sexta-feira, 23 de outubro de 2015

O mundo antes da Criação

Eu vou apelar um pouco. Hoje a efeméride se refere, na verdade, ao 23 de outubro, mas no Calendário Juliano. Em 1650, o arcebispo de Armagh, James Ussher, publicou um livro com seus cálculos que apontavam para este dia, no ano de 4004 a.C., às 9 horas da noite, como a data precisa em que Deus criou o mundo (corresponde, na verdade, ao 5 de novembro do atual Calendário Gregoriano, se eu não estiver enganado). Foi o apogeu das discussões dos teólogos cristãos acerca da idade da Terra, antes do desenvolvimento da geologia e da arqueologia a partir do século XVIII. Na época, a tese satisfez várias correntes opostas, e se tornou uma data quase universalmente aceita (até hoje, mesmo sem citar a obra de Ussher ou mesmo conhecê-la, muitos religiosos recorrem automaticamente ao 4004 a.C. para determinar a idade da Terra).

Bom, existem evidências de que não apenas o mundo, mas a própria existência humana no planeta predata o ano 4004 a.C.. Aqui eu aproveito para fazer um apanhado do mundo no quinto milênio antes de Cristo:

-A Revolução Agrícola já corria a pleno vapor no Oriente Médio (usando aqui a ampla definição moderna de "Oriente Médio", bem entendido), especificamente no médio curso do Rio Nilo. Ali, a chamada Cultura Badari (porque foi descoberta sob a cidade de El-Badari) construiu casas de madeira, das quais tempo só nos legou vestígios. Domesticou o trigo e a cevada, plantando-os nas férteis terras aluviais expostas durante as vazantes anuais do rio, e armazenavam o excedente de produção em poços escavados na terra seca. Também criavam bois, cabras e ovelhas. Essas pessoas produziam ferramentas de pedra polida, como machados, facas, foices, mas também faziam ferramentas finas com lascas de sílica (usadas possivelmente para esculpir figuras em barro e marfim de hipopótamo e elefante, que deixaram para trás), e dominavam técnicas rudimentares de cerâmica. Usavam conchas obtidas pelo comércio com povoações no Mar Vermelho e pedras coloridas também obtidas em algum lugar não determinado (mas certamente não próximo a El-Badari, onde não existe esse tipo de material) como adorno, e essas peças decorativas eram enterradas com seus donos quando morriam.

-No norte da Europa, ao leste do Mar Báltico, tribos de caçadores-coletores  (é possível que eles ainda caçassem casualmente os últimos mamutes da Europa) deixaram para trás fragmentos de um tipo de cerâmica muito particular, chamada cerâmica de pente, por causa das marcações em finas linhas paralelas na superfície das peças, como se tivessem sido "penteadas" enquanto estavam frescas. E isso é um fato extraordinário, porque geralmente se supõe que a arte da cerâmica necessariamente se desenvolve junto, ou posteriormente à agricultura, pressupondo que a finalidade primária de um vaso de cerâmica seja o armazenamento e o transporte de grãos do campo até a aldeia. Nesta região, o desenvolvimento da cerâmica, constituída de peças com capacidade para até 60 litros, veio antes da agricultura, e surgiu logo depois, ou ao mesmo tempo que esta arte floresceu no Oriente Médio. Este desenvolvimento paralelo sem um mesmo fator causalístico pode sugerir, embora essa teoria esteja tão fragmentada quanto as próprias peças da cerâmica, que já poderia haver algum contato entre aquela região e o Oriente Médio através das bacias hidrográficas da Rússia, rotas de comércio consagradas desde a Antiguidade por onde se escoava todo tipo de produto produzido na Escandinávia, como o âmbar por exemplo. A presença desta cultura, precedendo as migrações indo-europeias do terceiro milênio a.C. e uralo-altaicas posteriores, poderia explicar a origem dos nomes de rios e montanhas, que não tem significado em nenhuma língua conhecida hoje ou no passado naquela área.

