terça-feira, 22 de setembro de 2015

Salamina

Em 22 de setembro de 480 a.C., grande parte da armada persa empregada na campanha do rei Xerxes contra a Grécia foi destruída por navios gregos na batalha naval de Salamina, ilha próxima ao porto ateniense de Pireu.

Xerxes herdara o trono persa de seu pai, Dario. Também herdara dele o plano de invadir a Grécia e neutralizar a resistência das cidades-estado gregas contra o domínio persa no Mediterrâneo e na Anatólia, onde a sua influência causava tumultos nas cidades helênicas sob controle persa. Depois fincar os pés na Europa tomando o controle sobre a Trácia (uma região periférica da Grécia, que corresponde às atuais porção européia da Turquia e Bulgária), Dario lançou um ataque anfíbio em 490 a.C. tendo Atenas como alvo, mas foi derrotado pelos atenienses na Batalha de Maratona. Ele morreu três anos mais tarde preparando uma nova campanha, deixando para Xerxes a tarefa de trazer o coração do mundo grego para dentro do Império Aquemênida.

Nos sete anos que se seguiram, enquanto consolidava o poder abafando revoltas no Egito e na Babilônia, Xerxes e seus generais construíram a maior máquina de guerra da Antiguidade. Arregimentando soldados em todas as províncias e reinos aliados da Índia até a Líbia, de mercenários citas a aventureiros etíopes e sudaneses, com uma elite de dez mil guerreiros persas especialmente treinados e disciplinados (os Imortais), e mais os operadores de logística - ferreiros, médicos, sacerdotes, batedores, espiões, carregadores, escudeiros, cozinheiros, artífices, cuidadores de animais, construtores de carroças, pontes, armas de cerco e navios - Xerxes reuniu uma força de possivelmente mais de 2,5 milhões de pessoas, mais de 1200 trirremes prontas para combate, e outras 3000 embarcações de transporte. Para se ter uma dimensão desse número, no ano 400, 80 anos depois, a Grécia continental, as ilhas do Egeu, e as cidades helênicas da Anatólia somavam todas 3,5 milhões de habitantes. Heródoto, o historiador que se tornou a principal fonte primária para os eventos da Segunda Invasão Persa à Grécia, dizia que o contingente persa demorava três dias marchando para passar por um lugar, e que eles secavam rios, arrasavam florestas, e arruinavam os víveres das cidades que lhes ofereciam "terra e água" (eufemismo persa que significava sua rendição).

Os gregos, por outro lado, estavam tipicamente divididos entre si quanto à estratégia a ser tomada. A começar pela Beócia, liderada pela cidade-estado de Tebas, que resolveu pragmaticamente se unir aos persas com vistas à aniquilação conjunta de suas principais rivais, Atenas e Esparta. Já os atenienses pregavam uma ação conjunta por mar e por terra com Esparta e seus aliados (apostando na lendária ferocidade dos hoplitas espartanos), mas os espartanos apostavam na construção de um muro no Istmo de Corinto, acreditando que, forçando uma invasão do Peloponeso pelo mar, eles seriam capazes de repelir qualquer ataque. Isso, claro, deixaria Atenas, situada na Ática, vulnerável. A única segurança que os atenienses tinham em relação a Esparta era o fato dos espartanos terem recusado uma oferta anterior de aliança com os persas. Dentro de Atenas mesmo havia discordância quanto ao emprego de resistência em terra ou quanto à construção de uma frota que pudesse parar os persas pelo mar. Um oráculo obtido em Delfos obtido (provavelmente mediante suborno) pelo notável general ateniense Temístocles, de interpretação naturalmente dúbia, falava de uma "muralha de madeira" que salvaria a cidade. Alguns acreditavam ser referência às lanças de freixo dos hoplitas, ou mesmo a confirmação do muro perto de Corinto. Temístocles advogava que as muralha de madeira seriam os navios, e, a despeito das indecisões, começou a empregar seus próprios recursos e obter empréstimos para a construção dos mesmos (o que, apesar de tudo, o levou à ruína mais tarde).

Os persas avançavam praticamente sem oposição. Temístocles e o espartano Euenerus levaram 10 mil gregos para tentar deter os persas no passo do Vale de Tempe, na Tessália. A intenção não era, obviamente, derrotar os milhões de inimigos em batalha, mas atrasá-los tempo suficiente para que seus suprimentos se esgotassem - em virtude da enorme demanda de recursos, tamanho exército precisava se manter em movimento para ter acesso a novas fontes de água e alimento - mas foram alertados pelo volúvel Alexandre I, rei da Macedônia, de que o passo podia ser evitado por pelo menos dois desvios, e os gregos recuaram, entregando a Tessália aos persas. A ideia de tentar bloquear o avanço persa inspirou outros dois movimentos dos aliados gregos: o bloqueio da passagem das Termópilas (os espartanos foram convencidos a muito custo por Temístocles de adiantarem suas forças para além do istmo naquela altura, e mesmo assim, foi praticamente uma iniciativa individual do rei Leônidas), e pelo mar, no estreito de Artemísion. Embora a força espartana tenha detido os persas em Termópilas por uma semana (quase obtendo sucesso em provocar as dissenções desejadas no exército invasor), o bloqueio em Artemísion foi praticamente inútil, pois os navios persas, depois de uma breve batalha, contornaram a ilha da Eubéia pela sua costa oceânica, ignorando os defensores no estreito.

