terça-feira, 17 de julho de 2018

A Quarta Cruzada

Em 1202, soldados e cavaleiros partiram de vários reinos europeus atendendo ao chamado do Papa Inocente III, com o objetivo de destruir o Sultanato Aiúbida. No entanto, em 17 de julho de 1203, a maior parte desse exército entregou-se ao saque de Constantinopla, causando o desmantelamento do outrora poderoso (e aliado) Império Bizantino.

Como isso foi acontecer?

As Cruzadas foram campanhas militares organizadas inicialmente pelo papado romano, em parte como resposta às dificuldades que os bizantinos estavam tendo para conter o avanço das nações islâmicas na Ásia. A Primeira Cruzada, em 1095, tinha como objetivo ajudar militarmente o Império Bizantino a recuperar terras perdidas para os turcos seljúcidas no leste da Anatólia, mas resultou na conquista de Jerusalém e no estabelecimento de reinos cristãos na região da Terra Santa. A tomada daquela cidade sagrada para o Islã foi uma demonstração de força da Europa cristã diante de mais de 300 anos de avanço muçulmano, que, contudo, tornou a região instável, disputada nos séculos seguintes por cristãos europeus, muçulmanos sírios, egípcios, e eventualmente mongóis. De fato, em 1187, o Sultanato Aiúbida, comandado pelo brilhante general Saladino, retomou a Cidade Santa, e a Terceira Cruzada, enviada em resposta, retomou algumas fortalezas perdidas (Jafa e Acre, por exemplo), mas não conseguiu reconquistá-la.

Da Europa Central para a Palestina, os Cruzados podiam seguir a perigosa rota pelo Mediterrâneo, ou seguir as estradas que iam para o leste, em direção a Constantinopla, pelos Bálcãs e Cárpatos, e de lá pelas confusas estradas da Anatólia. A passagem quase obrigatória pelo Império Bizantino, apesar de cristão, era um problema tanto para os católicos como para os bizantinos ortodoxos. Havia, de longa data, uma animosidade entre as duas interpretações do cristianismo, mas havia, sobretudo, um vão cultural entre a emergente sociedade feudal do ocidente, de matriz germânica, e da antiga e tradicional civilização oriental, de matriz grega mas que assimilava elementos asiáticos. A desconfiança levou o Sacro Imperador Romano Frederico Barbarossa, um dos comandantes da Terceira Cruzada, a planejar, com dissidentes sérvios e búlgaros, um ataque aos bizantinos, cuja política de tolerância e assimilação das culturas árabe e persa era vista como sacrílega; quando a ilha de Chipre, antiga possessão bizantina, foi reconquistada das mãos de rebeldes gregos, ao invés de ser devolvida, foi vendida pelo conquistador, o rei inglês Ricardo Coração de Leão, à Ordem dos Cavaleiros Templários.

Desde que Inocente III foi eleito Papa, em 1198, seu objetivo maior era organizar uma nova cruzada para retomar Jerusalém. No entanto, o cenário político não era favorável, já que as três principais potências, o Sacro Império Romano (em crise política com o papado), a França e a Inglaterra (em guerra um contra o outro) enfrentavam seus problemas. No entanto, um padre de Neuilly-Sur-Marne chamado Fulco conseguiu convencer alguns dos senhores mais poderosos da França a recrutarem exércitos contra a maior ameaça à cristandade, sobretudo à Terra Santa, o Sultanato Aiúbida. O líder da expedição seria o italiano Bonifácio de Montferrat. Sabendo das dificuldades da marcha por terra pela Anatólia (onde os cruzados, mesmo sob proteção bizantina, enfrentavam assaltos e hostilidades das populações locais nas cruzadas anteriores), Bonifácio buscou viabilizar uma frota marítima junto às potências comerciais de Gênova e Veneza. Venezianos concordaram em construir navios e transportar até 33 mil soldados (contando com 4500 cavalos) diretamente para o Egito.

