terça-feira, 7 de julho de 2015

Habemus panem

Em 7 de julho de 1928 o pão de forma fatiado e ensacado industrialmente foi introduzido no mercado americano.

O pão é uma pequena maravilha culinária que se faz misturando farinha de algum material vegetal rico em amido - grãos como trigo, cevada, painço, centeio, aveia, arroz, milho, ou raízes como mandioca, inhame, araruta - com água e assado ao fogo. Os pães mais antigos, possivelmente produzidos a partir de 30 mil anos atrás, eram basicamente grandes biscoitos achatados, crocantes e maciços feitos com material vegetal, especialmente rizomas de plantas silvestres ricos em amido. No Oriente Médio, sobretudo após a revolução agrícola do período neolítico, onde grãos como trigo e cevada eram as fontes de carboidratos mais comuns e facilmente cultiváveis, a receita do pão passava naturalmente pelo processo de fermentação, pois os próprios grãos continham esporos de fungos que entravam em atividade quando se misturava a farinha com a água, fazendo com que os pães fossem mais macios, mesmo os assados em formato achatado (o pão sírio ou árabe que conhecemos é um desenvolvimento desse método). Os judeus ritualisticamente preparam pães não fermentados durante a páscoa, assim como católicos na eucaristia. A "mágica" do fermento só foi decifrada em 1857, quando Louis Pasteur deduziu que o processo de fermentação ocorria através de atividade biológica de fungos associados à massa, e não por reações químicas espontâneas.

Como grãos, água e fogo eram recursos abundantes, o pão se tornou facilmente o alimento básico e principal fonte de carboidrato de praticamente toda sociedade agrária do mundo. Mesmo na Amazônia, onde grãos não podiam ser cultivados facilmente (embora o milho estivesse razoavelmente bem difundido), a farinha de mandioca supria essa carência, se tornando, inclusive, um produto importante de exportação, aquecendo a economia e possibilitando o intercâmbio cultural e tecnológico nas aldeias ao longo das rotas comerciais que iam do baixo Amazonas até o Equador. A tapioca, uma espécie de pãozinho chato assado sobre uma frigideira feito com uma farinha seca bem fina de mandioca, deixou de ser uma iguaria de cozinhas regionais do Norte e Nordeste do Brasil para ganhar as prateleiras de supermercado das capitais do Sudeste devido a um trabalho oportunista de publicidade - a mandioca é desprovida de glúten, proteína típica do trigo e presente na farinha branca cuja digestão difícil pode provocar gases e irritação no intestino. Eu nem precisei disso para me tornar um adepto!

O pão sempre figurou como fonte importante de alimento, e a adesão ao pão na dieta está geralmente ligada à disponibilidade geral de outras fontes de alimento, como carnes, raízes, e frutas. Em tempos de escassez, recorre-se ao pão. No Haiti, onde a escassez é generalizada e muito do solo do país já foi esgotado, as famílias mais pobres, nos piores momentos, tentam "simular" um pão usando cinzas no complemento à farinha. Houve casos em que a dependência do pão causou problemas. Na Europa central e mais ao norte, o centeio sempre foi um dos principais grãos cultivados e fonte de farinha para pães. Acontece que, ocasionalmente, as espigas do centeio são infestadas por um fungo da espécie Claviceps purpurea (conhecido em francês como "ergot"), rico em alcaloides e que aparece como uma coisa comprida e escura bastante conspícua que normalmente faz com que a espiga seja descartada. Em tempos de escassez, mesmo essas espigas contaminadas eram aproveitadas e moídas. Os alcaloides do fungo são preservados no cozimento da massa, e causam diversas reações: vasoconstrição (que pode levar a gangrena das extremidades, descamação da pele e feridas), associado a um quadro neurológico complexo, que inclui convulsões, espasmos, coceiras, comportamento psicótico, enjoos, delírio. O quadro, conhecido hoje como ergotismo, foi associado durante a Idade Média a interferência divina ou de santos (os delírios podiam ser interpretados como mensagens divinas), conhecida como "fogo de Santo Antônio", porque freis antoninos na França se tornaram especialistas no tratamento dos doentes.

Enfim, o pão de forma fatiado foi uma pequena revolução na indústria alimentícia. A receita não era nova. O "loaf of bread", a massa retangular de farinha de trigo macia e de casca fina assada dentro de uma forma retangular, que nós conhecemos como pão de forma, já era produzido nos Estados Unidos desde o começo do século XX (quando a farinha de trigo se tornou artigo popular no país). Quem produzia esse pão para o comércio, o vendia por peça, e ficava a cargo do consumidor cortar as fatias. Se alguém se lembra do filme Tempos Modernos (1936), há uma cena em que Carlitos sai do seu barraco para um mergulho (batendo a cabeça no fundo do "lago", que é pouco mais que uma poça d'água), enquanto sua companheira (Paulette Goddard) corta algumas fatias grossas de pão de forma, e com elas faz enormes sanduíches de presunto que eles mal conseguem morder. Quem assa pães de forma em casa sabe a dificuldade que é cortar as fatias manualmente com a precisão do pão de forma do supermercado.

O processo industrial para fatiar e ensacar o pão de forma havia sido inventado por Otto Frederick Rohwedder em 1912, mas o protótipo da máquina foi destruído num incêndio. Um primeiro modelo funcional foi vendido a uma empresa na pequena cidade de Chillicothe, que começou a vender o pão de forma fatiado. As fatias, finas e padronizadas, induziam o consumidor a consumir o pão mais rapidamente e com menos desperdícios. Também, como havia mais fatias disponíveis num pão do que se fosse cortado manualmente, todo a indústria de pastas, geleias, manteiga, recheios e coberturas diversas sentiu um "boom" nos negócios com a popularização desse tipo de pão. Hoje em dia o pão de forma fatiado industrialmente é popular em vários países do mundo e comercializado das mais diferentes maneiras - fatias mais grossas, mais finas, porções menores, maiores, com casca, sem casca, e inúmeras variações da receita básica e no tipo de farinha empregada, de acordo com as demandas de mercado.

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