quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Unido pela partilha, partido pela união.

Em 2 de setembro de 1898, uma força anglo-egípcia derrotou um exército mais numeroso de guerreiros sudaneses na Batalha de Omdurman, perto de Cartum.

Antes de 1820, o que é hoje o Sudão era um território desprovido de governo central, repartido entre pequenos reinos, e habitado e disputado entre tribos locais. Nesse ano, o governador otomano do Egito, Muhammad Ali, ordenou a conquista e anexação deste vasto território, fonte de ouro (razão de prosperidade dos antigos reinos sudaneses e do próprio Egito faraônico, num passado distante) e escravos. Além disso, turcos mamelucos, que Ali expulsara do Egito, haviam fugido para o sul, e os reinos tributários que existiam num cinturão entre o Egito propriamente dito e o Sudão se recusavam a entregá-los, proporcionando uma justificativa diplomática para a campanha. Melhor organizados e armados, os egípcios enfrentaram resistência da principal tribo sudanesa, os Shaiqiya, até hoje um povo agrícola e cioso de suas terras às margens do Nilo. Porém, dentro de um ano a guerra estava decidida em favor do Egito. A recém fundada fortaleza de Cartum se tornou o centro administrativo do Sudão egípcio.

As reformas implementadas pelo Egito no Sudão passavam pela implantação de um sistema jurídico e um sistema educacional no modelo otomano. Contudo, o Egito favorecia modelos jurídicos e educacionais orientados por uma ortodoxia islâmica que os sudaneses rejeitavam, por entrar em conflito com o islã praticado pelas tribos, que incorporava práticas e crenças tradicionais locais. O tráfico de escravos do Sudão para o Egito também se tornou tão lucrativo que, na década de 1860 esta se tornou a principal atividade econômica do Sudão (mesmo com os esforços conjuntos com os britânicos para erradicar o tráfico de escravos, caravanas árabes de apresamento continuavam a fazer fortunas no Sudão). A privatização de terras e a monopolização de ramos importantes da economia sudanesa também se tornaram um problema. Na década de 1870, o governador Ismail I, afundado em dívidas por causa da construção do Canal de Suez, começou a ceder favores à Grã-Bretanha, e a nomear europeus para governar as províncias do Sudão, e favorecer o estabelecimento de empresas estrangeiras no país. Esse Ismail acabaria abdicando em favor de seu filho Tewfiq, gerando uma crise política duradoura que levaria a uma guerra civil e à efetiva ocupação do país pelo Reino Unido.

Ismail havia nomeado governador das províncias mais meridionais do Sudão o general britânico Charles Gordon, que enfrentou resistência de um certo chefe tribal local. Com a crise de sucessão, Gordon perdeu apoio do governo central, e, depois de sete anos de atritos, abandonou o cargo. O prolongado conflitou deixou na região um forte ressentimento contra o domínio estrangeiro - fosse britânico, egípcio, ou otomano, cujo sultão era considerado o califa, ou a autoridade máxima, do islã e que exercia forte influência sobre a administração egípcia - que, até então, era vista como massacrante pelos sudaneses.

No meio de tudo isso, um faquir sudanês chamado Muhammad Ahmad proclamou a si mesmo Mahdi (o "redentor do islã") e conclamou os sudaneses fiéis a recuperarem sua terra. A agitação crescente fez com que o governador do Sudão mandasse duas companhias para capturá-lo. As duas companhias acabaram se separando no caminho, e, ao se encontrarem, julgaram estar diante do inimigo, e começaram a atirar uma na outra. Os fiéis de Ahmad se aproveitaram da confusão para destruir ambas, elevando seu nome e sua moral pelo país. Em outro confronto, os rebeldes, famintos e armados apenas de paus e pedras, atacaram um acampamento de 4 mil soldados e se apropriaram das suas armas, uniformes e suprimentos. Em 1883, uma força de mais de 10 mil egípcios e britânicos marchou para o Sudão, e encontrou o Mahdi no controle da cidade de El Obeid, com 40 mil guerreiros tribais, armados e treinados, às suas ordens. Ahmad foi mais uma vez vitorioso. Após isso, o Egito começou a se retirar do Sudão. O general Gordon foi chamado de volta para coordenar a retirada.

Ao chegar em Cartum, Gordon se deu conta da complexidade da missão: os soldados, administradores e civis egípcios e britânicos estavam encastelados em cidades e fortalezas espalhadas pelo vasto território, três delas sitiadas, e tudo entre elas estava sob controle do Mahdi. Ele se recusava, contudo, a salvar apenas Cartum (cuja população não-sudanesa era mais numerosa do que a de todas as outras cidades juntas). Ele também se preocupava com a possibilidade do Mahdi, de posse do Sudão, atacar o Egito. Enquanto pensava em um plano, mahdistas ao norte cortaram os cabos telegráficos, e em alguns dias, 50 mil deles cercavam a cidade. Depois de quase um ano de cerco, sem receber reforços, a capital caiu nas mãos do Mahdi. A queda de Cartum repercutiu no próprio cenário político britânico - o partido do governo perdeu a eleição seguinte. O governo, contudo, continuou empreendendo esforços para retirar cidadãos e oficiais estrangeiros. Em 1889, uma operação para resgatar o governador do sul, o turco Mehmed Emin, saiu do Egito e contornou toda a África Central para chegar ao sul do Sudão sem passar pelo território sob o Mahdi.

