quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Terra arrasada

Em 16 de setembro de 1812 Moscou ardia em chamas, num incêndio que destruiria 80% da cidade, mas que, de certa forma, salvaria toda a Rússia das garras de Napoleão.

A invasão da Rússia, iniciada em junho daquele ano, tinha um objetivo bem específico: Napoleão pretendia pressionar o Czar Alexandre I a desistir do comércio com a Inglaterra, estrangulando a economia do seu principal rival. A França já estava desde 1806 apertando o cinto dos ingleses com o Bloqueio Continental, onde as nações europeias se viam compelidas a não negociar com ingleses, sob ameaça de intervenção militar. Era assim que Napoleão via a possibilidade de arruinar a Inglaterra, uma nação insular e militarmente poderosa, praticamente impossível de ser tomada por uma invasão pelo mar naquele momento. Não obstante, a Rússia continuava a realizar comércio regular com a Inglaterra.

Em 1809, Napoleão tinha o governo efetivo da França, da Bélgica e de 1/4 da Itália (onde foi coroado cerimonialmente com a Coroa de Ferro da Lombardia), e mantinha sob controle, ou pela indicação de parentes seus como governantes, ou por alianças firmadas por interesse ou sob ameaça, quase toda a Europa Ocidental e Central, com exceção de Portugal (cuja aliança com a Inglaterra, especificamente, existe até hoje, e é a aliança entre dois países mais antiga ainda em vigência) e dos reinos independentes da Sicília e da Sardenha. Fora do seu alcance estavam os Bálcãs, sob domínio otomano, e a Rússia. A guerra contra a Inglaterra pela supremacia econômica do continente se espalhou para as colônias na África e na América.

Na Europa, a série de conquistas iniciada em 1803 só viu resistência na desgastante Guerra Peninsular, travada na Espanha apoiada pela Inglaterra e reforçada por portugueses, que resultou numa vitória custosa para Napoleão. Seus aliados já não eram tão leais, e sua popularidade na França vinha em queda, e mesmo com o continente quase todo sob controle, seu inimigo direto continuava a prosperar graças às colônias na América, na Ásia e na África subsaariana. De fato, a Inglaterra só sentiria um impacto significativo na sua economia com o fim das relações com os Estados Unidos na Guerra de 1812.

O Embargo Continental não estava se mostrando eficiente. E em alguns lugares, como na Holanda e em algumas cidades portuárias na própria França, a ausência de agentes comerciais britânicos esfriaram a economia (a crise holandesa foi particularmente forte, e o país só se manteve sob controle porque Napoleão nomeara seu irmão Luis Bonaparte como rei). A indústria têxtil da Bélgica prosperou como nunca sem a concorrência inglesa, mas como os produtos ingleses eram produzidos a custos menores, o consumidor comum na Europa continental sentiu o aumento dos preços. A França não tinha condições práticas para impedir o tráfego de navios ingleses na maioria dos portos, impedir o contrabando no continente, nem de promover um bloqueio efetivo no Atlântico. Mesmo Portugal, que se colocou fora do alcance francês transferindo toda a sua administração imperial para o Brasil (e que a França não conseguiu abocanhar com a Guerra Peninsular), continuou a ser um parceiro comercial dos ingleses na Europa sem grandes impedimentos. A ineficiência do Bloqueio ficou clara quando Napoleão abriu alguns portos ao comércio limitado com os britânicos em 1810.

Enquanto isso, a Rússia formalmente cooperava com Napoleão. As repetidas vitórias de Napoleão sobre a Áustria e a Prússia, em operação conjunta com os russos, persuadiram Alexandre I a se retirar da guerra em 1807. Era uma das forças políticas que pressionavam a Dinamarca (declarada neutra no primeiro momento das Guerras Napoleônicas) a ceder sua numerosa marinha para a França, e sua captura pelos ingleses levou os russos a irem à guerra contra seu antigo aliado. Em 1808, invadiu a Finlândia, na época pertencente à Suécia que se recusava a aderir ao Bloqueio Continental. Como o Bloqueio também não se revelou tão vantajoso para a Rússia, os russos começaram a fura-lo, aproveitando-se da rota marítima pelo Báltico assegurada pela captura, pelos britânicos, da marinha dinamarquesa. Em 1810, a Inglaterra tinha uma relação comercial bastante saudável com os russos, mesmo com o estado de guerra entre os dois países.