Mas os cruzados, como havia sido antes, não compunham um exército coeso sob uma única liderança. Eram homens arregimentados e armados por senhores feudais principalmente na França (mas também alemães, belgas, e italianos), que os tinham como capitães. Embora houvesse a facilidade de transporte oferecida por Veneza, muitos optaram por embarcar em outros portos, como Marselha e Gênova. O embarque e o transporte eram feitos mediante pagamento dos senhores aos donos dos navios por cada homem embarcado. O problema é que dessa forma, apenas um terço dos homens esperados chegaram ao porto de Veneza, e os venezianos, que já haviam cumprido sua parte do trato, esperavam pelo pagamento total. Os cruzados reunidos ali foram dispostos de quase tudo que tinham para reunir menos do que Veneza esperava (o que contabilizava os prejuízos comerciais durante os anos de preparação e investimento na nova frota). Eventualmente, Enrico Dandolo, o Doge (ou duque, o cabeça da República local), propôs aos cruzados resgatar o montante devido achacando as cidades no leste do Adriático, então sob proteção sérvia ou húngara.

Apesar de uma ordem de Inocente III que proibia os cruzados de atacarem qualquer indivíduo, cidade ou reino cristão sob risco de excomungação, em novembro de 1201, a cidade croata (e católica) de Zara, atual Zardar, então uma ambição veneziana, foi sitiada. A cidade ostentava bandeiras com uma cruz sobre as muralhas, caso os invasores tivessem se esquecido de que a cidade era cristã, e alguns dos comandantes cruzados, como Simon de Montfort se recusavam a participar do cerco. Mas os soldados, já quase sem posses além de suas armas, viam, como Dandolo, a possibilidade de butim, e a cidade caiu em duas semanas. O Papa realmente excomungou todo o exército e a cidade de Veneza, mas como tanto cruzados como venezianos ainda precisavam se ressarcir dos prejuízos, seus líderes não informaram os soldados, com medo de que eles se dispersassem (Inocente voltou atrás três meses depois). Dandolo e os cruzados passaram o inverno em Zara, planejando o próximo passo.

Veneza cresceu graças ao comércio marítimo e à vigorosa e ágil economia local, impondo-se, mesmo com um território limitado à cidade, a portos aliados ou conquistados e colônias espalhadas pelo Mediterrâneo, frente a antigas potências tradicionais, como o Egito e o próprio Império Bizantino. Constantinopla era, pela sua localização geográfica, o principal entrave à expansão veneziana em direção às cobiçadas rotas que levavam à China e à Índia, e, apesar de inicialmente oferecer aos comerciantes venezianos privilégios, os irritava com novos acordos com rivais italianos de Pisa, Gênova e Amalfi. Em 1171, venezianos atacaram as posses de genoveses em Constantinopla, e em resposta o imperador Manuel I Komnenos mandou prender todos os venezianos na cidade e confiscar suas posses. Reforços vindos do mar tentaram vingar e forçar a libertação dos presos, mas fracassaram. Na confusão, rebeldes sérvios, instigados pelos venezianos, tomaram Ancona, a última possessão do Império Romano do Oriente na Itália. Embora a situação se normalizasse com o tempo, conflitos palacianos levaram à ascensão de Andrônico I Komnenos ao trono bizantino, e este imperador, que reinara por apenas dois anos, incitou a violência contra os que via como detentores do poder no Império - aristocratas e comerciantes latinos.

Enquanto isso, Bonifácio de Montferrat havia deixado os venezianos para visitar seu primo, Filipe, então rei da Alemanha (o que corresponderia ao cargo de Sacro Imperador Romano, caso tivesse a anuência do Papa). Ali encontrou-se com o príncipe Alexios Komnenos, cujo pai, Isaque II, havia sido deposto em Constantinopla por seu irmão Alexios III. Alexios prometeu a Bonifácio saudar a sua dívida com Veneza, além de ceder 10 mil soldados profissionais à sua expedição ao Egito, bem como colocar uma frota à disposição e, até mesmo, submeter o credo ortodoxo à autoridade do Papa, caso os cruzados o ajudassem a recuperar o trono bizantino. Tal proposta chegou aos cruzados em Zara, e foi abraçada com fervor por Dandolo. O Doge veneziano participara da expedição marítima de 1171, e teria sido cegado pelos bizantinos como punição. E agora ele navegava com uma frota de guerra e 12 mil cruzados em direção a Constantinopla.

