sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O Açougueiro de Lyon

Em 25 de setembro de 1991, faleceu de leucemia Nikolaus "Klaus" Barbie, ex-agente da Gestapo e ex-colaborador da CIA, enquanto servia uma sentença de prisão perpétua em Lyon, na França.

Klaus Barbie era filho de um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial, também chamado Nikolaus. Aparentemente, os combates na França, os ferimentos e a prisão do velho Nikolaus o deixaram transtornado, tornando-o violento e abusivo. Ele também era professor da escola onde estudava o jovem Klaus, submetendo-o a constrangimentos em público. Isso não está documentado, mas é possível que, inconscientemente, a imagem do pai transformado pela guerra na França tenha conduzido Klaus pelo caminho que o levou à chefia de inteligência da Gestapo em Lyon, e seus atos contra a resistência francesa (os Barbie aparentemente descendem de imigrantes franceses fugidos da Revolução).

Antes da guerra, depois de abandonar os estudos e desempregado, Klaus Barbie foi recrutado para trabalhar para o Partido Nazista, numa espécie de serviço civil compulsório (o Reichsarbeitsdienst), de onde, devidamente treinados na doutrina nazista, os jovens eram então enviados para servir nas forças armadas, até então um reduto tradicionalmente conservador e apartidário. Barbie acabaria se alistando no serviço de inteligência do partido vinculado à Gestapo, a SD, onde receberia treinamento de interrogatório, e, finalmente filiando-se ao Partido Nazista.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Barbie atuou na Holanda, localizando e prendendo judeus, maçons e emigrantes alemães (a maior parte procurada por crimes políticos). Um incidente entre um nazista holandês e um trabalhador do porto levou a SD a fazer uma operação de busca e apreensão no setor judeu de Amsterdam, resultando na prisão de 425 judeus. Barbie ficou encarregado da operação e dos interrogatórios conduzidos à base de torturas físicas. 389 deles foram enviados ao campo de concentração de Buchenwald (o destino dos restantes é nebuloso, podem ter sido soltos, ou podem nunca ter saído com vida de suas celas). Após um ataque da resistência holandesa a um clube de oficiais, Barbie jurou que os judeus pagariam por aquilo: ele foi ao Concelho Judaico de Amsterdam e convenceu os diretores a lhe fornecerem uma lista de 300 nomes de jovens judeus, com o pretexto de reuni-los e encaminhá-los para completar sua formação profissional. Todos os 300 foram presos e enviados ao campo de Concentração de Mauthausen, onde morreram meses depois. Um preso levou um tiro na cabeça ao pedir para ouvir música americana.

A Holanda e a França foram conquistadas por braços de uma operação conjunta, que se enraizavam num núcleo administrativo comum. Assim, Barbie foi realocado para o front francês em 1942. O norte da França acabara de cair sob domínio alemão, e a SD montou uma base de operações em Lyon, com o objetivo novamente de localizar e prender judeus, comunistas, e pessoas envolvidas na Resistência Francesa, guerrilha que impedia o avanço nazista mais ao sul. Em Lyon, operando no Hotel Terminus e na École de Sante Militaire, Barbie, aos 29 anos, chefiava um núcleo com 25 oficiais sob suas ordens.

Seu primeiro troféu foi a captura de Jean Moulin, um dos principais líderes da Resistência, em 1943. Barbie o espancou até cansar, colocou agulhas incandescentes sob suas unhas e fechou uma porta em seus dedos até se quebrarem todos. Seus punhos foram amarrados com correntes que eram apertadas até penetrarem na sua carne e quebrarem seus ossos. Quando o barbeiro da prisão foi cortar o seu cabelo, encontrou Moulin estirado num banco, semi-morto, com o rosto transformado em uma massa ensanguentada (perturbado, o barbeiro tomou o maior cuidado possível para fazer seu serviço sem tocar nas suas feridas). Morreu dias depois. Pela prisão de Jean Moulin, Barbie recebeu uma condecoração de Hitler.

Raymond Aubrac foi preso com outros sete membros da Resistência, mas sobreviveu às sessões de tortura de Barbie. O que o deixava mais confuso é que Barbie não fazia perguntas, nem sequer perguntara seu nome ou se era judeu, apenas o surrava incansavelmente com uma variedade de métodos e instrumentos. Aubrac foi salvo por uma operação de resgate liderada por Lucile, sua esposa grávida de seis meses. Alegando que a justiça francesa dava direito a um condenado à morte de contrair matrimônio na prisão com uma mulher que estivesse esperando filho seu, ela conseguiu entrar na prisão e alertar Raymond do ataque que seria feito ao caminhão que o transportaria para fora dali. Ela mesma conduziu a emboscada, que matou 5 oficiais e libertou 13 presos.

