quinta-feira, 2 de julho de 2015

A Noite das Facas Longas

Entre 30 de junho e 2 de julho de 1934, esquadrões da SS e da Gestapo levaram a cabo a Operação Colibri, mais tarde conhecida como a Noite das Facas Longas, um extenso expurgo de alas do Partido Nazista não alinhadas com Adolf Hitler e outros opositores. Foi o último passo da escalada nazista ao poder supremo na Alemanha.

Um dos ítens do Tratado de Versailles assinado pelos participantes da Primeira Guerra Mundial era a limitação do exército alemão em 100 mil homens. Ex militares descontentes, ou desorientados com sua nova vida civil, se organizaram em milícias irregulares de mercenários conhecidas como Freikorps, que permaneceram em atividade durante todo o regime de Weimar, engajando-se ativamente em ações violentas contra ou a favor do novo governo alemão e seus apoiadores. Como também atuavam contra núcleos marxistas, o próprio governo se omitia em reprimí-los (o Ministério da Defesa empregou Freikorpse para reprimir a formação de um Estado soviético na Bavária em 1918, e eliminar o levante comunista liderado por Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo em 1919).

Na Alemanha pós-guerra surgiu um conceito muito particular de socialismo, o "Socialismo Prussiano", moldado por um sentimento fortemente anti-britânico, que rejeitava o liberalismo e a democracia parlamentarista, e advogava um socialismo dissociado do marxismo (que era um socialismo "britânico"), onde a igualdade entre os alemães emergiria não de rupturas econômicas e sociais entre burgueses e proletários, ou seja, da luta de classes, mas de qualidades coletivas romanticamente inerentes ao povo alemão - criatividade, disciplina, produtividade, preocupação com o bem maior, e auto sacrifício. A revolução socialista não passaria pela coletivização da propriedade privada, mas pelo corporativismo e o senso de responsabilidade coletiva, unidade e orgulho nacional. O ideólogo dessa modalidade de socialismo, Oswald Spengler, declarou ipsis literis: "Marx ist tot", Marx está morto.

O Socialismo Prussiano como chamado ao ultranacionalismo caiu como uma luva na Alemanha derrotada, e foi o trilho que orientou a ideologia da grande maioria das Freikorpse e associações políticas baseadas nelas. Entre elas, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. É extremamente comum ver pessoas associando os nazistas aos "comunistas" porque o nome do partido inclui a palavra "Socialista" e sua bandeira a cor vermelha, e também marxistas incautos embaraçados tentando contornar o assunto desastradamente, mas a verdade é que o Nacional Socialismo, contraído na palavra "nazismo", refere-se ao Socialismo Prussiano virulentamente anti comunista e ultranacionalista (o marxismo é profundamente transnacional). As diretrizes nazistas quanto à unidade racial ariana derivam diretamente dessa doutrina - a unidade nacional só seria possível com a eliminação, voluntária ou forçada, de elementos estranhos à "raça alemã", os judeus, ciganos, eslavos, africanos, deficientes físicos e mentais, homossexuais, e grupos insubmissos como Testemunhas de Jeová e opositores políticos, como os próprios comunistas.

Houve um incidente nos primórdios do Partido Nacional Socialista, quando era o Partido dos Trabalhadores Alemães. Um de seus fundadores, Gottfried Fedder, terminou seu discurso no comitê em Munique, quando um convidado, um certo professor Baumann, argumentou que o programa do partido não se opunha propriamente ao capitalismo e que a Bavária devia se separar da Prússia e tomar seu próprio caminho. Adolf Hitler, originalmente um militar bávaro infiltrado, o rebateu com sua veemência oratória que lhe seria característica, conquistando a maioria presente, e expulsando o professor da reunião. Hitler foi abordado por outro fundador do partido, Anton Drexler, um rábico nacionalista e antissemita, e convidado a integrar as suas linhas. Hitler se tornaria o principal porta-voz do partido, e um dos idealizadores do seu programa oficial, um programa fundamentalmente antissemítico, anticapitalista, antidemocrático, antimarxista e antiliberal, ao mesmo tempo. No mesmo dia em que Hitler expunha esse programa a uma platéia de 2000 pessoas, o partido mudou de nome. O programa agregava Freikorpse dominadas por ideologias similares, incluindo membros notórios dessas facções, como Ernst Röhm e Heinrich Himmler. O grupo de Himmler (o "Batalhão de Choque da Baixa Bavária") foi inteiramente absorvido pelos nazistas.