-No Japão do ano 4004 a.C., a cerâmica já era uma tradição mais antiga para os nativos quanto era o próprio mundo para o arcebispo Ussher. Em 12000 a.C., os caçadores-coletores que já habitavam o japão desde 40000 a.C. passaram a produzir peças de cerâmica onde armazenavam nozes, tubérculos e frutos obtidos nas florestas. Era o fim da última era glacial, e o derretimento das geleiras e aumento da umidade atmosférica e das chuvas permitiram a expansão das florestas do fundo dos vales mais baixos para as encostas das montanhas, dando aos antigos grupamentos humanos do Japão novas possibilidades para sobreviência. Perto da virada do sexto milênio, já se cultivava feijão e abóboras. A cerâmica chamada Jomon (significa algo como "marcado por cordas", porque era o método de decoração aplicada à cerâmica fresca) se desenvolveu sem paralelos no Extremo Oriente por milhares de anos, até que, por volta de 300 a.C., povos agrícolas cultivadores de arroz do continente chegaram ao Japão e mesclaram-se com as populações locais, transformando irreversivelmente sua arte e seu modo de vida.

-Ao longo do Rio Yantse, na China, as populações nômades começavam a assentar-se nas suas planícies aluviais e a cultivar painço nessa terra (o arroz, carro chefe da sua economia em tempos posteriores, estava sendo domesticado naquele período no sul, no vale do rio Mekong, de onde se espalhou rapidamente para o norte e o oeste). As lendas chinesas sobre a origem da sua civilização apontam para mil anos depois a época em que o lendário Imperador Amarelo, entre outros feitos vitais para a civilização, projetou e executou a construção de canais de drenagem para o Rio Yantse que possibilitaram o assentamento permanente às suas margens e o acesso à sua água para irrigação mais para o interior. Porém, essas obras já estavam em curso em 4004 a.C., provavelmente levadas adiante pela cooperação espontânea entre os agricultores e habitantes das aldeias locais, que sofriam com as cheias periódicas do volumoso rio. Aldeias de casas redondas ou mais ou menos retangulares, com o piso de terra batida escavado alguns centímetros abaixo da superfície e paredes de vime e barro e telhados de madeira e palha. Este povo já confeccionava tecidos de seda.

-Na Mesopotâmia, as populações que desde o sétimo milênio a.C. domavam gradualmente as cheias dos rios Tigre e Eufrates (construindo canais de drenagem à maneira das populações do Yantse), atingiram um estágio de cultura material conhecido como Período de al-Ubaid, em alusão a um dos primeiros sítios onde esta cultura foi identificada. A cultura ubaidi se epalhou pelo centro do Iraque até a antiga linha do litoral, onde ficaria a futura cidade suméria de Eridu (os sedimentos trazidos pelos rios da Mesopotâmia fizeram o continente avançar consideravelmente sobre o Golfo Pérsico ao longo dos séculos, de modo que o sítio de Eridu está a mais de 200 quilômetros do mar). Navios de junco faziam a comunicação fluvial entre as várias aldeias da região, estabelecendo uma rede ágil de comunicação. Se o Épico de Gilgamesh, compilado pelos sumérios no quarto milênio antes de Cristo, é uma rememoração de eventos do período formativo daquela civilização, um capítulo da história indicaria que essa rede de comunicação chegava até o Líbano, onde o herói-título e seu companheiro Enkidu mataram o monstro Humbaba e abriram acesso às ricas florestas de cedro da região.

-É no Oriente Médio que estão algumas das cidades habitadas continuamente mais antigas de que se tem notícia (ou seja, não são cidades construídas sobre outras mais antigas, abandonadas por algum motivo no passado). Em 4004 a.C., cidades como Damasco e Aleppo, na Síria, Sidon, no Líbano, e Susa, no Elão (atualmente no Iraque) já eram centros de cultura, comércio, religião e governo aos quais as áreas adjacentes e sua população já estavam submetidas. A cidade libanesa de Biblos era um assentamento semi-permanente desde 7000 a.C., e próximo a essa data, Jericó, localizado em um oásis muito disputado na Palestina, já estava protegida por fortificações. Na Turquia, o assentamento permanente de Çatalhuyuk foi fundado próximo a 7500 a.C., e, em 4004 a.C., já havia sido abandonado e esquecido havia pelo menos 1500 anos.

