terça-feira, 29 de setembro de 2015

O Aquemênida

Em 29 de setembro de 522 a.C., um golpe de Estado da Pérsia Aquemênida resulta na morte de Smerdis e na coroação de Dario como Rei dos Reis. Todo o processo é até hoje motivo de discussão, visto ter sido registrado a mando do próprio Dario, e repassado gerações depois por Heródoto e outros cronistas gregos, sem preocupação nem recursos para conferir suas fontes.

A Pérsia, sob o governo do clã Aquemênida, emergiu como um poder dominante no Oriente Médio por volta de 550 a.C., quando Ciro II conquistou o reino rival dos medas (tribo irmã dos persas que dominou o Irã por algumas décadas) e avançou para construir o maior império já visto então, incorporando o modo de vida, os costumes, as leis, a escrita, e as tradições religiosas das antiquíssimas civilizações do Oriente Médio e da Anatólia (friso "antiquíssimas", porque, no tempo de Ciro, a tradição civilizatória da Mesopotâmia já era mais antiga para ele do que seu império é para nós hoje). Seu filho Cambises II contribuiu para expandi-lo conquistando o Egito. Este Cambises morreu em 522 a.C., aparentemente de causas naturais (supõe-se que ele fosse epiléptico), três anos após ser coroado faraó. E é aí que a história fica confusa.

Cambises tinha um irmão mais novo, Smerdis (ou Bardiya, ou Gaumata, dependendo da fonte e da versão aceita dos acontecimentos). Em algumas versões, este Smerdis era "protegido" (ou seja, vivia em clausura no palácio real em Persépolis, ou em Susa), ou então teria sido nomeado sátrapa de alguma satrapia no oriente. As fontes parecem concordar que Smerdis, de qualquer maneira, não era um rosto muito conhecido pelo seu povo, nem pela própria corte (alguns familiares de Cambises mesmo talvez não o conhecessem). Fosse como fosse, quando Cambises morreu no Egito, uma conspiração palaciana de magos (tribo ou casta de sacerdotes zoroastrista) prontamente anunciou Smerdis como sucessor. O reinado de Cambises foi particularmente cruel, não apenas nos seus atos pessoais (boatos sobre seu comportamento mais à frente), mas também quanto aos altos impostos para custear sua expedição ao Egito e sua incorporação ao sistema administrativo persa. Quando Smerdis subiu ao trono, sua primeira promessa foi de abolir os impostos pelos próximos três anos.

A versão de Dario desta história está registrada na magnífica inscrição de Behistum, encontrada na escarpa rochosa de uma montanha no oeste do Irã. Ali Dario acusa Smerdis de ser um impostor, um mago chamado Gaumata, que governou ilegitimamente por sete meses antes de ser assassinado por uma conspiração de aquemênidas, da qual fazia parte. Um ano depois, um segundo impostor, outro mago chamado Vahyazdata sob a identidade de Smerdis, também teria sido assassinado. Já segundo Heródoto (que reuniu e avaliou tudo que ele "ouviu falar" sobre os persas na Babilônia no Egito cerca de um século depois), após o assassinato do falso Smerdis, Dario teria sido escolhido entre os conspiradores como novo rei, adquirindo automaticamente a legitimidade da casa reinante.

Há alguns problemas com a tese de um falso Smerdis (principalmente, de dois falsos Smerdis). A favor da tese tem o fato de Dario e seus comparsas serem aquemênidas, ligados em maior ou menor grau à família de Ciro e Cambises (Dario era um primo de terceiro grau do último rei, e, portanto, do verdadeiro Smerdis), e deveriam ter alguma familiaridade que tornasse possível reconhecer o verdadeiro Smerdis de um impostor. Se um artesão qualquer gritasse contra o novo rei acusando-o de não ser quem dizia que era, ninguém lhe daria crédito, e ele seria provavelmente morto onde estivesse. Mas se um aquemênida como Dario, ou seu colega Otanes (a quem se atribui a acusação contra Smerdis) levassem esta denúncia a público, seriam vozes mais confiáveis. A oposição a Dario nas ricas satrapias da Babilônia e do Elão (e a coroação de um segundo Smerdis) que se seguiu podem ter sido reflexos da promessa de Smerdis de não recolher impostos. As duas rebeliões foram debeladas em poucos meses após a captura e execução de seus líderes, o que mostraria um caráter oportunista mais do que legalista de ambas. Na corte, a própria família de Smerdis nunca contestou a posição de Dario. De fato, ele se casou logo em seguida com sua irmã, Atossa, que em algum momento poderia ter se manifestado a respeito.