Hitler se tornou líder do partido em 1921, após ameaçar abandoná-lo se não fosse instituído como tal no lugar de Drexler (outros líderes menos simpáticos a Hitler também foram expulsos). Ao mesmo tempo, uma Freikorps interna surgia no partido, os Camisas Marrons, ou SA (de "Sturmabteilung"), liderada por Röhm, que fazia o "trabalho sujo" de recrutamento e intimidação, enquanto Hitler se encarregava da política. Em 1923 a França ocupou a região do Ruhr, largamente industrializada, como parte do acordo pelo não ressarcimento pelos danos da Primeira Guerra pelo governo alemão, causando caos econômico no país. Com esse cenário, e sentindo a robustez do partido, Hitler tentou um golpe a partir de Munique, mas foi "traído" pelos militares que não apoiaram a revolta (apesar de algumas promessas) e foi preso. Na cadeia, escreveu no Mein Kampf sua visão indissociável de que a soberania alemã dependia da eliminação dos judeus (que ele acreditava serem os operadores do liberalismo europeu e americano que esmagavam a economia alemã, e ao mesmo tempo engendradores do marxismo, essa "perversão judaica").

Ao sair da cadeia, Hitler reformulou o Partido Nazista em torno de si mesmo, decidindo entrar no jogo democrático do período de Weimar. Ainda assim, a SA continuou operando de maneira semi-independente a favor dos nazistas. A SS (a polícia interna do partido) surgiu como uma espécie de segurança pessoal de Hitler, e acabaria assumindo, no limite da legalidade, alguns papéis da SA, porém com membros exclusivamente afiliados ao partido. Embora sem muito sucesso nas primeiras eleições (nas quais contestava abertamente os resultados oficiais), em parte por conta da relativa estabilidade econômica de meados dos anos 1920, o partido crescia graças a um trabalho primoroso de propaganda e uma estrutura rigorosamente eficiente de recrutamento.

Gregor Strasser, um antigo membro de uma Freikorps de extrema direita e ex-SA, participante da tentativa de golpe de 1923, era o encarregado da propaganda. Com sua capacidade de organização, foi responsável direto pelo fortalecimento dos nazistas fora da Bavária, em regiões menos desenvolvidas no norte e no leste, bem como Alemanha afora. Mas houve um detalhe. Seu irmão Otto, também político e membro do partido, tinha inclinações mais à esquerda, com uma visão ligeiramente mais ortodoxa do socialismo, acreditando na intervenção do Estado em ações baseadas na luta de classes em favor dos trabalhadores. Os dois, juntos, trabalhavam num jornal do partido, e como Otto atuava como jornalista, o teor do Berliner Arbeiterzeitung (e posteriormente de outro jornal dos irmãos, o Nationaler Sozialist) estava mais à esquerda do que a direção do partido pretendia. Otto foi expulso em 1930 e Gregor permaneceu no cargo, gozando de grande prestígio no núcleo nazista de Berlim. O novo secretário de propaganda, porém, passaria a ser Joseph Goebbels, que baniria o jornal dos irmãos Strasser. Hitler, então, veio a público para se opor à corrente de esquerda de Gregor (academicamente conhecida como Strasserismo).

Com a crise econômica do começo dos anos 1930, os nazistas deixaram de ter apenas uma militância forte para ganhar o apoio da classe média. Com uma representatividade significativa no parlamento alemão, o chanceler Kurt von Schleicher ofereceu a Gregor Strasser a vice-chancelaria, na esperança de que, alimentando a corrente de esquerda, ele desarticularia o Partido Nazista. Hitler ordenou que ele recusasse. Pouco depois Strasser deixou o partido.

Em 1932 Hitler perdeu a eleição presidencial para o velho conservador Paul von Hindenburg, que compôs com ele um governo de coalizão. Quatro semanas depois da nomeação de Hitler ao cargo de Chanceler, ocorreu um incêncio do parlamento, causado, segundo apurado na época, por um solitário comunista holandês (as dúvidas de que ele teria conseguido agir sozinho joga uma luz na possibilidade dos nazistas terem orquestrado o ato). Foi o pretexto para Hitler declarar que havia um golpe comunista à vista. Ele convenceu Hindenburg a suspender liberdades civis e a ordenar a prisão de todos os membros do Partido Comunista da Alemanha, inclusive os seus parlamentares. Sem franca oposição, Hitler passou a governar com o parlamento dominado pelos nazistas. Contudo, havia ainda dois empecilhos para exercer o poder político total. Além do Strasserismo, irradiado entre opositores dentro e fora do partido, ainda havia a SA.

