônico, no litoral do Golfo Pérsico do período sumério, e, mais importante aqui, um barco tradicional polinésio, com as tecnologias disponíveis respectivamente. Com um navio feito de papiro, por exemplo, ele conseguiu atravessar o Atlântico partindo do Marrocos (algo que os Egípcios não tentaram, mas demonstrando que poderia ser possível).

Ao contrário do que a maioria das pesquisas em diversos campos apontava, Thor era adepto de uma teoria que atribuía aos povos do oeste da América do Sul a colonização da Ilha de Páscoa e um contato difuso e ativo com as ilhas polinésias - ou, quiçá, teriam sido os ancestrais dos atuais povos polinésios. Os argumentos dessa teoria estariam espalhados em mitos americanos, como o de homens brancos barbados que teriam sido derrotados pelos ancestrais dos povos andinos e ido embora pelo mar - ele descrevia os nativos remanescentes dos Rapanui de Páscoa como de "pele branca", muito diferente dos polinésios de pele mais escura; o estilo de escultura dos moais (as colossais cabeças de pedra espalhadas pela ilha) que lembrariam os estilos contemporâneos encontrados no Peru; e um mito local que fala sobre dois povos que entraram em guerra em determinado momento, precipitando o colapso da civilização na ilha (um desses povos seria de imigrantes americanos). Para tentar provar essa teoria, Heyerdahl construiu, com base em literatura e em suas próprias observações, o Kon-Tiki (nome que homenageia o deus inca Viracocha, que teria sido o líder dos tais homens brancos em sua fuga pelo mar), uma balsa rústica no modelo polinésio que poderia ter sido construída com tecnologia neolítica.

Com uma tripulação de 6 homens, o Kon-Tiki partiu de Callao, Peru, no final de abril, e navegou pelo Pacífico aproveitando a Corrente de Humboldt por 101 dias, até atingir Tuamotu, quase 7 mil quilômetros a oeste. Thor Heyerdahl celebrou o feito como a prova de que precisava para demonstrar que os povos antigos da América do Sul poderiam ter colonizado as ilhas do Pacífico.

Do ponto de vista científico, a expedição só prova que um homem com treinamento militar (Heyerdahl serviu na Segunda Guerra Mundial) e outros com conhecimentos especializados em engenharia e comunicações eram capazes de levar uma embarcação rústica através do oceano com suprimentos planejados. O único elemento fiel ao que hipotéticos navegantes sul-americanos poderiam ter a disposição era o barco. Além de tripulantes munidos de conhecimento moderno aplicável à expedição, o Kon-Tiki zarpou rebocado por um navio alguns quilômetros além da costa; viajou com mais de mil litros de água potável, parte dela armazenada em latas; conquanto levasse alimentos frescos a bordo, como frutas e tubérculos (além de peixes que se reuniam sob as tábuas da balsa), a tripulação recorria a comida enlatada provida por um navio militar americano, com o qual os tripulantes mantinham contato via rádio. O teste da capacidade de navegação em si pode ser questionado porque Heyerdahl e outros membros tinham relógios de pulso, um instrumento extremamente útil para calcular longitudes, além do óbvio conhecimento do que a Terra é mais ou menos esférica e existia terras esperando além mar. Heyerdahl passou boa parte da vida se defendendo de críticas assim (na expedição do Marrocos à América, ele tentou anular o efeito da tripulação munida de conhecimento moderno escalando para tanto pessoas de várias nacionalidades e ocupações não relacionadas com navegação oceânica).

Recentemente, um levantamento genético entre amostras dos Rapanui da Ilha de Páscoa revelou uma similaridade de 76% com o genótipo polinésio, com 8% de influência americana e 16% europeia. A análise mais minuciosa aponta que a carga genética europeia era relativamente recente e poderia se dever ao contato com navegantes europeus (embora o grupo teste tenha sido escolhido entre aqueles que afirmavam não ter ascendência europeia na família), enquanto a carga americana deva ter entrado na composição entre os séculos XIII e XVI - quando a ilha de Páscoa já havia sido colonizada. Se houve esse contato entre Rapanui e nativos americanos, então pelo menos isso a expedição Kon-Tiki parece corroborar.

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