quinta-feira, 23 de julho de 2015

A Chacina da Candelária

Na noite de 23 de julho de 1993, pouco antes da meia noite, seis menores de idade (o mais novo com 11 anos) e dois maiores em situação de rua foram assassinados e um número incerto foi ferido enquanto dormiam nos arredores da igreja da Candelária, no Rio de Janeiro.

As ruas do Centro do Rio são o lar de centenas de pessoas sem teto. São pessoas de todos os tipos, origens e índoles: indivíduos ou famílias de imigrantes, desafortunados que fogem ou são expulsos de casa, idosos senis, doentes mentais ou portadores de doenças incapacitantes e deficiências, viciados em drogas e bebidas (aos quais estão especialmente expostos), que trabalham em subempregos, em bicos, vivem de doações e esmolas ou dedicam-se a pequenos roubos. Durante o dia circulam pelas ruas ocupados em seus afazeres ou escondidos das autoridades. À noite, com as ruas vazias (o Centro do Rio tem uma população residente de cerca de 40 mil pessoas), reúnem-se sob as marquises dos prédios e praças em grupos onde protegem-se uns aos outros da chuva, do frio e de agressões. O grupo da Candelária era constituído de cerca de 70 pessoas, entre menores, homens e mulheres, com todo tipo de perfil.

Testemunhas disseram que, na manhã do dia 22, alguns menores do grupo que se abrigava perto da Candelária atiraram pedras em uma viatura da Polícia Militar enquanto um menor era apreendido, quebrando um vidro e atingindo um policial. Na época, a região da Candelária era um dos focos mais importantes de assaltos a pedestres no centro da cidade, e comerciantes, com seus negócios prejudicados, denunciavam constantemente as ações de menores e jovens baseados nas cercanias da igreja. O menor apreendido teria sido acusado de roubo.

Os policiais gritaram ameaças e se retiraram. Como os meninos eram constantemente ameaçados, não deram importância. Na noite do dia seguinte, quando a maior parte do grupo (entre 40 e 50 pessoas) já estava reunida para passar a noite, dois Chevettes (um taxi e outro carro amarelo descaracterizado) com placas cobertas pararam em frente à igreja. Seus ocupantes desceram, se aproximaram e abriram fogo. No primeiro momento, alguns tentaram fugir e foram baleados. Meia dúzia de garotos que dormiam sobre uma banca de jornal foram executados com tiros na cabeça

Antes da chacina propriamente dita, porém, os executores capturaram Wagner dos Santos, de 21 anos, e mais dois menores que vagavam pela Rua Acre, os jogaram para dentro do carro amarelo e os balearam (Wagner recebeu 4 tiros, incluindo um na nuca). Depois da execução, Wagner e os corpos das outras vítimas foram "desovados" perto do Museu de Arte Moderna. Wagner, de alguma forma, sobreviveu, e se tornou testemunha principal do caso. Por conta disso sofreu outro atentado quase um ano depois enquanto mendigava na estação Central do Brasil (recebendo mais quatro tiros), após o que recebeu atendimento do serviço de proteção à testemunha. Foi levado à Suíça onde, surdo, cego de um olho e debilitado pela intoxicação por chumbo devido aos projéteis, vive sob cuidados.

Outro sobrevivente da chacina, Sandro Rosa do Nascimento, escapou se fingindo de morto. Posteriormente foi acolhido por projetos sociais, mas desligado da família, com dificuldades de aprendizado e socialização e viciado em drogas, passou a viver na marginalidade. Sete anos depois ele protagonizou o sequestro de um ônibus da linha 174, no bairro do Jardim Botânico, que resultou na morte de uma refém (alvejada à queima roupa por um policial), e do próprio Sandro, estrangulado no interior da viatura após ser imobilizado e algemado.

A investigação sobre a Chacina da Candelária levou à acusação de participação direta de três policiais militares da ativa e um que já havia sido expulso da corporação. Este último, Maurício da Conceição, resistiu à prisão e foi morto durante o processo. Um quinto acusado foi condenado a dois anos de prisão por portar uma das armas usadas no crime, mas sua participação na chacina ainda não foi comprovada (hoje ele ainda aguarda julgamento). Outros três acusados foram inocentados. Um sobrevivente ainda reconheceu um nono elemento, e a perícia identificou um projétil retirado de uma das vítimas disparado pela arma do seu padrasto, mas ele não foi indiciado. Os três condenados à pena máxima, devido ao regime de progressão, estão soltos desde antes de completados 20 anos de reclusão. Um deles teve o indulto suspenso e é considerado foragido.

A Chacina da Candelária foi notícia no mundo inteiro, e despertou debates sobre a relação entre o modelo de desenvolvimento das economias emergentes e a marginalização de parte da sua população, e como as suas cidades lidam com este problema. Surgiram projetos sociais, inclusive ligados à Arquidiocese do Rio (cujo arcebispo na época, Don Eugênio Sales, praticamente exigiu dos fiéis que, enquanto crianças em situação de rua continuassem a ser mortas, ninguém se esquecesse daquela data) dedicados a resgatar e socializar jovens e adultos em situação de rua. Mesmo assim, daquele grupo de 70 moradores de rua da Candelária em julho de 1993, 44 foram assassinados nos últimos 22 anos por policiais, grupos de extermínio, justiceiros, ou em confrontos com traficantes de drogas e outros moradores de rua, e quase todos os demais tem paradeiro desconhecido. De janeiro a agosto de 2013, 195 moradores de rua foram assassinados no Brasil, e desses crimes, apenas 13 foram investigados.

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