terça-feira, 15 de setembro de 2015

Serial killer

Em 15 de setembro de 1440, o Barão de Rais, Gilles de Montmorency-Laval, foi preso sob a acusação heresia e por ter cometido vários assassinatos. Foi o início do processo que levou uma das primeiras condenações conhecidas de um assassino em série.

Gilles de Rais veio de família nobre do oeste da França, e conquistou renome aos 16 anos, ao ajudar na fuga do duque João VI da prisão na Bretanha por seus rivais da família Blois. Com isso, obteve a honra de participar da cerimônia de coroação do rei Carlos VII da França, ganhou o direito de usar a flor-de-lis dourada sobre azul (as cores do rei da França) em volta do brasão da sua família e foi nomeado marechal.

Gilles viveu no contexto da Guerra dos Cem Anos. Nesse contexto, ele viria a conhecer Joana D'Arc, uma jovem camponesa cuja liderança entusiasmada e a alegação de inspiração divina a elevou ao status de uma das principais comandantes do exército francês nos estágios finais da guerra e uma figura de enorme apelo popular. Aparentemente, Joana escolheu Gilles como um de seus companheiros mais próximos, com a permissão do rei, antes de lhe ser concedido o marechalato. Ao lado de Joana, ele foi reconhecido por ter enfrentado "grandes perigos" e realizados inúmeros "atos de bravura".

Joana estava sob sua proteção nominal quando, em 1430, ela foi capturada por tropas burgúndias, aliados dos ingleses na França. Os ingleses pagaram 10 mil libras para transferi-la à sua custódia. Os franceses não fizeram muitos esforços para reavê-la. Gilles, que era um homem rico, tampouco (seu avô, em sinal de desaprovação a Gilles por dispender grandes fortunas em futilidades, passou para seu neto mais novo René sua armadura e sua espada). Quando ela foi condenada à fogueira e queimada em público, em Rouen, ele não estava presente. Na época, Gilles estava escrevendo O Mistério do Sítio a Orléans, peça grandiosa em que ele narrava em tintas religiosas a participação decisiva de Joana na batalha. Talvez a sua morte promovesse a sua peça mais do que qualquer coisa - Gilles vendeu quase todas as suas propriedades para promover a peça.

Seus parentes começaram a ficar alarmados com os gastos de Gilles, que incluía, além da peça (encenada por 650 pessoas que usavam roupas confeccionadas especialmente para cada apresentação e depois descartadas, com comida e bebida oferecidas sem restrição aos espectadores) a construção de uma capela. Eles conseguiram que Carlos VII publicasse um edito proibindo que Gilles vendesse mais propriedades da família, o que o levou a emprestar somas fabulosas de dinheiro para manter seu estilo de vida.

Entre o fim de sua aliança com Joana D'Arc, em 1431, e 1440, a vida de Gilles de Rais é recontada a partir das suas confissões no processo que levou à sua condenação. Aparentemente, Gilles começou a se interessar por garotos por volta de 1432. Ele os seduzia com demonstrações de riqueza ou oferecendo-lhes comida, os levava a algum local de sua propriedade (como seu castelo em Champtocé-sur-Loire). Com a ajuda de cúmplices, os vestia com as melhores roupas, os embebedava e os sedava. Então, eles eram levados a um quarto, onde Gilles e seus companheiros os prendiam, os violentavam, torturavam e matavam. Durante a agonia, o barão podia se sentar sobre a barriga da vítima e rir enquanto ela morria, ou violentava-a mais uma vez. Uma vez mortas, eram esquartejadas ou dissecadas, a visão de suas vísceras expostas produzindo em Gilles um prazer comparável ao do sexo, e seus corpos enfim queimados numa lareira e enterrados. Ele teria sequestrado, violentado e matado "um grande" número de crianças, meninos e meninas. De Rais foi acusado também de alquimia e conjurar o demônio, segundo testemunhado por um padre que teria tomado parte na obtenção de "livros mágicos" de um clérigo florentino. Ele teria tentado entrar em contato com um demônio chamado Barron após a oferenda de partes do corpo de uma criança, sem sucesso.

