quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A semente da maçã

Em 24 de setembro de 1664, a colônia holandesa de Nova Amsterdam, na ilha de Manhattan, foi entregue à Inglaterra sob a presença em seu porto de quatro fragatas inglesas. Em homenagem ao Duque de York, organizador da expedição, a colônia foi rebatizada como New York (peço licença para aportuguesar o nome todo, Nova Iorque). Todo o processo foi uma consequência de conflitos na Europa envolvendo os dois países, ora do mesmo lado, ora de lados opostos.

A baía de Nova Iorque, formada pela desembocadura do rio Hudson, e a ilha que se projeta na sua saída foram mapeadas pelo navegador italiano Giovanni da Verrazzano, a serviço do rei Francisco I da França, em 1524.  A partir de 1609, navios holandeses começaram a sondar a região. A Holanda reivindicava uma parte do nordeste dos atuais Estados Unidos como seu território na América do Norte (a Nova Holanda), e Manhattan estava incluída. O navegador Adriaen Block, em 1614, elaborou um mapa detalhado da região, e com isso conseguiu o monopólio para a sua exploração comercial. João Rodriguez *, mulato português nascido na colônia espanhola de Santo Domingo, na atual República Dominicana, e a serviço dos holandeses, foi em 1613 morar com a tribo Mahanatta, da nação Lenape (cujo nome batizaria a ilha de Manhattan), onde se estabeleceu como trapista, comercializando as valiosas peles de castor e seu almíscar (substância conhecida como castoreum, usada em perfumaria) com os navios de Block. Através do navegável rio Hudson, Rodriguez atraía o interesse de diversas tribos do do continente dispostas a trocar seus produtos por bugigangas holandesas, tornando a proto-colônia altamente lucrativa.

Por volta de 1620, os holandeses estavam no controle do comércio internacional, com uma marinha mercante maior do que a de todos os outros países europeus combinados, feitorias em todos os continentes conhecidos, inclusive uma nova colônia no que antes era território português assegurado pelo Tratado de Tordesilhas, bem no atual Nordeste do Brasil. A Inglaterra, por outro lado, suplantara o poderio naval da Armada Espanhola (numa época em que a própria Holanda era regida pelo rei espanhol Filipe II, rebeldes holandeses apoiaram os ingleses durante sua campanha), e crescia para se tornar um competidor internacional da corrida por novas terras e rotas de comércio além mar, tendo a Holanda como rival a ser superado. Um acordo de paz da Inglaterra com a Espanha em 1603 fez deteriorar as relações com os holandeses, que almejavam sua independência dos espanhóis e esperavam ter a Inglaterra como aliado. Em 1620, um grupo de colonos calvinistas financiados por empresários ingleses pretendiam penetrar a Nova Holanda pelo rio Hudson, mas acabaram desviando para o Cabo Cod, em Massachusetts, onde formaram a colônia de Plymouth (esses colonos ficariam conhecidos como Peregrinos). Outro incidente em 1623, quando 10 britânicos foram mortos numa colônia holandesa nas Molucas, repercutiu negativamente na disposição entre as duas nações.

Em 1624, um grupo de colonos arregimentados pela recém criada Companhia Holandesa das Índias Ocidentais foram enviados a Nova Holanda para tomar posse e ocupar o território. Alguns deles foram removidos para a ponta sul da ilha de Manhattan no ano seguinte, para proteger a desembocadura do Hudson - uma das principais vias de acesso ao interior do continente - de invasores europeus. Em 1625, a colônia de Nova Amsterdam nascia dentro de um forte. Uma guerra entre nativos rio acima forçou o deslocamento de outros colonos holandeses para a ilha. Para garantir a segurança dos colonos e suas propriedades e lavouras na ilha, o novo diretor da Companhia, Peter Minuit, negociou com os Mahanattas a aquisição daquela terra em troca de mercadorias no valor de 60 florins. Aparentemente, os Mahanattas não tinham o controle de fato da ilha, frequentada por outra tribo, os Weckquaesgeeks (alguns dos quais foram viver em Nova Amsterdam). O chefe Mahanatta, que aceitou a oferta de bom grado, deve ter achado Minuit um tolo. A memória coletiva da colônia se encarregaria de transformar essa negociata em algo menos embaraçoso: a lenda popular conta que Minuit teria comprado a ilha de nativos ingênuos em troca de quinquilharias e colares de conta (os holandeses aprenderam que esse produto específico, que para eles não tinha valor, era usado como moeda de troca entre as tribos locais) no valor de 24 dólares. De qualquer forma, a transação garantia a legalidade do assentamento holandês e impedia a sua contestação por qualquer outra nação europeia. O forte, cercado por um muro de madeira e barro, prosperou nos anos seguintes, recebendo o título de cidade em 1653.

