sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O canto do cisne do Império Romano

O dia 4 de setembro de 476 é a data oficial da queda do Império Romano do Ocidente. Neste dia, o general Odoacer tomou Ravena, último bastião imperial na Itália, e depôs o jovem imperador Rômulo Augusto, proclamando a si mesmo Rei da Itália. Mas o que é tradicionalmente transmitido como marco de fronteira na linha histórica - o início da Idade Média - representou, na verdade, uma transição relativamente lenta e confusa.

Roma passou por um longo declínio que pode ser detectado a partir do século III, período de repetidas crises de produção, agitações sociais e tumultos políticos. Há quem diga que Roma não deixou de existir já naquela época porque, fora das suas fronteiras, os povos germânicos e o Império Parta também sofriam do mesmo mal (o século III também se manifestou em graves crises na China que levaram à dissolução do Império Han, fazendo crer que algum fator sistêmico afetou toda a Eurásia de alguma forma mais ou menos ao mesmo tempo). Sob a ampla reforma administrativa do Imperador Diocleciano, que dividiu a administração em Ocidente (centrado em Roma) e Oriente (com capital em Bizâncio/Constantinopla), o Império Romano conseguiu se reerguer por um tempo. Mas as crises não tardariam a enfraquecer o Império, sobretudo a metade ocidental, sob forte pressão de povos germânicos empurrados para suas fronteiras pelas hordas de hunos que vinham do leste. Os romanos cederam territórios para várias tribos germânicas, esperando conseguir incorporá-las a si mesmos e garantir sua pacificação.

O Império Romano que Rômulo Augusto herdou era meros fragmentos do que já fora um dia. Sob a autoridade imperial estavam apenas a Itália, a Dalmácia, a Sicília (nem toda), e a Neustria (grande parte do norte da Gália). Roma sequer era a capital administrativa do Império desde fins do século IV, tendo o imperador e o senado se transferido para Ravena. Em 476, a cidade de Roma era habitada por cerca de 50 mil habitantes, dez vezes menos do que fora 200 anos antes, ocupando esparsamente os edifícios mantidos em pé, cercados por ruínas, vinhas e praças abandonadas e cobertas de mato. O Império do Oriente, àquela altura, tratava o Ocidente como um Estado-cliente, cujos últimos imperadores haviam sido nomeados por Constantinopla. O pai de Rômulo, Orestes, que serviu entre os hunos como diplomata de Átila, foi nomeado comandante em chefe, Magister militum, pelo então imperador Júlio Nepos em 475, e logo depois comandou uma rebelião que capturou Ravena. Nepos fugiu para a Dalmácia. Orestes recusou o cargo para si, mas nomeou seu filho, de 14 anos, colocando-se como seu representante e guardião.

O exército romano estava sob o controle de antigos guerreiros germânicos. Odoacer, cuja origem étnica é incerta (poderia ser germânico, talvez huno ou proto-turco, mas certamente não era romano), era um general. O problema é que ele era leal a Júlio Nepos.

Quando Rômulo assumiu o trono, mercenários germânicos (foederati) exigiram que ele lhes entregasse um terço das terras da Itália. Com a recusa, esses foederati, liderador por Odoacer, capturaram e executaram Orestes em Piacenza, e marcharam para Ravena. Praticamente sem defesas, pois os soldados e guardas que restavam deviam pouca ou nenhuma lealdade a Rômulo, a cidade caiu com facilidade. Preso, o jovem imperador se vu forçado a entregar a coroa ao seu captor.

É neste ponto que os livros de História costumam terminar um capítulo. O problema todo é que Odoacer, ao contrário de tantos outros usurpadores antes dele, não queria ser Imperador.

O senado romano foi preservado. Odoacer não apenas o preservou, como também manteve ativas instituições senatoriais que há muito já não tinham função prática, como cargo de cônsul (há séculos uma relíquia da República Romana), e nomeava senadores romanos para este e outros cargos. Odoacer enviou senadores a Constantinopla para requisitar ao Imperador Zenon a unificação do Império ("Apenas um imperador basta para governar o mundo"). Talvez perplexo, Zenon concedeu a Odoacer o título de patrício (a classe mais alta da sociedade romana) e o governo da Itália, mas determinou que mantivesse sua lealdade a Júlio Nepos, que ainda estava vivo e governava uma boa faixa de terra na Dalmácia (onde hoje estão Croácia e Bósnia Herzegovina). Odoacer, contudo, não recolocou Nepos no trono e assumiu o reinado sobre a Itália, enquanto o imperador romano legítimo ainda governava uma das antigas províncias. Além deles, Flávio Siágrio, comandante militar da Gália, mantinha o que restava dela nominalmente sob controle romano, embora não necessariamente leal a Nepos. Na África, os mauros, povo nativo da Argélia e antigo cliente de Roma, mantinham um Estado organizado nos moldes romanos e independente do novo reino vândalo na região, e eventualmente solicitariam reconhecimento do Imperador bizantino Justiniano I como herdeiros legítimos do Império do Ocidente. O próprio Império Bizantino existiu como "Império Romano", tanto como autônimo, como também na diplomacia internacional, de maneira que, aos observadores medievais, o Império Romano, em última análise, nunca deixou de existir (de fato, "Império Bizantino" surge na literatura para se referir ao Império Romano do Oriente apenas no século XVI). Isso sem falar no Sacro Império Romano, que existiu desde o século X até o século XIX.

