quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Sangue e lama

Em 21 de outubro de 1600 foi travada a Batalha de Sekigahara, no Japão, entre forças leais ao clã Toyotomi e Tokugawa Ieyasu.

A Batalha de Sekigahara foi o clímax do longo período de guerra civil conhecido como Período Sengoku ("Reinos Combatentes") que se esparramava desde 1467: os shoguns (comandantes-em-chefe do Japão e seus governantes de facto) da casa Ashikaga viram seu poder diminuir junto com a sua capacidade de administrar rivalidades políticas, causando convulsões sociais, revoltas de daimyos (senhores de terras) locais e confrontamentos diretos entre daimyos rivais. Como os imperadores, havia muito tempo, eram mais figuras cerimoniais do que atores no cenário político, a timidez dos shoguns Ashikaga na administração de conflitos transformou o Japão numa colcha de retalhos de feudos semi-independentes, permitindo a ampliação de poderes dos clãs mais poderosos do Japão, como Takeda e Hojo, às custas de senhores menores, que se aliavam ou se submetiam a eles ou eram destituídos de suas terras pela força. Em 1560 Oda Nobunaga surge no cenário político interferindo num ataque planejado por Imagawa Yoshimoto à capital do shogunato, Kyoto; ao passar pelo território do clã Oda, Nobunaga interceptou o exército de 40 mil homens de Imagawa com apenas 3 mil, atacando-os com metade desse efetivo pela retaguarda, e matando o seu comandante. Essa atitude ousada levou os comandantes de Imagawa a se unirem a Nobunaga, e sua reputação varreu o Japão.

Os Ashikaga, divididos em clãs, derrubavam-se uns aos outros em ações fratricidas, e os apelos dos shoguns e seus pretendentes atraíam daimyos para a guerra. Nobunaga garantiu a posse de Ashikaga Yoshiaki, e o seu apoio tornava o shogun um fantoche. O próprio Yoshiaki mobilizou secretamente daimyos rivais contra Nobunaga. Mais rivalidades posicionavam outros daimyos ao lado do clã Oda. Seus principais apoiadores eram Toyotomi Hideyoshi, um mero soldado que vinha ganhando o favor de Nobunaga desde a vitória sobre Imagawa, e Tokugawa Ieyasu, um pequeno daimyo que fora refém dos Oda na juventude, mas construíra um pequeno império para si absorvendo terras do poderoso clã Hojo. Em 1573 Yoshiaki tentou assassinar Nobunaga, mas acabou exilado. Nobunaga seguiria nos próximos anos esmagando toda resistência contra a sua autoridade, embora não assumisse o título de shogun, deixado vago.

Em 1582, Nobunaga derrotou o clã Hatano, e, apesar da promessa de poupar seu líder, o assassinou em seu palácio. Como represália, os Hatano assassinaram a mãe de Akechi Mitsuhide, outro dos comandantes de Nobunaga. Enlouquecido pela dor, ignorou um comando para se unir a Hideyoshi em batalha contra o clã Mori e ordenou suas tropas a tomarem o castelo dos Hatano, onde estava Nobunaga. Seu comando era de que "o inimigo está lá", deixando dúvida sobre se o inimigo era Nobunaga ou os Hatano. Ao saber da traição, Nobunaga teria cometido seppuku (suicídio ritual) antes de ser encontrado e morto. Hideyoshi então selou uma trégua com os Mori, e correu para vingar Nobunaga assassinando Mitsuhide e destruindo seu exército. A súbita morte de Oda Nobunaga tornou a situação tensa: Toyotomi Hideyoshi e Tokugawa Ieyasu, seus sucessores naturais por mérito (haviam outros Oda envolvidos, mas nenhum tinha o prestígio para conduzir uma aliança tão ampla), tinham cada um seus próprios apoiadores. Mas pela celeridade em vingar Nobunaga, o próprio Ieyasu reconheceu a precedência do colega, embora sua origem camponesa impusesse algumas dificuldades - Hideyoshi assumiria o governo da maior parte do Japão como kampaku (uma espécie de regente provisório, mas com acesso direto à família imperial), nunca como shogun. Sua origem era tão baixa que apenas nesse momento ganhou um sobrenome (Toyotomi; Hideyoshi era uma corruptela de um apelido de infância).

Àquela altura, 2/3 da Ilha de Honshu já estavam sob controle da coalizão de Nobunaga, o restante sob controle de aliados, incluindo Tokugawa. Os últimos focos de resistência foram esmagados sem clemência. A administração Hideyoshi foi marcadamente personalista: baixou decretos proibindo o porte de armas por qualquer um que não fosse um samurai (enrijeceu também as regras para que um homem se tornasse um samurai e tivesse acesso a cargos públicos e militares, estagnando a mesma mobilidade social que permitira que ele chegasse ao governo), desviou rios para inundar vilas em territórios de daimyos rebeldes e redistribuiu suas terras para os aliados, perseguiu cristãos, inclusive crucificando 26 missionários e conversos em Nagasaki. Seu projeto mais megalomaníaco foi a invasão da península coreana e sua tentativa de anexação em 1592. Seu exército chegou a ocupar a maior parte da Coréia, mas o soberano do reino local de Joseon, com auxílio da China, os expulsou do país. Uma segunda invasão em 1598 ficou retida no sul do país e logo tiveram que dar meia volta, incapaz de furar a resistência combinada de coreanos e chineses.