Enquanto a Companhia se encarregava das colônias na América, a Holanda mergulhava em uma guerra com a Inglaterra. Como foi dito mais acima, a Inglaterra terminou por selar a paz com a Espanha, mas o poderio espanhol ficou comprometido. A violenta Guerra dos Trinta Anos, entre 1618 e 1648, devastou a Europa e enfraqueceu o controle espanhol sobre seu vizinho Portugal, declarado independente desde 1640, e sobre suas próprias colônias. Portugal também estava mais preocupado em reestruturar-se internamente do que em cuidar de suas colônias, de maneira que Inglaterra e Holanda entraram numa corrida para tomar posse daquelas terras, definitivamente anulando os efeitos do Tratado de Tordesilhas. A Holanda levava vantagem pela enorme quantidade de navios circulando com mercadorias, posições estratégicas nas ilhas Molucas (de onde vinham as cobiçadas pimenta-do-reino e noz-moscada, cuja carga de um único navio poderia fazer seu proprietário rico pelo resto da sua vida), Caribe, África e América do Sul. Seu comércio competitivo era baseado no livre mercado, desprovido de taxas (ou com taxação insignificante), em contraste com o regime de taxações, comissões e permissões necessárias para a operação dos negócios na Inglaterra. E, por fim, a Holanda prosperava enquanto a Inglaterra estava em guerra civil, em parte, alimentada pela Holanda, que apoiava monarquistas. Contudo, com a vitória próxima, os republicanos começaram a acusar os holandeses de tomar proveito do conflito para lesar o comércio inglês nos seus mercados tradicionais. Quando o rei Carlos I foi executado em 1649, o comandante-em-chefe da República Holandesa, seu parente, manifestou sua indignação, e o comandante-em-chefe da nova república inglesa, Oliver Cromwell, declarou o país inimigo. Novas leis limitando o comércio das colônias com navios holandeses criaram atritos que levariam à Primeira Guerra Anglo-Holandesa.

Esta guerra, que durou de 1652 a 1654, resultou em uma discreta vitória inglesa (Cromwell pretendia incorporar a Holanda à Comunidade da Inglaterra, sob seu comando, e firmar uma aliança contra a Espanha para tomar suas colônias na América; nada disso foi aceito). Contudo, a paz selada no Tratado de Westminster não deu fim aos conflitos, pois as companhias comerciais dos dois países, operando com alto grau de autonomia e armadas com navios de guerra e soldados, continuavam se enfrentando pelo controle das rotas comerciais e pelo acesso aos recursos naturais das colônias. Cromwell se preocupava em evitar que essas animosidades tomassem caráter oficial, provocando nova guerra, porque um estado continuado de beligerância entre os dois países seria extremamente prejudicial (na paz os holandeses mantinham sua vantagem, mas em guerra os dois estavam militarmente em pé de igualdade, então uma guerra prolongada levaria à exaustão a marinha inglesa sem afetar decisivamente a Holanda). De fato, a Inglaterra entrou em guerra com a Espanha, e a Holanda, deixada em paz, viveu o seu apogeu nesse período.

O regime republicano não durou muito, e a Inglaterra restaurou seu rei, Carlos II, parente da casa de Orange e guardião do seu herdeiro, Guilherme III, em 1660. Porém, a volatilidade das alianças e animosidades na Europa levaram Carlos a adotar a posição de uma facção anti-orangista na côrte. Lorde Arlington, seu amigo mais próximo, argumentava que o domínio comercial holandês era mais perigoso do que as peripécias continentais da França, o seu mais tradicional rival. O Duque de York, Jaime, irmão de Carlos, era um entusiasta da ideia de tomar as possessões holandesas na América. Ele financiou uma expedição contra os postos holandeses na costa Africana em 1663, ao mesmo tempo em que arregimentava 4 fragatas com 450 homens para tomar controle do rio Hudson. O rei lhe garantiu a posse dos novos territórios na América.