Se era tudo verdade, ou apenas a confissão obtida sob coerção (Gilles confessou espontaneamente, evitando a inquisição sob tortura que faria parte do processo), é questão de debate. A virtual falência de Gilles, além de irritar seus credores, fez cessar os seus generosos favores à Igreja francesa. Em maio de 1440, uma desavença com a paróquia de Saint-Étienne-de-Mer-Morte o levou a manter sob custódia um clérigo local. O Bispo de Nantes então conduziu a investigação sobre sua vida, que levou ao processo, sob a bênção do Duque da Bretanha (o mesmo João VI que Gilles ajudara a fugir), que tinha interesse em repartir as propriedades de Gilles na Bretanha entre seus próprios vassalos, o que ele de fato fez. Os inquisidores também eram todos religiosos. A prisão ocorreu no dia 15 de setembro, e a confissão em 21 de outubro. No período, vários aldeões levavam novas acusação de rapto e morte de seus filhos por Gilles de Rais, sem provas. No final de outubro, Gilles e dois colaboradores foram condenados à morte por enforcamento e subsequente imolação. Seu corpo foi retirado da fogueira antes de ser consumido, e enterrado em Nantes. O tal padre Blanche, que testemunhou a favor da acusação de heresia, não foi processado como cúmplice. Um julgamento simulado em 1992, com participação de políticos, maçons e experts em direitos humanos, reexaminando os autos do processo, consideraram Gilles de Rais inocente, uma vez que, apesar da confissão e dos testemunhos muito detalhados, não foram reunidas quaisquer provas materiais dos crimes imputados - nem dos "livros mágicos", nem quaisquer vestígios dos corpos das crianças que ele confessara ter matado e enterrado. Sob a lei moderna de muitos países ocidentais, a confissão espontânea de um crime é considerada nula se não forem apresentadas provas materiais.

De qualquer forma, foi uma das primeiras vezes na História em que foi levado a cabo um processo penal resultando em condenação formal de um assassino em série. Embora houvessem outros assassinos em série notórios no passado - os milhares de empalamentos de Vlad Tepes, por exemplo, ocorridos menos de duas décadas depois - eles não foram julgados como tais, dentro de seus contextos históricos: eram atos de guerra, ou estavam licenciados pela lei vigente. Ou então, sob suspeita, eram perseguidos e mortos antes de serem levados a julgamento (não raro, eram confundidos com vampiros, lobisomens, ou bruxos que se alimentavam de carne humana ou a usavam em rituais demoníacos). No máximo, os assassinatos em série promovidos por nobres eram encarados como decorrências de caprichos, e resultavam em banimentos e na perda de títulos (como ocorreu com um príncipe chinês no século II a.C. que "caçava" seus próprios escravos). A partir do caso de Gilles de Rais, o processo penal na Europa passou a tratar do assassinato em série com mais objetividade. Uma das principais de estudos logo nos primeiros anos da psicanálise foi a tentativa de compreender a mente dos assassinos em série.

A fama de Gilles de Rais como um assassino de crianças e um bruxo perpassou o seu tempo - alguns praticantes de ocultismo contemporâneos acreditam que sua mãe era uma fada, que ele era um devoto da deusa lunar Diana ou praticante de uma "nova religião" da qual presidia um conciliábulo de bruxos, e que isso teria levado à desavença com a Igreja Católica. Na cultura popular, os personagens inspirados em Gilles são frequentemente antagonistas, assassinos, bruxos ou demônios. No anime Fate/Zero, ele é um espírito maligno evocado em tempos modernos, que obtém prazer na matança desenfreada de mulheres e crianças, enquanto busca reencontrar obsessivamente sua "amada" Joana D'Arc.

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