Hideyoshi não viveu muito para ter sua autoridade abalada pelo fracasso na Coréia. Antes de morrer, nomeou cinco daimyos para um Conselho, que governaria até que seu filho Hideyori atingisse a maioridade. Por questão de respeito, e por ter sido companheiro próximo de Nobunaga desde o início, Tokugawa Ieyasu foi nomeado entre eles. O equilíbrio do Conselho foi quebrado poucos meses depois da morte de Hideyoshi, com a morte de outro conselheiro, Maeda Toshiie. Rivais de Tokugawa, com medo de que ele se aproveitasse da ocasião para tomar o poder deixado vago pelo velho Hideyoshi, se mobilizaram. Rumores de que planejavam seu assassinato, e o crescente recrutamento de soldados pelo clã Uesugi aumentaram as tensões. Ieyasu exigiu que o daimyo Uesugi Kagekatsu fosse a Kyoto se explicar diante do imperador, mas foi retribuído com acusações de traição. Ieyasu então correu para arregimentar aliados para levar um exército até as terras de Uesugi. Outro legalista, Ishida Mitsunari, convocou outro exército em resposta.

Mitsunari espalhou soldados por toda região central do Japão, isolando com uma faixa que ia de litoral a litoral o oeste do Japão, pretendendo usar a região de Gifu como centro de operações para a ocupação de Kyoto. Ieyasu partiu da sua capital, Edo (antigo nome de Tóquio). O exército ocidental perdeu tempo em Gifu e avançou pouco em duas semanas. Um dia de chuva e uma marcha difícil o forçou a montar acampamento em Sekigahara, enquanto sua pólvora era deixada a secar. Ieyasu seguiu naquela direção. Na manhã do dia 21 de outubro, um grupo de batedores de Ieyasu desceu a planície de Sekigahara sob forte neblina, e se surpreendeu ao praticamente bater de cara com vigias do lado inimigo.

As forças ocidentais consistiam de 120 mil soldados, posicionados defensivamente com um arco de colinas às suas costas e flanqueados por dois rios. O próprio Mitsunari estava chegando de Osaka com mais 4 mil homens. Ieyasu vinha com 75 mil soldados, e a seu favor algumas unidades de arcabuzeiros com pólvora seca (o uso de arcabuzes, que provara ser vital nas vitórias de Oda Nobunaga nos anos anteriores, era uma contribuição dos comerciantes portugueses à arte da guerra japonesa). Apesar de grande desvantagem, foi Tokugawa quem tomou a iniciativa, avançando com carga total sobre os inimigos. À esquerda de Tokugawa estava posicionada a unidade do exército ocidental sob comando de Kobayakawa Hideaki. Nos meses que antecederam a batalha, Tokugawa seguia em conversações com daimyos legalistas, oferecendo-lhes terras caso passassem para o seu lado em qualquer momento, e este Hideaki era um deles. Como hesitasse em atacar um lado ou outro, Ieyasu ordenou seus arcabuzeiros a atirar naquela direção para forçar uma decisão, e ajustar então a sua própria estratégia. Hideaki mudou de lado, distraindo as forças legalistas sob Otani Yoshitsugu, que controlavam aquela área. Outros daimyos ocidentais, vendo a fragilidade da sua ala direita, também mudaram de lado.

O colapso da ala direita e a carga dos vira-casacas paralisou o exército ocidental, virando o jogo para Tokugawa. Os que restavam estavam posicionados sobre as colinas a oeste, mas um de seus comandantes recusou uma ordem de Mitsunari (que, por uma questão de ordem, não era o comandante do exército naquele dia) de avançar para a planície, impedindo a movimentação de outras unidades. Perto do fim, este comandante, Kikkawa Hiroie, passou para o lado de Ieyasu. O exército de Mitsunari se dispersou e fugiu em todas as direções. Mais de 30 mil pessoas, inclusive muitos generais e daimyos foram mortos nas terras encharcadas de Sekigahara.

Cumprindo sua promessa, Tokugawa Ieyasu autorizou a redistribuição de terras de inimigos entre os aliados, inclusive os que desertaram a seu favor. Os derrotados perderam seu prestígio político, seus títulos e suas posses. Tokugawa foi reconhecido pelo imperador como shogun em 1603. A resistência leal à casa Toyotomi ainda resistiu por algum tempo, sendo finalmente debelada no cerco ao castelo de Osaka em 1615.

Embora tenha sido percebida na época apenas como uma disputa interna entre vassalos da casa Toyotomi, Sekigahara marcou o início do fim do Japão medieval. Os shoguns do clã Tokugawa remodelariam a estrutura social e política do Japão, modernizando-o até certo ponto, quando uma onda conservadora os levaria a repelir qualquer contato com o mundo exterior (à exceção única de uma missão diplomática holandesa na baía de Nagasaki) até que, em 1854, os Estados Unidos abriram relações com o Japão com canhões. Ironicamente, descendentes de clãs ocidentais prejudicados pelos Tokugawa foram alguns dos articuladores da Revolução Meiji, que destituiu o cargo de shogun e restaurou o papel central do imperador na política.

Muitos dos personagens do Período Sengoku se tornaram figuras de reverência da História japonesa e do imaginário popular. Do sangue misturado à lama na Batalha de Sekigahara, além das raízes de um novo Japão, emergiu Miyamoto Musashi, então um jovem de 16 anos que sobrevivera lutando do lado legalista, para se tornar o samurai mais famoso do país.

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