Afinal, britânicos e egípcios conseguiram reagrupar suas forças. O exército egípcio foi treinado e armado pelos ingleses, visando uma campanha de reconquista do Sudão, que o Egito ainda considerava território seu, e cuja reivindicação os britânicos consideravam legítima. Nesse meio tempo, em 1885, Ahmad morreu e foi sucedido por outro Mahdi, Abdallahi ibn Muhammad, tão influente e competente quanto seu antecessor. O Mahdi impunha a sharia, o código de leis islâmico baseado no Alcorão - porém, dentro do contexto plural e tribalista do islã no Sudão, os mahdistas hostilizavam a ortodoxia a ponto de queimar livros islâmicos. O sistema de crenças islâmico foi adaptado para que a lealdade ao Mahdi fosse incluída como um dos pilares da verdadeira fé. O regime mahdista era menos religioso e mais personalista do que pareceria a um observador casual. Os cristãos copta, contudo, eram alvos fáceis de perseguição religiosa.

Missionários e políticos ingleses que fugiram do Sudão publicaram e relataram à imprensa a barbárie imposta pelos mahdistas, originando uma ampla campanha com apelo popular pela intervenção militar naquele país. Em 1896, depois da derrota italiana na guerra com a Etiópia (o imperador etíope Yohannes IV requisitou aliança ao Mahdi Muhammad, mas foi recusado por ser, Yohannes, cristão), os sudaneses ameaçaram retomar Kassala, na fronteira do país, então sob controle italiano. Foi a brecha para os britânicos tomarem a ofensiva.

A força anglo-egípcia avançou pelo norte, tomando o cuidado de fortificar posições e construir ferrovias para garantir linhas de suprimentos. Onze mil homens equipados com o que existia de mais moderno em armamentos, incluindo metralhadoras, peças de artilharia e canhoneiras subiram o rio Nilo. Os confrontos mais sérios foram travados em 1898, quando os britânicos e egípcios, em número ainda maior, enfrentaram os mahdistas, que já somavam um exército de mais de 60 mil guerreiros. Uma batalha travada perto do rio Atbara provou, contudo, a superioridade bélica europeia: em 45 minutos, 3 mil mahdistas foram mortos, contra 85 britânicos e egípcios.

O exército anglo-egípcio conseguiu alcançar Cartum. Na manhã de 2 de setembro, cerca de 26 mil soldados anglo-egípcios encontraram 52 mil mahdistas próximo ao distrito de Omdurman, na periferia da capital. A batalha foi confusa e particularmente sangrenta, com os mahdistas realizando um ataque frontal à curta distância (devido ao alcance de seus antigos rifles) contra canhões e metralhadoras. Depois desse primeiro momento, em que 4 mil sudaneses tombaram antes de disparar um tiro, os ingleses partiram em perseguição ordenada aos fugitivos. O Mahdi, contudo, teve tempo de reorganizar seus homens (30 mil guerreiros ainda estavam de pé) e tentou cercar os britânicos num movimento de pinça, com um dos destacamentos atacando a retaguarda. Mas, sob fogo pesado de uma defesa segura, outros 7 mil mahdistas foram mortos e tantos outros feridos (muitos deles, alegadamente, executados sob ordens britânicas quando a batalha já estava decidida; observadores viram cadáveres ajoelhados, como se estivessem orando no momento da execução). Menos de 50 britânicos e egípcios foram mortos. O Mahdi ainda escapou para liderar a resistência, esmagada em Umm Diwaykarat, no ano seguinte. O Império Britânico, que efetivamente ainda governava o Egito, garantiu assim a administração conjunta do Sudão.

A guerra no Sudão ocorreu no clímax das disputas coloniais na África. Em 1885, a Conferência de Berlim começou a oficializar, entre as potências europeias, a partilha do continente. A França tinha pretensões de estabelecer colônias numa faixa longitudinal que ia do Senegal até o Mar Vermelho. O Reino Unido pretendia uma faixa latitudinal, começando no Egito e chegando à África do Sul - as duas linhas se cruzavam no Sudão. Quando os mahdistas foram derrotados em Cartum, muitos fugiram para o sul, e os britânicos saíram em perseguição. No caminho, eles surpreenderam um pequeno exército francês vindo do Congo, perto da aldeia de Fashoda, no atual Sudão do Sul. Para a França, controlar o sul do Sudão significaria controlar o Nilo Branco, um afluente navegável do Nilo onde eles poderiam posicionar uma frota de guerra e persuadir os ingleses a deixarem o Egito rio abaixo. A superioridade inglesa na região persuadiu os franceses de abandonarem seu plano (além das forças em terra, havia uma flotilha de guerra britânica subindo o rio).

O Sudão permaneceu sob administração britânica e egípcia até 1955. O território, que incluía os atuais Sudão propriamente dito e o Sudão do Sul, sempre fora tratado como um país só, e a independência foi concedida a essa entidade geopolítica, sem levar em consideração as diferenças étnicas e econômicas marcantes entre as duas regiões. Desde então, o Sudão tem vivido episódios longos e intermitentes de guerras civis com vítimas estimadas em pelo menos 1,5 milhões de pessoas, até a independência do sul em 2011 (o Sudão do Sul, atualmente, vive sua própria guerra civil).

Winston Churchill, futuro Primeiro Ministro britânico durante a Segunda Guerra Mundial, era um dos membros da cavalaria presentes na Batalha de Omdurman. Seu livro The River War: An Historical Account of the Reconquest of the Soudan é uma das principais fontes sobre os acontecimentos da guerra anglo-sudanesa.

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