sexta-feira, 10 de julho de 2015

O estado de Maracaju

Em 10 de julho de 1932, a parte sul do antigo estado do Mato Grosso teria declarado sua emancipação, criando o estado de Maracaju, para apoiar São Paulo na Revolução Constitucionalista.

Em primeiro lugar, confesso a negligência com a data de 9 de julho, quando São Paulo declarou guerra a Getúlio Vargas, porque, por ser um conflito com alguns meses de duração, haveria pretexto em outras datas para falar dele e de aspectos específicos dele. Bom, aqui está.

A Revolução de 1932 é resultado de uma rede complexa de acontecimentos que se seguiram à crise econômica internacional de 1929. Na ocasião, o café era o principal produto de exportação do Brasil, a principal fonte de divisas para o estado de São Paulo, e a principal fonte de poder da política paulista durante todo o Império e a República Velha. Em aliança com os produtores de leite de Minas Gerais, os políticos paulistas e mineiros alternavam a indicação de candidatos à presidência da República (mesmo que esses candidatos fossem nativos de outros estados, como o macaense Washington Luís, radicado politicamente em São Paulo), invariavelmente vitoriosos, garantindo uma continuidade nas políticas de interesse de ambos os grupos (a Política do Café com Leite).

Durante a primeira parte do século XX, a prosperidade do café propiciou o processo de industrialização. Com a crise, o mercado internacional do café praticamente deixou de existir do dia para a noite, levando, além dos industriais, os grandes proprietários de terras e seus afilhados políticos à ruína. Mas um detalhe a mais seria determinante para a evolução dos eventos que culminariam com a Revolução: em 1929, antes da crise, o presidente Washington Luís nomeou, com vasto apoio de lideranças estaduais, para sua sucessão o paulista Júlio Prestes, preterindo um político alinhado com os mineiros. Neste momento, a bancada mineira no Congresso Nacional se uniu à bancadas gaúcha e paraibana (as três bancadas que se opuseram à indicação de Prestes), com Getúlio Vargas candidato à presidência.

Ter um candidato abertamente em oposição à situação política nunca assustou os conservadores. Com um processo eleitoral nebuloso, até hoje existem dúvidas acerca dos resultados oficiais dos pleitos durante a República Velha. Mas sua base política agora mergulhara no caos. Isto inflamou os discursos da Aliança Liberal contra o poder vigente abalado, ameaçando desde setembro de 1929 uma revolução em caso de derrota nas eleições. Os políticos ainda alinhados com os paulistas previam uma reação do estado em caso de agressão.

A eleição se deu em março de 1930 com larga vantagem de Prestes sobre Vargas (90% dos votos válidos para o paulista). Os mais radicais na Aliança Liberal, alegando fraude nas eleições, resolveram enfim pegar em armas após o assassinato do vice da chapa, João Pessoa (cuja morte não teve motivos políticos), em julho. Forças gaúchas e mineiras principalmente chegaram ao Rio de Janeiro a tempo de impedir a posse de Júlio Prestes. Eles derrubaram Washington Luís e empossaram Getúlio Vargas como "chefe do governo provisório" - que logo se tornaria efetivamente permanente quando Getúlio suspendeu a Constituição, dissolveu o Congresso Nacional e os congressos estaduais (que contavam com câmaras de deputados e senados independentes), e nomeou interventores para todos os estados, exceto Minas Gerais. Nomeou também membros dos movimentos tenentistas dos anos 20 - históricos opositores das oligarquias paulistas - para posições de comando do exército e da polícia militar, inclusive em São Paulo.

Vargas seguiu governando "provisoriamente" por decreto, dando ares óbvios de ditadura ao regime. Com o poder político centralizado e aliados fiéis em postos estratégicos onde poderia haver focos de resistência, fortaleceu também a posição central do governo federal no controle da economia, tentando insular o Brasil do efeito da especulação de capital. Isso também incluiu a intervenção no setor agrícola. Também baixou leis que davam benefícios aos trabalhadores às custas dos empregadores. Exílios, militarização e o controle da imprensa também foram empregados.