Existe uma linha bastante explorada que supõe que a saúde de Napoleão, naquela altura, já estava se deteriorando. Obeso e propenso a atitudes extravagantes, é possível que a sua saúde mental também estivesse em declínio, e isso poderia estar afetando as suas decisões. Ao saber que os russos não estavam respeitando o Bloqueio Continental, as relações entre Napoleão e Alexandre começaram a se deteriorar. Um dos pontos de conflito que ganharam mais ênfase na disputa diplomática que se seguiu foi a posse da Polônia, que ambos queriam como um Estado-satélite sob sua tutela (a França havia "libertado" a Polônia em 1807, então repartida entre Rússia, Prússia e Áustria, e se achava no direito de ditar a sua política). De fato, a Rússia assumiu uma postura agressiva, preparando uma invasão à Polônia depois de 1811. Napoleão reagiu com a invasão à Rússia, uma opção que a História mostrou fatal para a sua carreira, e à de outros aspirantes a conquistadores do continente.

Napoleão reuniu mais de 680 mil soldados do exército francês, reforçado por contingentes de todas as partes do seu império e aliados da ocasião, além de insuflar os poloneses com algum sentimento nacionalista, anunciando que a guerra viria novamente para sua terra, mas que, com sua ajuda, os franceses a levariam para os "agressores" russos. Da Espanha até a Polônia, Napoleão contava com uma infraestrutura de transporte e abastecimento que permitia o rápido deslocamento de um número enorme de soldados, equipamentos e suprimentos para o front. Ele esperava uma guerra de atrito a partir da fronteira ao longo do rio Niemen (que atravessou em Junho após uma última oferta de paz rechaçada pelos russos), e seus generais e suas tropas, veteranos de mais de uma década de guerras ininterruptas, estavam bem preparados para isso. Os russos, contudo, tinham seus próprios planos.

Tendo enfrentado o exército de Napoleão em batalha no passado, os russos entendiam a sua superioridade, e a vastidão do seu território tornava a sua defesa extremamente complicada. Num cenário como este, o agressor daria as cartas, e restaria aos russos tentar contra-atacar onde o inimigo pudesse ser achado, torcendo para que este, um passo à frente, não tenha tomado alguma posição estrategicamente crucial. A outra alternativa foi recuar. Recuar e devastar tudo atrás de si, para impedir que o inimigo se apossasse efetivamente do seu território. Isso havia sido feito com relativo sucesso por Vlad Tepes, contra uma invasão otomana na Transilvânia, e com notável êxito pelos portugueses na Guerra Peninsular.

Russos e franceses, nas primeiras semanas, se encontraram em batalha esporadicamente. Como não oferecessem muita resistência, os franceses avançavam rapidamente. Avançar muito rápido com um exército numeroso significa alongar demais as linhas de suprimentos, e atrasar o seu abastecimento. Em agosto, os russos encontraram um exército de 200 mil comandado por Napoleão em pessoa em Smolensk. Apesar de perdas equivalentes em ambos os lados, os russos bateram em retirada. Naquela altura, as tropas de Napoleão já racionavam comida e munição. Ao cruzar o Dnieper, os marechais russos ordenaram a destruição de tudo que pudesse servir ao inimigo: plantações e gado, florestas onde se pudesse obter madeira, casas ou qualquer lugar que pudesse servir de abrigo. A população era conduzida o mais rapidamente possível para o interior, e tudo que não pudesse ser carregado deveria ser destruído para não servir ao inimigo. A fortaleza de Smolensk, capturada pelos franceses, não lhes oferecia nada útil.

Os russos prosseguiram recuando e queimando tudo pelo caminho. A tática de terra arrasada pareceu aos franceses um caminho aberto e sem resistência ao coração da Rússia, e eles avançaram muito rapidamente. Napoleão em pessoa já havia tomado Vilnius, na Lituânia, nos primeiros dias de guerra, comprometendo o acesso da Rússia ao litoral báltico, e estava confiante de que sua marcha em direção a Moscou levaria a Rússia ao colapso. No entanto, como os franceses, na prática, não capturavam nada das terras por onde passavam, logo ficou evidente que, se não vencessem rapidamente a guerra, teriam que dar a meia volta, ou morrer de fome.