Outra vítima foi Lisa Lesevre, presa por supostamente conhecer um certo "Didier", membro da Resistência expecialista em cartas-bomba. Por dezenove dias ela foi torturada com castigos físicos enquanto estava acorrentada ao teto pelos pulsos por Barbie e quatro assistentes, inclusive um certo Gueule Tordue ("Boca Torta"), um homem corpulento e com a cabeça deformada por um acidente de carro digno de um filme de terror. Toda vez que ela desfalecia, um médico a reanimava, e ela encontrava seus torturadores bebendo e rindo, como se nada tivesse acontecido. E as torturas recomeçavam. Em certo momento, foi despida, acorrentada pelas pernas e mergulhada numa banheira de água gelada, e enquanto não falasse, a corrente era puxada e ela ficava presa debaixo d'água apenas tempo suficiente para não morrer afogada. Quando era deixada de lado, era forçada a assistir à tortura de outros presos, ou ver seus cadáveres (Barbie virava seus rostos para talvez tentar reconhecer algum judeu, e depois os esmagava com o salto de sua bota). Nos últimos dias, Lasevere foi amarrada no chão de bruços, enquanto Gueule Tordue (ou, segundo ela mesma dava a entender, o próprio Barbie) a golpeava com um mangual (uma bola de metal com espinhos preso a um bastão por uma corrente) até quebrar a sua espinha. Quando ela despertou mais uma vez, Barbie a felicitou por ter resistido tanto, "... mas no final, todo mundo fala.". Como ela resistia, a mandou para a execução em outra localidade. Ela acabou sendo levada por engano ao campo de concentração de Ravensbruck, de onde foi resgatada com vida no fim da guerra. Seu marido e seu filho adolescente, que não eram judeus ou comunistas, foram mortos em campos de concentração. Lasevere nunca denunciou a identidade de "Didier".

Simone LaGrange foi capturada com seus pais exatamente no dia D e trazida à presença de Barbie. Ele acariciava um gato em seu colo, e cumprimentou cada um dos LaGrange educadamente, dando um puxão carinhoso na bochecha de Simone. Sua mãe contou a Barbie que ela ainda tinha dois outros filhos, mas não sabia onde estavam. Então, ainda segurando o gato, ele golpeou a menina na frente dos pais, e ordenou a prisão dos três em celas separadas. Ele pessoalmente torturava cada um deles. Simone foi jogada no chão, esmurrada e chutada repetidamente (e nos sete dias seguintes, chutada nos lugares onde haviam feridas abertas), até entregar a identidade dos irmãos. Depois foi devolvida à mãe ("Isto é o que a senhora fez à sua filha"). A família LaGrange foi enviada a campos de concentração. Simone foi a única a sobreviver após um ano de trabalhos forçados - sua mãe foi morta numa câmara de gás, e o pai morto por um soldado com um tiro na cabeça bem à sua frente.

Outra vítima fatal, porém não confirmada por documentos oficiais, teria sido a de um líder da Resistência em Lyon, surrado, esfolado vivo e a cabeça descarnada mergulhada num balde de amônia. Morreu minutos depois.

Antes do desembarque aliado na Normandia e do abandono das bases nazistas na França, Klaus Barbie localizou um orfanato em Izieu que abrigava 44 crianças judias de 3 a 14 anos. Em carta ao quartel-general da Gestapo em Paris, Barbie escreveu que todas as crianças e os funcionários do orfanato (dez no total) foram presos, depois deportados para Auschwitz. Com a evacuação de Lyon, Barbie foi realocado para o front ocidental, mas fugiu dos combates de volta para a Alemanha. Escondido, ocultou sua identidade e se tornou um mendigo errante pelas estradas até ser preso e identificado por uma patrulha americana perto de Hohenlimburg.

Neste momento, o leitor mais otimista, acostumado com o destino dos vilões dos filmes, esperaria que Klaus Barbie fosse finalmente conduzido a julgamento e recebido punição condizente por seus crimes. Mas a História às vezes segue por caminhos sinistros.

Com o fim da Guerra e o avanço soviético sobre a Europa Oriental e parte da Alemanha, os Estados Unidos e o Reino Unido temiam que o comunismo se propagasse pela Europa Ocidental, especialmente na França, então sob controle da Resistência. Decididos a sabotar a ação de células comunistas, os americanos constituíram uma agência de contrainteligência (o CIC) para identificar seus membros. Um dos agentes contratados pela sua experiência em espionar comunistas na França, e que vinha trabalhando desde 1946 a serviço dos britânicos nessa função, foi ninguém menos que Klaus Barbie.

