quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Mundo microscópico revelado

Em 17 de setembro de 1683, o comerciante holandês Antonie van Leeuwenhoek ("Lêuehuk", se você, como eu, verbaliza o texto mentalmente enquanto lê) escreveu uma nota à Royal Society fornecendo a primeira notícia para a ciência da existência de pequenos animais se locomovendo na água - protozoários - observados em um de seus microscópios.

Antonie van Leeuwenhoek nasceu de uma família modesta em Delft, na Holanda, em 1632. Sua educação foi breve, e aos 16 anos estava trabalhando como aprendiz em um armarinho. Pouco depois ele abriria seu próprio negócio no ramo. Enquanto era dono do seu armarinho, Leeuwenhoek usava lentes de aumento para avaliar a qualidade da trama dos tecidos que comprava e vendia. Sua atenção pelos pormenores dos tecidos e da estrutura dos fios desviou seu interesse para a fabricação de lentes. Com algum conhecimento em vidraria, ele desenvolveu um conjunto de pequenas lentes que aumentavam as imagens assombrosamente. Ele passou a observar, além de fios e linhas, tudo que fosse pequeno demais para a vista humanas: insetos, ácaros, estruturas vegetais, animais e minerais, investigava amostras de solo, gotas de água, fluidos corporais e secreções, descrevendo-as e ilustrando-as.

Sem contato com o meio acadêmico, Leeuwenhoek mostrou seu trabalho a um médico, Reinier de Graaf. Foi ele quem escreveu à Royal Society, em Londres, recomendando a qualidade dos microscópios construídos por Leeuwenhoek. Ele então passou a se corresponder com a comunidade científica, mas foi após alguma insistência que suas descobertas foram reveladas para a ciência (ele via a si mesmo como um comerciante sem conhecimento científico ou artístico dignos, e só passou a divulgar suas descobertas após os 40 anos, apenas em comunicações pessoais à Royal Society, e sempre em holandês). Algumas delas espantaram a ciência: a descoberta de "animáculos" que se moviam na água (a primeira descrição de protozoários), pequenos seres que habitavam a saliva humana (que mais tarde seriam classificados como bactérias), a descrição dos arranjos em feixes das fibras musculares, a presença de pequenos seres no esperma (os espermatozoides). Além de descrever a estrutura interna de um grão de café, ele percebeu que os animáculos da saliva (as bactérias) desapareciam das amostras retiradas depois que ele tomava café. Ele ainda sugeriu que os microrganismos se multiplicavam por reprodução, como os animais macroscópicos, ao contrário do consenso da época de que surgiriam espontaneamente das impurezas do meio.

Um contemporâneo seu, Robert Hooke, um naturalista e polímata que também explorava o mundo em seus próprios microscópios e havia descrito as células como unidades formadoras de todo ser vivo conhecido com base na sua observação de uma lâmina de cortiça, se ressentia do crescente prestígio do comerciante de tecidos (e depois camareiro oficial da Câmara Municipal e encarregado de controlar a qualidade de vinhos de Delft) no meio acadêmico. É possível que o holandês não desse muita atenção às críticas de Hooke, reconhecido no meio como ranzinza e propenso a disputas ideológicas com seus pares (ele entrou em conflito com outro gênio de temperamento difícil, Isaac Newton, pela autoria da teoria da gravidade). De fato, Leeuwenhoek obteve fama e prestígio suficientes para receber a visita de várias autoridades internacionais, entre as quais o Czar da Rússia Pedro, o Grande (a quem presenteou com uma lente de aumento e demonstrou a circulação sanguínea de uma enguia), o filósofo e matemático Gottfried Leibniz, os príncipes de Orange e a Rainha Ana do Reino Unido. A esses visitantes curiosos, Leeuwenhoek mostrava apenas suas lentes de mais baixa qualidade, mas suficiente para impressioná-los. Como bom comerciante, temia que sua técnica para a fabricação de lentes pequenas, que era incrivelmente simples (ele derretia finíssimos tubos de vidro em pequenas gotas que apenas esperava se solidificarem, ao invés de polir peças maiores até ficarem pequenas o suficiente e com o formato e curvatura ideais), fosse descoberta por observadores mais sagazes. Poucos dos seus aparelhos óticos sobreviveram aos dias atuais. Estima-se pela qualidade das suas ilustrações que seus melhores microscópios podiam produzir imagens aumentadas 500 vezes com apenas uma lente. Os microscópios óticos atuais possuem pelo menos um par de lentes, tipicamente dois pares, chegando a aumentos de até 1000 vezes, embora o aumento de um microscópio comum ou um estereoscópico, com um par de lentes, normalmente chegue a apenas de 50 a 100 vezes, suficiente para ver com algum detalhe o corpo de uma pulga, o formato geral de grãos de pólen, ou o movimento de alguns protozoários maiores.

As descobertas de Leeuwenhoek abriram um leque grande de novos conhecimentos a serem explorados que tem impacto no conhecimento produzido mesmo neste exato momento - das inovações técnicas na confecção de lentes cada vez mais precisas e nítidas, ao advento dos microscópios eletrônicos atuais capazes de detectar com nitidez ultraestruturas em nível molecular, à evolução do conhecimento das interações entre microrganismos e vírus (descobertos no final do século XIX e "invisíveis" até meados do século XX) e o corpo humano, a identificação de agentes infecciosos e comensais, o desenvolvimento de vacinas, antibióticos, sintetização e transformação de substâncias com atividades biológicas diversas direcionadas a funções e tratamentos específicos, seu subsequente uso na genética, na agricultura, na fermentação, na produção de vitaminas, na remediação ecológica. A inclusão de um mundo invisível ao olho nu ao universo do pensamento humano proporcionou uma nova noção de escala O universo microscópico, antes desconhecido, deu à humanidade os subsídios para os avanços meteóricos da medicina, da anatomia e da microbiologia nos séculos seguintes.

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