Como as fontes mais prolíficas sobre Dario vêm da Grécia (escritas exclusivamente depois que os persas, considerados "bárbaros", invadiram e foram expulsos de lá), as evidências da ilegalidade do seu movimento são mais numerosas. Eles levantam a dúvida sobre a conspiração dos magos. Entre os Aquemênidas, era costume as pessoas comuns não olharem diretamente para o rosto dos seus soberanos, fossem eles o rei, um príncipe, ou um sátrapa, de maneira que não eram todos os que conviviam com Smerdis que saberiam inequivocadamente reconhecê-lo de vista. Um homem de porte semelhante e ostentando as regalias imperiais poderia se passar por um príncipe, com a colaboração dos poucos que pudessem reconhecer entre o verdadeiro e o impostor. O Smerdis coroado rei poderia ter sido o verdadeiro, e Dario teria se aproveitado do momento político turbulento provocado pela ausência prolongada de Cambises no Egito para tomar o poder, deixando em dúvida a real identidade do Smerdis assassinado. Esse tumulto político, Heródoto dá a entender baseado no que ouviu falar no Egito, acentuado pela personalidade problemática de Cambises, afeito a explosões de violência, como quando teria espancado a esposa grávida até a morte, e decisões equivocadas, como uma expedição à Núbia que nunca chegou ao seu destino. Há quem sugira que o verdadeiro Smerdis tenha sido realmente assassinado antes a mando do próprio Cambises em um acesso de loucura, ou depois. Dario teria até trapaceado para ser escolhido entre os sete conspiradores para assumir o trono (com a ajuda de um escravo, ele teria "criado" um presságio divino apontando para a sua indicação no momento decisivo). Ele teria apaziguado revoltas generalizadas nas províncias apenas com a ajuda do exército, liderado pelos seus comparsas e seus parentes (o próprio Dario se vangloriava de ter matado "oito reis mentirosos" que se levantaram naquele momento). Dario ainda executou um dos seus comparsas, Intarfenes, junto com a maior parte da sua família, por ele ter desafiado uma instrução específica do novo rei quanto a visitas ao seu palácio.

Legitimamente ou não, a ascensão de Dario proporcionou vida longa ao regime aquemênida. Um homem astuto, domou possíveis rivais com regalias, cargos acima das suas aspirações ou cargos tão próximos que uma falha não passaria despercebida, ou pelo o sequestro de seus bens ou parentes (o palácio de Ecbátana era povoado de filhos e filhas de nobres persas). Também cercou-se de pessoas capazes nomeando-as para cargos administrativos importantes. Reorganizou o sistema administrativo, monetário e tributário, padronizando pesos, medidas e valores (usando as moedas inventadas na Lídia duas ou três gerações antes) a serem arrecadados, de maneira que ele tinha o controle sobre a economia do império e sobre possíveis atividades ilícitas de seus sátrapas, e estes do seus respectivos governadores. Adotou a política inaugurada por Ciro de preservar os aspectos culturais e religiosos dos povos sob seu poder para garantir seu apoio, com uma exceção na Babilônia, onde ele depôs o rebelde Nabucodonozor III, que seria seu rei legítimo, e declarou que o país não teria mais um rei (Ciro havia coroado a si mesmo Rei da Babilônia quando conquistou a cidade, e Dario aboliu este título). Para controlar melhor um território tão vasto, que no final do seu governo ia do Vale do Indo, no Paquistão, até o leste da Europa, ele desenvolveu e consolidou as antigas estradas que ligavam as principais cidades do império, estabelecendo também pontos de pouso, onde cavalos eram permanentemente cuidados para serem usados por mensageiros em viagem, permitindo a rápida comunicação dentro do império persa (um sistema tão eficiente que seria emulado várias vezes no futuro, inclusive nos Estados Unidos, antes do advento das locomotivas a vapor). As mensagens também eram distribuídas em aramaico, língua franca usada pelos comerciantes do Oriente Médio, e em escrita cuneiforme adotada universalmente naquela parte da Ásia. Além disso, o império tinha várias capitais com chancelarias que respondiam diretamente a Dario (Persépolis, Ecbátana e Susa, além de capitais regionais como Sardes, Babilônia e Mênfis). Também construiu palácios, jardins, templos dedicados a deuses locais, e um canal navegável ligando o rio Nilo ao Mar Vermelho.

Dario expandiu o poder persa para a Europa, após uma campanha para subjugar os nômades citas que habitavam o norte do Mar Negro. Construindo uma ponte provisória sobre o Estreito de Bósforo com barcaças amarradas com cordas, tomou a Trácia, atual parte européia da Turquia e a Bulgária, como base de operações. Na Anatólia, atual Turquia asiática, ele consolidou o controle sobre as cidades gregas no litoral, e, incentivado por conselheiros vindos dessas cidades e da Grécia continental, começou a cobiçar a própria Grécia. Tumultos na parte final do seu reinado nas cidades helênicas (o incêndio de Sardes, capital da rica satrapia da Lídia, foi atribuído a rebeldes gregos) foram a desculpa para sua tentativa de invasão da Grécia, repelida de maneira dramática na Batalha de Maratona em 490 a.C.. Seu filho Xerxes daria seguimento ao seu plano de conquista da Grécia dez anos mais tarde.

O reinado de Dario, como já foi dito, foi recontado sob diversos ângulos principalmente por cronistas gregos, que não nutriam muita simpatia pelos persas (embora pelo menos um deles, Xenofonte, tenha lutado como mercenário no exército persa). Por mais que muitos tenham tentado dar um tom histórico ao personagem, a maior parte do que se conhece sobre Dario parte de conjecturas e indícios obtidos dessas fontes, porque nelas mesmas, ele e seus antecessores aparecem em cores fantásticas. Uma versão fictícia moderna, mas deliciosamente florida de Dario está no romance do escritor americano Gore Vidal, "Criação".

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