Não é o caso de Barbie estar usando uma identidade falsa, ou não ser suficientemente conhecido e contratado oportunamente sob disfarce, ou não se soubesse do que havia feito a serviço dos nazistas. Ele era bem conhecido, e os antigos Aliados sabiam de quem se tratava, da sua capacidade de trabalho e dos seus métodos. Outros nazistas que espionavam atividades comunistas, como Alois Brunner e Reinhard Gehlen, também trabalharam para o CIC. Tanto que a justiça francesa já o havia condenado à morte por uma série de crimes já confirmados in absentia. Quando os franceses o descobriram em 1950, a CIA providenciou a sua fuga para a Bolívia, possivelmente com a colaboração da mesma rede de ex-nazistas que ajudou nazistas notórios a fugirem no anonimato, como o próprio Brunner (foragido e possivelmente morto na Síria), Josef Mengele, Gustav Wagner e Aribert Heim (também foragido). Tendo permanecido oculto no país sob proteção da CIA (usava o nome de "Klaus Altmann"), foi contratado sob o codinome "Adler" pelo próprio serviço secreto da Alemanha Ocidental nos anos 1960 para espionar comunistas no exterior. Mesmo enquanto não estava em serviço, a identidade de Barbie era protegida para evitar o constrangimento para os Estados Unidos de tê-lo recrutado em algum momento, e Barbie capitalizou sobre esta situação.

Em 1964 um golpe militar apoiado pela CIA colocou no poder alguns nomes com quem Barbie havia estabelecido boas relações. A Bolívia havia passado por uma década de grandes reformas de tendência socialista (uma ampla reforma agrária e a nacionalização de minas de estanho), e o novo regime conservador as paralisou completamente. A aura "imperialista" sobre a Bolívia atraiu a atenção do guerrilheiro Ernesto "Che" Guevara. Che já havia se afastado da Revolução Cubana, e falhou em organizar uma milícia socialista no Congo. Na Bolívia, sob o pseudônimo de Adolfo Mena González, conseguiu arregimentar 69 guerrilheiros para iniciar um movimento para a derrubada do atual regime. A CIA realizou operações conjuntas com o governo boliviano para eliminar a guerrilha, mas Che continuava evasivo. Klaus Barbie, com sua experiência de inteligência contra-guerrilha, então entrou em ação para localizá-lo e organizar a caçada que resultou na sua morte, em 1967. "Este pobre homem", teria dito, "não teria sobrevivido se tivesse lutado na Segunda Guerra Mundial."

Enquanto isso, judeus sobreviventes da Guerra e filhos de vítimas do nazismo se organizavam em diferentes grupos de "caçadores de nazistas", levantando informações que levavam à localização de oficiais nazistas foragidos pelo mundo. Em 1971 surgiram indícios de que Barbie estava na Bolívia, e em 1973 ele escapou de uma tentativa de sequestro por antigos companheiros de Che, que pretendiam entregá-lo às autoridades chilenas, e de lá para a França (o grupo foi localizado e morto antes por forças bolivianas). Em 1980 ele teria tomado parte no golpe militar que levou o general Garcia Meza ao poder (num golpe apelidado posteriormente de "Golpe da Cocaína", porque teria sido financiado com dinheiro do tráfico de drogas). Barbie teria recrutado companheiros da Gestapo como mercenários a serviço da junta militar. Com o fracasso do golpe e o enfraquecimento do poder dos militares bolivianos, Siles Suazo, cujo partido havia obtido maioria antes do golpe de 1980 e esperava-se que assumisse a presidência então, foi efetivado em 1983. Sabendo das atividades de Barbie, mandou prendê-lo e extraditá-lo para a França.

Barbie (apresentando-se como Altmann) foi levado a julgamento em Lyon, certo de que, como Klaus Altmann, não haveria como provar as acusações de crimes de guerra. Mas as acareações com suas vítimas, como LaGrange, Aubrac, Lesevre (que obteve licença da côrte para testemunhar sentada devido à lesão na coluna, mas, aos 86 anos, fez questão de fazê-lo de pé), e outros, confirmaram sua identidade. Em 1987, aos 74 anos, foi considerado culpado em 341 acusações, e condenado à prisão perpétua. Estima-se que, pelas suas mãos ou por ordens diretas suas, algo entre 4 mil a 14 mil pessoas tenham sido mortas.

Se não fossem os caçadores de nazistas franceses desencadeando o processo, é possível que Klaus Barbie tivesse tido uma velhice tranquila, e talvez fosse lembrado (como Klaus Altmann) como um herói da civilização ocidental. Não como o "Açougueiro de Lyon".

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