Logo em setembro os franceses alcançaram os arredores de Moscou. Uma batalha no dia 8 manteve os franceses estacionados na planície, dando tempo ao prefeito da cidade, seguindo orientações superiores, coordenar a sua evacuação. Aparentemente, foi ele quem planejou o incêndio: suas ordens eram de que tudo deveria ser incendiado, inclusive as igrejas. Quando os franceses entraram em Moscou, no dia 14, encontraram a cidade quase deserta e ardendo em chamas, ocupada apenas por estrangeiros residentes, servos, criminosos (as prisões foram deliberadamente abertas) e pessoas incapazes de fugir. No dia 15, Napoleão entrou no Kremlin, esperando que o ato simbólico de tomar controle da capital induzisse Alexandre a se render. De fato, como os russos abandonaram a cidade, as formalidades de guerra que os generais esperavam no ato de conquista de uma cidade importante - serem recebidos por representantes do governo local, que se encarregariam de abrigar e alimentar os soldados - não aconteceram, deixando Napoleão bastante desorientado. No dia 16, como o fogo se aproximasse do palácio, o Imperador foi removido às pressas para outro, na periferia da cidade, correndo temerariamente pela rua Arbat, que ardia dos dois lados. Em outubro, com suprimentos perigosamente escassos, sem sinal de que Alexandre se renderia nem da presença do exército russo, os franceses deixaram a cidade, planejando chegar à Polônia o mais rápido possível, antes do inverno.

Os russos haviam se retirado para o sul. Recebendo notícias de que Napoleão começara a se mover, os russos organizaram seus ataques a partir do sul, de maneira a orientar a marcha francesa pelo mesmo caminho até Smolensk, passando por centenas de quilômetros de terra arrasada novamente. Cavaleiros cossacos atacavam com rapidez quebrando a linha de marcha e dispersando unidades do corpo principal do exército. Os cavalos franceses, sem pasto, começaram a morrer de fome, e os que ainda resistiam eram mortos para alimentar os soldados, efetivamente dissolvendo o seu corpo de cavalaria. As carroças puxadas pelos animais, com armas, equipamentos, e peças de reposição, foram abandonadas. O frio crescente matava milhares, pois os franceses partiram em campanha em trajes de verão (os russos consideraram aquele inverno relativamente "ameno"). Tropas russas continuaram fustigando os franceses até a Batalha de Berezina, na Bielorrússia, onde eles os encurralaram na travessia do rio Berezina. Napoleão escapou com apenas metade do seu contingente (sua sorte foi o General Eblé ter desobedecido as ordens do Imperador de deixar para trás material para a construção de pontes). Em dezembro, apenas 22 mil soldados do exército napoleônico cruzaram de volta a fronteira com a Polônia. A perda de vidas durante a campanha a coloca entre as mais letais da História.

Napoleão retornou rapidamente à França após notícias de um golpe de Estado fracassado em novembro. O fiasco da invasão russa estremeceu sua reputação e a rede de alianças que mantinha o seu Império coeso. A Confederação do Reno, a Prússia, a Áustria e a Rússia renovaram a aliança com a Inglaterra e iniciaram uma contra-ofensiva que levaria à capitulação de Napoleão em 1815. A queda de Napoleão, e os subsequentes movimentos nacionalistas na Europa Central deram espaço à unificação da Alemanha e da Itália, e o estabelecimento das fronteiras e de um novo balanço de forças na Europa Ocidental. A Rússia (que reverencia a invasão napoleônica com o título de "Guerra Patriótica de 1812") repetiria a tática de terra arrasada quando Adolph Hitler ordenou a sua invasão em 1941. Hitler, para evitar a manobra defensiva que possibilitou aos russos encurralarem Napoleão na rota arruinada de Smolensk, ordenou a invasão em várias frentes da Ucrância até o Ártico, com o centro em direção a Moscou. A resistência russa durou o suficiente até o inverno, e os alemães perderam mais de 4 milhões de soldados até a sua total retirada, mudando, assim como aconteceu com Napoleão, o rumo da História.

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