Antes mesmo desses dois últimos reveses, os peloponesos já estavam levantando seu muro, e Atenas havia iniciado a evacuação da cidade pelo porto de Pireu, conduzindo todos os cidadãos com o que pudessem carregar para a ilha próxima de Salamina. Temístocles retornou a tempo com as naus sobreviventes de Artemísion para auxiliar no transporte e tentar organizar alguma resistência. Embora os aliados espartanos tivessem o receio de talvez desperdiçar recursos protegendo Atenas - abandonada e entregue aos invasores - os atenienses conseguiram arregimentar cerca de 370 trirremes, incluindo suas 180 naus. Após o fim da evacuação, as trirremes ficaram estacionadas numa praia de águas calmas protegida por um braço de rochedos que se estende da extremidade sul da ilha em direção ao continente, perfazendo um estreito dividido pela ilha rochosa de Psitaléia no meio do caminho. Ali eles esperaram.

Os persas avançavam com a marinha apoiando as operações em terra e garantindo a segurança das barcaças que transportavam suprimentos e faziam uma linha de abastecimento entre a Ásia e a Grécia. Além disso, a única rota de comunicação e fuga para a Ásia por terra realmente segura era uma ponte provisória montada sobre o Estreito de Bósforo (a alternativa seria contornar pelo norte do Mar Negro passando pelas terras dos indômitos citas). Apesar do poder massivo do exército, a sua permanência na Europa só era viável com o apoio naval. Então o avanço das duas forças precisava ser coordenado. Mesmo com caminho livre, e Atenas desguarnecida e entregue aos saques, os persas avançaram diligentemente acompanhados da marinha, que fazia o longo contorno da Eubéia e finalmente chegava à Ática, pelo menos duas semanas depois de passarem por Termópilas, mais ou menos 200 quilômetros ao norte. De fato, os persas tomaram Atenas, destruíram e saquearam o que fora deixado para trás. Eles sabiam que os atenienses haviam se refugiado em Salamina, e esperaram talvez alguns dias até que a marinha estivesse em posição para um ataque. Xerxes montou um palanque num morro próximo ao Pireu, de onde assistiria a vitória da sua poderosa armada.

Porém, o que os persas não haviam se dado conta era da vantagem que a posição grega oferecia. De onde Xerxes tinha visão, e do ponto de vista dos capitães que vinham do leste e do sul, era impossível ver o que se passava além dos rochedos do estreito de Salamina, como a posição, a disposição, e o número de naus defensoras. Estavam tão confiantes nos seus números (apesar de perdas consideráveis em Artemísion, Xerxes colocara possivelmente mais de mil naus em posição de combate em Salamina), e na habilidade dos capitães fenícios, que constituíam o principal corpo da marinha persa. Os persas acreditavam que a intrusão massiva de navios em Salamina provocaria um movimento de fuga, que seria bloqueada do outro lado da ilha pelos navios egípcios, esmagando a frota ateniense completamente. Essa disposição era algo quase pessoal para Xerxes, pois foram os atenienses que comandaram a embaraçosa derrota em Maratona anos atrás, e eram a força política que comandava a resistência grega. Mais do que destruir colunas e paredes de pedra, era preciso aniquilar sua força militar e colocar seu povo sob jugo. Não era realmente necessário, do ponto de vista da conquista da Grécia, enfrentar os atenienses encurralados em Salamina . A rainha Artemísia de Halicarnassos, cidade grega asiática aliada aos persas, tentou persuadir Xerxes a seguir em direção ao Peloponeso, mas foi voto vencido.

Heródoto não presenciou o que aconteceu em Salamina. Ele era uma criança pequena em Halicarnasso quando aconteceu, e procurou recontar da forma mais coerente possível as diferentes versões de que ouviu falar. O célebre poeta Ésquilo era um dos remadores das 180 naus atenienses envolvidas na batalha, mas mesmo ele tinha a visão limitada pela própria estrutura do navio (os remadores eram protegidos pela amurada das trirremes e não viam quase nada). Talvez apenas Xerxes, vendo do alto a entrada do estreito, tenha conseguido uma visão mais clara de como a batalha se desenrolou.

A primeira coisa que deve ter chamado a atenção do rei ao nascer do sol do dia 22 foi o movimento das naus coríntias para o norte, em direção ao estreito de saída do canal do outro lado da ilha. Provavelmente imaginando que os gregos estavam tentando uma fuga, ordenou o avanço da vanguarda fenícia e da retaguarda egípcia. Mas ao entrar pelo estreito, os fenícios, desfazendo sua formação para navegar praticamente em fila pelo estreito, devem ter ouvido o peã, ou hino de guerra, cantado a plenos pulmões, vindo da praia à sua esquerda e possivelmente puxado por Temístocles:

"Oh, filhos dos gregos, adiante
Libertem seu país, libertem
Seus filhos, suas mulheres, o lar dos deuses dos seus pais,
E as tumbas de seus antepassados: agora lutem por todas essas coisas!"