Em 1664, Nova Amsterdam era administrada por Peter Stuyvesant, experiente capitão que usava uma perna de pau desde que perdera o membro numa batalha pelo controle da colônia espanhola de San Martin, no Caribe. Apesar de estar no cargo havia 17 anos, a influência de Stuyvesant dentro da colônia estava tragicamente abalada por causa de uma série de decisões desastradas. A começar pela sua inabilidade em mediar conflitos na colônia próxima de Albany (atual capital do estado de Nova Iorque), e na negociação sobre a posição das fronteiras entre Nova Amsterdam e a colônia inglesa de New Haven, em Connecticut (os seus compatriotas acusavam Stuyvesant de entregar terras holandesas aos vizinhos "suficientes para fundar cinquenta colônias"). Quando sua colônia foi reconhecida oficialmente como cidade, Stuyvesant havia acabado de tentar um golpe para assumir controle total sobre Nova Amsterdam dissolvendo seu conselho e declarando sua liderança "incontestável". Durante um conflito entre Holanda e Suécia na Europa, Stuyvesant comandou a conquista de uma colônia sueca no rio Delaware (onde se situa a maior cidade do estado do Delaware, Wilmington). Essa colônia, a Nova Suécia, era parceira comercial e protegida pela nação Susquehannock, que comandou uma campanha à colônia holandesa de Pavonia, em retaliação. Stuyvesant, que era protestante da Igreja Reformada Holandesa (de orientação calvinista), tinha suas diferenças com os colonos luteranos e judeus ("imundos", a quem "convidou" a deixarem a colônia para que não atraíssem outras minorias indesejáveis, como os católicos). Porém um afluxo de judeus vindos de Recife, recém reconquistada pelos portugueses, e as ordens da Companhia Holandesa, o persuadiram a deixá-los ficar. Quakers também eram perseguidos, assim como os que oferecessem abrigo a eles.

As fragatas inglesas chegaram a Manhattan em agosto. Elas aportaram perto da cidade, e um dos capitães entregou a Peter Stuyvesant uma carta de rendição, garantindo a vida, a segurança e as propriedades de todos na colônia sob a proteção do rei da Inglaterra. Passaram-se nove dias, em que Stuyvesant tentou articular algum movimento de resistência, esperando também que a Companhia ou o próprio governo holandês viesse a seu socorro, mas como não viesse ninguém, com sua popularidade tão prejudicada, ficou de mãos vazias, até que finalmente ratificou os termos (ele, contudo, conseguiu incluir artigos garantindo a liberdade religiosa para os reformados holandeses sob jugo anglicano). Em 24 de setembro o governo da cidade foi entregue a Richard Nicholls, comandante da expedição, e a colônia rebatizada em homenagem ao Duque de York..

No ano seguinte, as tensões entre Inglaterra e Holanda explodiriam finalmente na Segunda Guerra Anglo-Holandesa, e depois em uma terceira, quando a Holanda tentaria retomar Nova Iorque, apenas para perdê-la novamente meses depois. Nova Iorque, situada na desembocadura do rio Hudson, se tornou a porta de entrada para a colonização do nordeste dos atuais Estados Unidos. Também estava numa posição favorável a receber, ao longo dos séculos, seguidas levas de imigrantes de todos os continentes (inclusive de ex-escravos libertos ou fugidos do sul do país) em busca de oportunidades e melhores condições de vida, transformando-a numa cidade multicultural. Durante o século XX e começo do século XXI cresceu para se tornar a mais populosa cidade do mundo, centro nervoso financeiro e cultural dos Estados Unidos, visível e influente em todo o planeta - visibilidade que a tornou alvo de atentados terroristas espetaculares, e também modelo mundial de gestão em segurança e turismo, e símbolo maior de várias coisas, da opressão do capital à liberdade do indivíduo.

*P.S.: Sobre João Rodriguez, é icônico que tenha sido o primeiro morador do que hoje é Nova Iorque, sendo filho de pai português e mãe africana, e nascido num país hoje considerado "hispânico", refletindo prematuramente a atual natureza multiétnica e cosmopolita da cidade.

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