quinta-feira, 30 de julho de 2015

A Defenestração de Praga

No dia 30 de julho de 1419, seguidores do pastor Jan Hus invadiram o prédio do Concelho Municipal de Praga e arremessaram para a morte sete de seus membros pela janela, no incidente que ficaria conhecido como a Primeira Defenestração de Praga.

A crise da Igreja Católica que levou à Reforma Protestante no século XVI começou bem antes. No século XIV o teólogo inglês John Wycliffe causou comoção com os seus discursos a respeito da necessidade de reformas centradas nas proposições bíblicas que atingiam diretamente a estrutura do clero e suas relações políticas (chegou ao ponto de atacar diretamente o Papa Gregório XI por não seguir o ideal cristão de pobreza material). Seus livros foram proibidos, Wycliffe considerado herético, e seus seguidores perseguidos. Contudo, um de seus livros, Trialogus, acabou nas mãos do padre Jan Hus, na Boêmia. As teses reformistas de Wycliffe o influenciariam, embora, inicialmente, ele as condenasse publicamente.

A Boêmia era um reino mais ou menos independente do Sacro Império Romano. Os últimos sacro imperadores era também reis da Boêmia. No final do século XIV, Venceslau IV da Boêmia era também o sacro imperador eleito, mas formalmente não governava o império porque a coroação dependia da bênção papal. Ele mesmo não fez muito esforço para procurar o Papa, uma vez que sua posição na Boêmia era frágil e mantida com dificuldade. Contudo, a crise na Igreja levou ao Cisma Ocidental, onde a liderança estava dividida entre o Papa em Roma, e um Antipapa em Avignon. Venceslau era simpático a Bento XIII, Antipapa em Avignon, e via o Papa romano Gregório XII como um obstáculo à sua coroação como sacro imperador. Venceslau também era simpático ao crescente movimento nacionalista tcheco, incorporado na Universidade de Praga, e com Jan Hus na sua liderança. Como Venceslau era visto como um reformista (antes de Bento, ele apoiara a eleição do reformista romano Urbano VI, e mais tarde apoiaria Alexandre V, Anti-antipapa, se isso fosse um título), Hus logo se sentiu seguro suficiente para tornar públicas suas críticas à Igreja. Suas quatro demandas eram:

-Liberdade de pregação da Palavra de Deus (na língua vernacular e por qualquer ministro, independente de ordenação; Wycliffe em pessoa trabalhou numa tradução da Vulgata para o inglês);
-Celebração da Comunhão dos dois tipos (o corpo e o sangue de Cristo, pão e vinho) tanto para os padres como para os fiéis;
-A abdicação de qualquer poder secular do clero;
-Punições iguais para pecados mortais, independente da posição social.

Hus traduziu o Trialogus para o tcheco, e a partir daí a obra circulou também na Polônia, na Hungria e na Áustria. Jan Hus se tornou extremamente popular entre os nacionalistas, que chegaram a declarar, enquanto queimavam as bulas papais que condenavam suas teses, que eles deveriam obedecer Hus, e não a Igreja. Três deles acabariam decapitados, o que geraria enfrentamentos entre católicos e hussitas. Cada vez mais Hus conquistava mais adeptos ao ponto de Venceslau defender publicamente Jan Hus contra a Igreja, enquanto os hussitas se revoltavam em crescente violência a cada condenação do papado de Roma e do Arcebispo de Praga contra suas reformas.

O impasse entre Venceslau e o Papa de Roma fez com que o eleitorado alemão votasse a sua deposição e elegesse para seu lugar seu irmão Sigismundo, Grão-Duque de Luxemburgo. Sigismundo também era herdeiro do trono da Boêmia, de maneira que era do seu interesse apaziguar os ânimos naquele país. Ele promoveu um concílio em Constança em 1414, na fronteira da Alemanha com a Suíça, para por fim às divergências entre católicos e hussitas. Jan Hus atendeu ao convite de bom grado. Mas boatos de que ele fugiria do debate enfureceram Sigismundo, responsável pelo seu convite e sua segurança (à boca miúda, foi aconselhado a não confiar num herético). O processo terminou com a sua prisão, condenação e execução em 1415.

Os hussitas na Boêmia e em seus núcleos nos países vizinhos, contudo, reagiram com violência. Muitos confrontos violentos entre hussitas e católicos resultaram em mortes e prisões por todos os lados. No fim de julho de 1419 alguns hussitas estavam presos em praga, e o padre reformista Jan Zelivsky, acompanhado de membros da sua paróquia, estava se dirigindo para o Concelho Municipal de Praga para tentar negociar sua libertação. O padre foi atingido por uma pedra vinda supostamente do prédio. A turba revoltada invadiu o Concelho, tomou o juiz local, o prefeito, e membros do Concelho, os levou ao alto da torre do edifício e os jogou pela janela.

A Defenestração de Praga foi o ponto final do debate entre o status quo católico e o reformismo hussita. O rei Venceslau morreu logo depois de saber do ocorrido (talvez tenha tido um infarto). Hussitas passaram a atacar alvos católicos, enquanto a nobreza nacionalista tcheca confiscava suas propriedades. Sigismundo, agora rei, recorreu às armas para assegurar sua ascensão ao trono, enquanto o Papa Martinho V convocava o Ocidente para uma Cruzada contra a heresia hussita. A guerra que se seguiu durou quase 15 anos, e chegou até Joana D'Arc (que enviou um ultimato aos hussitas ameaçando liderar pessoalmente uma cruzada caso eles não renunciassem à sua heresia, semanas antes de ser presa). A Igreja aceitaria com restrições as reformas a respeito da comunhão e da pregação da Palavra. Os radicais que se recusavam a aceitar o acordo foram mortos em batalha ou presos. Os demais se reorganizaram em partidos, praticando seus cultos clandestinamente, ou foram reabsorvidos pela Igreja.

O movimento reformista hussita expôs publicamente as contradições da Igreja, e a fagulha que restou do movimento ajudou a acender a chama da Revolta Protestante. O luteranismo acabaria absorvendo as fraternidades hussitas sobreviventes, enquanto a reação católica tomaria de assalto a Boêmia. A Europa seria envolvida em novas guerras religiosas entre católicos e protestantes, e em 1618, outro incidente em Praga terminaria com uma segunda defenestração de dignatários católicos do prédio da Chancelaria Boêmia por rebeldes protestantes.

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