-No Mar Egeu, no arquipélago das Cíclades (entre Creta, a Grécia continental, e a Anatólia), seres humanos assentados ali desde o fim da última era glacial estavam produzindo esculturas em pedra muito características da região (uma mistura de elementos encontrados na Anatólia e na Grécia, onde as cidades de Argos e Atenas já prosperavam). Uma delas, conhecida como "Máscara Cicládica", a escultura de uma cabeça de mulher de um período posterior, seria representada na abertura dos Jogos Olímpicos de Atenas em 2004 como um símbolo do despertar da consciência humana no mundo grego.

-No restante do Mediterrâneo e na Europa continental, as antigas culturas megalíticas, caracterizadas pela construção de grandes monumentos de pedra, como o famoso Stonehenge na Grã Bretanha, já estavam definhando e sendo substituídas gradualmente por culturas neolíticas, com o advento da agricultura. Isso aconteceu em Malta, onde a migração de povos vindos da Sicília trouxeram novas crenças e novos modos de vida. Mas na França, grandes menires (pedras compridas com a ponta abaolada assimetricamente, às vezes esculpidas neste formato, posicionadas verticalmente no solo, possivelmente com alguma função religiosa) continuaram a ser erguidos. Os menires de Carnac, na Bretanha francesa, distribuídos em linhas paralelas quase perfeitas, foram montados assim por volta da virada do quinto milênio. Alguns séculos antes, um povo em Goseck, no centro da Alemanha, construiu um complexo de paliçadas de madeira perfazendo círculos concêntricos, aparentemente com o mesmo desenho básico e a mesma função astronômica dos monumentos megalíticos erguidos mais a oeste.

-Na América ocorreu a domesticação do que viria a ser a principal fonte de alimento de todas as civilizações mesoamericanas até o século XX, o milho. Esta planta nativa do México era uma gramínea de médio porte cujas espigas portavam talvez uma dúzia de grãos carnosos. Processos de melhoramento genético promovido por cruzamentos mais ou menos controlados entre diferentes cultivares progressivamente transformaram esta planta no milho que temos hoje, com grandes espigas repletas de fileiras de sementes, com centenas de cultivares diferindo em tamanho, sabor, consistência, cor e teor de amido, representando, talvez, o caso mais drástico de manipulação genética de uma espécie selvagem pelo ser humano (com a tecnologia e o conhecimento que os nativos da América tinham).

-Embora se convencione a sinonimizar o período neolítico com "idade da pedra", porque os principais implementos e ferramentas eram feitos a partir de pedras e minerais, o cobre já era extraído do interior das montanhas, separado do minério, e trabalhado desde pelo menos 7500 a.C.. Objetos desse metal era elaborados pelos povos do leste e do sul da China durante o quinto milênio. No Irã, o uso de ferramentas de cobre levou ao abandono gradual da arte de confecção de objetos utilitários de pedra (ao final do quinto milênio, o que existia de ferramentas de pedra eram exemplares grosseiros e mal acabados, com função marginal diante dos instrumentos de cobre). Nas grandes planícies da América do Norte, o amalgamamento de cobre com outros metais pode ter sido desenvolvido na virada do quinto para o quarto milênio antes de Cristo (as datas plausíveis mais recuadas colocam os antigos povos dos Grandes Lagos como candidatos a serem os primeiros a fundir metal no mundo).

Sem entrar na questão biológica ou geológica envolvendo a idade da Terra, em 4004 a.C. o mundo humano (o que Arnold Toynbee chamava de Oikoumene, paravra grega que deu origem ao português ecumene, que significa algo como "o mundo conhecido") já era muito antigo e atingia um ponto crítico de complexidade social e tecnológica que levaria ao surgimento das primeiras grandes civilizações logo em seguida (a História propriamente dita, começa com a invenção da escrita na florescente Suméria por volta de 3200 a.C.,). Adão e Eva, no momento da sua criação, ou, vá lá, no momento em que foram expulsos do Jardim do Éden, teriam sem dúvida se surpreendido sobremaneira ao se dar conta que o mundo em que caíram já havia aspectos civilizatórios tão complexos, como, por exemplo, a cidade fortificada de Jericó ou as ruínas de Çatalhuyuk, ou minas de cobre no Sudão, ou observatórios astronômicos de pedra na França, que já seriam algo tão antigo para eles naquela época como as pirâmides do Egito são para nós hoje.

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