As batalhas navais no Mediterrâneo daquele período constituíam basicamente de navios com aríetes em suas proas tentando abalroar navios inimigos para levá-los a pique, ou destruindo seus remos para imobilizá-los, sendo a abordagem e a luta corpo a corpo utilizadas apenas como último recurso. As naus gregas estavam alinhadas em perfeita ordem ao longo da enseada, de maneira que quando os navios inimigos vinham pelo estreito, surgiam oferecendo seu flanco aos defensores. Além da posição inicial de combate extremamente vantajosa, o estreito permitia a passagem de poucas trirremes de cada vez, neutralizando a vantagem numérica dos persas. Atenienses avançando pela esquerda, espartanos e demais lacedemônios pela esquerda, e demais aliados pelo centro, fulminavam os navios inimigos com seus esporões. Os capitães fenícios reagiram rapidamente, e manobraram seus ágeis navios de volta para o estreito.

Contudo, como fora do estreito era impossível ver o que se passava, as fileiras persas continuavam em movimento. Em alguns momentos, aliados abalroaram aliados, ora confundindo-os com inimigos, ora falhando em evitar uma colisão, ora tentando abrir caminho para sua própria fuga. Um irmão de Xerxes, o almirante Ariabignes, foi morto. Artemísia, comandando pessoalmente a frota grega da Cária, atacou naus persas para fugir da perseguição de uma trirreme ateniense (possivelmente para confundir os defensores sobre a sua lealdade em combate). Xerxes, observando Artemísia, teria pensado que ela afundava navios inimigos, afirmando "Meus homens se tornaram mulheres, e minhas mulheres, homens." Quando os persas conseguiram viabilizar uma rota de fuga, navios da cidade de Egina partiram em perseguição e afundaram tantos quantos puderam alcançar, enquanto Aristides, general ateniense, desembarcou uma tropa em Psitaléia para aniquilar uma guarnição persa na ilha. Entre 300 e 600 navios persas foram afundados (e a perda de vidas por afogamento foi imensa, pois os persas eram cavaleiros das estepes, não marinheiros), enquanto apenas 40 navios gregos se perderam. Os persas recuaram para o outro porto ateniense de Faleron. Os egípcios, que esperavam as naus em fuga na outra ponta da ilha, desses não se tem certeza do que aconteceu (é possível que os coríntios os tenham afundado, ou que tenham debandado com a notícia da derrota)

Ao final do dia, vendo tudo do seu palanque sobre a rocha, Xerxes, enfurecido, teria ordenado a decapitação dos capitães fenícios (causando a deserção da marinha fenícia de volta à Ásia) e punições condizentes aos demais. No primeiro momento ele teria ordenado a construção de uma ponte ligando o continente a Salamina, mas isso seria impossível agora que Atenas tinha o controle sobre o mar. À noite, conferenciando com seus generais, Mardônio, um dos seus principais comandantes, sugeriu que Xerxes regressasse à Ásia com o grosso do exército, onde ele poderia reagrupar e se preparar para a próxima campanha quando o inverno passasse, enquanto ele mesmo ficaria no comando de um destacamento para consolidar a presença persa nos novos territórios conquistados. Na verdade, havia receio de permanecer com o exército na Grécia durante o inverno correndo o risco de desabastecimento, e medo de que os atenienses, agora em vantagem no mar (os navios em Salamina totalizavam agora cerca de 330, contra cerca de 300 remanescentes persas), pudessem cortar as linhas de abastecimento pelo Egeu e destruíssem a ponte no Bósforo. Assim, Xerxes foi embora o mais rápido possível para nunca mais voltar, e Mardônio recuou para a segurança da colaboracionista Eubéia.

A vitória grega em Salamina seguramente mudou a História. Uma guerra virtualmente impossível de ser vencida havia virado agora a seu favor. A Grécia, ou ao menos a parte sul, estava segura e com a moral em alta. Menos de um ano depois, vitórias simultâneas nas batalhas de Platéia e Micale eliminaram a presença militar persa na Grécia continental e no Mar Egeu. A importância do resultado em Salamina para o mundo como nós conhecemos é incalculável, porque o desenvolvimento do mundo ocidental, cuja rocha-matriz cultural é o helenismo - e suas noções de organização política, cidadania, sociedade, liberdade - cujos principais centros de influência, Atenas e Esparta, estavam marcadas para serem obliteradas pelos persas, teria sofrido uma influência enorme do modelo civilizatório persa, e tomado direções muito distintas. Talvez o cristianismo, sem o arcabouço filosófico do platonismo e sem o substrato religioso "pagão" relativamente volúvel às novas crenças, tivesse ficado restrito à Palestina, e hoje estivéssemos celebrando nossos atuais reis divinos usando o persa, não o inglês ou o latim, como língua franca?

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