A situação em São Paulo começou a se deteriorar quando o minoritário Partido Democrático de São Paulo, que trabalhou na campanha de Getúlio, não conseguiu indicar um interventor para o estado. A administração provisória nos primeiros dias da revolução de 1930 ficou a cargo de um grupo liderado pelo tenente João Alberto. A ingerência de João Alberto precipitou uma crise econômica e política que levou a uma sucessão rápida de interventores no estado. A insatisfação popular, insuflada pela imprensa local e por discursos políticos inflamados contra Getúlio, denunciando a ditadura que se instalara no Brasil especificamente para esmagar São Paulo, levou o governo federal a indicar um paulista não alinhado com Vargas como interventor, Pedro de Toledo. Mesmo assim, 200 mil pessoas se reuniram em janeiro de 1932 na Praça da Sé, na capital paulista, para um comício contra Vargas. Outros grandes comícios ocorreram no estado nos meses seguintes. O teor do discurso era a ilegalidade do regime Vargas, o desrespeito à Constituição (a Constituição de 1891 fora suspensa mas ainda não substituída), e o achacamento proposital da economia do estado.. A principal demanda, uma nova Constituição que estabelecesse os limites entre os poderes e restaurasse a legalidade. O Partido Democrático de São Paulo passou para a oposição. A ele se juntaria o MMDC, grupo contrarrevolucionário criado após a morte de 5 jovens por partidários de Vargas, e sancionado pelo governo paulista.

Como Júlio Prestes havia sido indicado em 17 dos 20 estados da federação, e eleito com 90% dos votos, e como o pretexto para a agitação política era a necessidade de uma nova Constituição (cuja assembleia constituinte Vargas aceitou convocar semanas antes), os líderes paulistas supunham contar com a adesão de pelo menos uma boa parte do país na sua causa. Em 9 de julho foi proclamada uma convocação para os paulistas pegarem em armas contra o governo Vargas. O general matogrossense Bertoldo Klinger foi um dos que apoiaram a iniciativa, e arregimentou todas as tropas leais do seu estado. No dia 10, ele teria proclamado a independência do estado de Maracaju, e levou seus comandados para lutar em São Paulo.

A iniciativa paulista malogrou na medida em que Minas Gerais (cuja força política de maior expressão era o ex-presidente "café com leite" Artur Bernardes) e o Rio Grande do Sul (o estado mais bem armado) optaram por apoiar o governo federal (apenas a facção liderada por Borges de Medeiros se juntou aos paulistas). Paulistas e matogrossenses, basicamente soldados, policiais militares e recrutas não treinados e lutando com suas próprias armas, se dispuseram a atacar alvos do governo federal e do exército. As frentes de batalha se definiram entre o Vale do Paraíba, o sul e o leste de São Paulo. Os poucos gaúchos do lado da Revolução fustigavam colunas do exército regular do estado com táticas de guerrilha enquanto marchavam para o front. Mas o avanço das forças federais, muito mais numerosas e bem armadas, contando com veículos blindados, aviões de bombardeio e um serviço de propaganda e inteligência sofisticados, contiveram esse avanço. Com as fronteiras do estado fechadas (inclusive o porto de Santos) e seus paióis e fábricas de armas bombardeadas, a economia enfraquecida, logo os paulistas, apesar das contribuições de seus cidadãos, se viram limitados em seus armamentos, a ponto de, em certo momento, soldados usarem matracas para simular o som de metralhadoras em batalha. A derrota veio em 2 de outubro, véspera do aniversário de posse de Getúlio, com a rendição dos líderes constitucionalistas para o general getulista Góis Monteiro.

Quanto ao estado de Maracaju, sua existência oscila entre o fato e o imaginário. O fato é que o comandante do exército na cidade de Campo Grande, general Klinger, se solidarizava abertamente com o comandante de São Paulo, exonerado por Getúlio Vargas, e trabalhou para levar tropas matogrossenses leais à causa constitucionalista para lutar no front. Mas a instituição de Campo Grande como capital (provisória) do estado (de Mato Grosso, não de Maracaju) foi oficializada por decreto do interventor do estado, Vespasiano Martins, e publicada no Diário Oficial mais de duas semanas depois da suposta declaração de independência de Klinger. É possível mesmo que a mudança da capital de Cuiabá para Campo Grande tenha sido manobrado pelo governo federal para inibir os esforços de guerra na região sob influência de Bertoldo Klinger. O impasse está no fato de que Vespasiano era ao mesmo tempo o interventor do Mato Grosso nomeado pelo presidente, e governador do Mato Grosso (como um todo) pelos constitucionalistas. A existência "virtual" do estado de Maracaju se comprova pela fronteira fechada entre seu território e São Paulo, pois assim ocorreu porque o estado de Mato Grosso como um todo estava sujeito a Getúlio - teria sido providencial aos insurgentes que Maracaju tivesse existido de fato, possibilitando a importação de armamentos pela fronteira com o Paraguai.

Com a derrota em 2 de outubro, Klinger foi preso e exilado, e o que ele chamava de estado de Maracaju deixou de existir. De qualquer forma, o estado do Mato Grosso do Sul, emancipado em 1979, assumiu os contornos básicos do que teria sido o estado de Maracaju, e herdou a sua memória como parte da sua identidade histórica.

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