Quando Júlio Nepos foi assassinado em 480, Odoacer anexou a Dalmácia ao seu território enquanto perseguia os assassinos. Ninguém se importou em procurar Rômulo - cujo paradeiro depois de entregar a coroa a Odoacer é incerto, mas aparentemente foi mandado para seus parentes na Campânia - para suscitar uma rebelião contra o rei bárbaro. Nem sequer houve um movimento para restaurar Júlio Nepos enquanto este esteve vivo. De fato, Odoacer foi tão decidido e prático na administração da Itália, atento às demandas locais, que seu reinado pareceu satisfatório a quase todo ex-cidadão romano, cuja lembrança naquela altura era de imperadores fracos e vaidosos e de desleixo com a administração pública. Isso atraiu a atenção de Zenon, contra quem, aparentemente, Odoacer estaria conspirando.

Zenon convocou Teodorico, rei dos ostrogodos. Esses ostrogodos também eram empregados como foederati por Constantinopla, mas sua cultura guerreira e sua insubordinação estavam se tornando um problema. Zenon lhes prometeu a Itália em troca da cabeça de Odoacer. Durante cinco anos os ostrogodos arrasaram a península, mas não conseguiam chegar a Odoacer, e nem o rei conseguia expulsá-los. Em 493, enfim, Odoacer e Teodorico chegaram a um acordo em que reinariam conjuntamente. No banquete de celebração, os homens de Teodorico mataram Odoacer, e o próprio rei ostrogodo partiu seu corpo ao meio. Os ostrogodos estabeleceram seu poder na Itália, até que, na época de Justiniano, em 553, o Império Bizantino os esmagou. Roma, propriamente dita, voltou ao controle "romano", embora o poder na cidade fosse, na prática, exercido pela Igreja. Através de doações, o Papa se tornou o senhor de terras mais poderoso da Itália, e, à medida em que o poder bizantino na região foi diminuindo, estabeleceu para si um reino secular próprio, os Estados Papais (um corredor atravessando a península entre Roma e Ravena). O Estado do Vaticano é tudo que restou.

A queda de Rômulo (ironicamente, homônimo do fundador de Roma) não abalou o mundo como pode parecer. A passagem da Antiguidade para a Idade Média foi um processo mais prolongado, que começa bem antes e termina bem depois de 476, que passa por uma transformação organizacional e cultural do mundo romano para absorver o novo estrato germânico que se fixou no seu espaço. O longo declínio no padrão de vida e o estabelecimento do cristianismo como religião hegemônica começam no século III, a organização das cidades e a vida urbana - e a tendência à interiorização - também sofrem um gradual abandono a partir do século IV. A mudança de paradigmas para a organização dos exércitos (de corporações profissionais disciplinadas, organizadas em legiões numerosas com ênfase na infantaria, a corporações restritas a mercenários e nobres capazes de armar a si mesmos e a seus vassalos, com um núcleo de infantaria e cavalaria pesadas) começou no século III, com o aumento da importância da cavalaria, e no século seguinte, quando os alanos trouxeram as armaduras pesadas que eles desenvolveram para resistir aos arqueiros hunos. A fragmentação do poder começou no próprio Império Romano, com o enfraquecimento da figura do imperador e a ascensão dos senhores de terras (cada vez mais poderosos ao se apropriarem de propriedades de terceiros por causa de dívidas ou herança). A língua latina continuou a ser usada como língua dos documentos oficiais e da erudição fins do segundo milênio depois de Cristo (e a língua da liturgia católica até o século XX), mas ela já vinha se transformando inexoravelmente em cada região onde um povo bárbaro se estabelecesse dentro das antigas fronteiras. O quadro todo só vai se estabilizar bem mais adiante.

Por isso, para fins de classificação e organização do conhecimento, enquanto muitos marcam o fim do mundo antigo na queda do último imperador do ocidente, alguns avançam a data para a queda do Reino Ostrogodo, o advento do Islã no Oriente Médio, ou a coroação de Carlos Magno em Roma após derrotar os lombardos (como "Imperador Romano"!). É mais fácil pensar que, desde, talvez, Teodósio I, o último imperador romano a governar as duas metades do Império até 395, o Império Romano do Ocidente tenha se tornado um morto-vivo, cujo processo de decomposição foi muito longo, em que a queda do último imperador talvez nem tenha feito muita diferença.

Nenhum comentário:

Postar um comentário