A SA continuava operando clandestinamente em conluio com os nazistas na repressão violenta a manifestações contrárias ao regime. Contudo, ainda assim ela mantinha autonomia, por exemplo, no recrutamento: um relatório de 1933 denunciava que 70% dos recrutas eram ex comunistas, além de um grande número de homossexuais (inclusive Röhm), o que contrastava com o rigor quanto à afiliação ao Partido Nazista. Essa independência também significava que não havia financiamento oficial à corporação, obtido por extorsão a comerciantes e pagamento de resgates. Ernst Röhm levava a sério a veia "socialista" do Nacional Socialismo, cobrava reformas genuinamente socialistas do regime, e dizia que a revolução havia apenas começado. Sua visão à esquerda preocupava os industriais que financiavam o partido, e a autonomia da SA, cada vez maior e melhor armada, punha Hitler em conflito com o exército regular (ainda limitado pelo Tratado de Versailles). Hindenburg, aliado incondicional das forças armadas, pressionou Hitler para dar um fim à SA, sob a ameaça dissolver a chancelaria e decretar lei marcial. Hitler hesitava em agir contra seu amigo Röhm, mas a pressão política era insustentável.

Para eliminar Röhm, Strasser e outros dissidentes, os nazistas contaram com a SS (ao contrário da SA, extremamente disciplinada e sob estrito controle do círculo mais próximo a Hitler) e a Gestapo, o serviço secreto que os nazistas haviam aparelhado, e também estava sob controle cerrado. No final de junho Hitler se encontrou com Röhm em um resort perto de Munique, e ordenou sua prisão. Com os principais membros da SA presos, Hitler telefonou para Hermann Goering em Berlim e disse o código: "Colibri". Imediatamente, esquadrões da SS e da Gestapo localizaram, prenderam e executaram pelo menos 85 opositores, entre membros da SA, associados de Strasser (incluindo Gregor), políticos conservadores e alguns desafetos pessoais de Hitler (como o delegado que ordenou a sua prisão em 1921). Röhm também foi executado em sua cela com três tiros no peito, após ter recusado o suicídio. Havia uma lista prévia com os nomes destas pessoas marcadas para morrer. Um oficial da Gestapo dizia ter visto Hitler, de volta a Berlim, recebendo essa lista e conferindo os nomes um a um, enquanto Goering e Himmler descreviam ao seu ouvido como cada um foi executado.

Estima-se que mais de 100 pessoas, alguns por acidente, outros por conveniência, tenham sido mortas nos ataques que ficariam conhecidos como a Noite das Facas Longas. Os nazistas se encarregaram de amenizar o horror e a publicidade inevitável das execuções sumárias divulgando boatos de conspirações comunistas, ou sobre um suposto financiamento francês a Röhm (cuja sexualidade, conhecida desde o início pelo comando nazista, fora intencionalmente exposta) para assassinar Hitler. Documentos sobre a organização do ataque foram queimados. No dia 13 de julho Hitler discursou em rede nacional, onde alegou ter agido rapidamente como "o juiz supremo do povo alemão" para eliminar traidores e "cauterizar até a carne as úlceras" da nação para trazer novamente a ordem e a segurança, e alertar a todos que os que levantassem a mão contra o Estado encontrariam a morte. Sem oposição política (Hindenburg recebeu em seu gabinete um memorando solicitando sua intervenção junto à Suprema Corte para investigar as ações de Hitler, que ele ignorou), com apoio efusivo do empresariado alemão e do exército, e a opinião pública inabalada, a Alemanha chegou a um ponto sem volta.

P.S.: Ontem faleceu Sir Nicholas Winton, corretor de ações britânico que visitou a turismo a Tchecoslováquia semanas antes da ocupação nazista em 1938. Alertado por um amigo residente em Praga do que os judeus estariam sujeitos naquele país sob o nazismo, ele sozinho organizou a fuga e a adoção por famílias britânicas (atendendo às exigências da lei britânica) de 669 crianças judias, Ele conseguiu chegar de trem e embarcar as crianças clandestinamente na Holanda, então fechada para imigrantes judeus. Um último trem com 250 crianças foi interceptado antes de sair de Praga, quando a guerra já estava declarada. A maioria dos pais daquelas crianças morreu em Auschwitz.

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