Os cruzados, agora acompanhados por Bonifácio e Alexios, chegaram a Constantinopla em atitude hostil. As defesas da cidade, confusas e compostas apenas por um pequeno corpo de elite por conta das convulsões internas causadas pelos sucessivos golpes de Estado sofridos nas últimas décadas, foram pegas de surpresa. Ataques múltiplos foram desferidos nos subúrbios da cidade, fora das muralhas, enquanto a torre de Gálatas (onde se prendia a poderosa corrente de ferro que impedia o acesso ao Corno de Ouro, rio largo que dava acesso ao interior e à face norte das muralhas) era dominada. Mas para surpresa dos ocidentais (que, acostumados com a sacralidade da sucessão de seus tronos de pai para filho, imaginavam que o filho de um imperador deposto seria recebido com festa pelos seus pares), a embarcação onde se apresentava Alexios era ostensivamente hostilizada pelos cidadãos por cima das muralhas. Em 17 de julho, enquanto cruzados atacavam a muralha por terra, os venezianos tomavam parte da muralha pelo Corno de Ouro. Um grande incêndio causado com propósito de manter os invasores afastados destruiu quase 500 mil metros quadrados da cidade. O próprio usurpador, o imperador Alexios III (tio do pretendente), liderou um ataque em maior número contra os sitiadores no portão de São Romano, mas teria recuado em pânico antes do primeiro golpe. Ele fugiu para a Trácia, fazendo com que os comandantes locais restaurassem Isaque II imperador.

O retorno de Isaque ao trono frustrou as pretensões de um ataque direto dos venezianos aos tesouros bizantinos. Também colocava em cheque as promessas de Alexios, que só poderia cumpri-las se fosse ele o imperador. Sob pressão e alguma ameaça, Isaque concordou em coroar o filho Alexios IV coimperador.

Mas as coisas ainda não iam bem para nenhum dos lados. Alexios III fugira com boa parte dos tesouros em ouro e jóias. Alexios IV, desesperado para reunir logo algum dinheiro, ordenou a destruição de antigos ícones romanos para a cunhagem de moedas, mas nunca se chegava ao valor prometido. Alexios conseguiu um adiamento de seis meses para o pagamento, nos quais pretendia empregar os cruzados contra seu tio, encastelado em Adrianópolis. Mas o povo via o desespero do imperador como sinal de fraqueza diante de estrangeiros (hereges, além de tudo), e se rebelou na sua ausência. Na confusão, latinos eram atacados, e venezianos revidavam destruindo o que podiam. Um quinto da cidade teria sido arrasada por incêndios. Quando Isaque II morreu, em janeiro de 1204, o senado bizantino (descendente direto daquela instituição romana) nomeou Nicolau Canabus imperador, mas o jovem preferiu renunciar e se esconder numa igreja. Sem um líder formal (Alexios IV, voltando do estrangeiro, já não tinha mais sua autoridade reconhecida), Bizâncio estava sob comando de Alexios Doukas, que liderou uma rebelião contra os latinos, recusando-se a assumir as dívidas de seu suserano (que seria preso e executado semanas depois, dando espaço para Doukas ser coroado Alexios V).

Novamente a cidade foi atacada, e como sempre resistiu. Para estimular a coragem dos cruzados, clérigos insistiam na tese de que Deus os estava testando, e que a punição aos bizantinos era certa, pois haviam assassinado seu legítimo senhor; "os gregos são piores do que os judeus", pregavam. Em 13 de abril de 1204, os invasores tomaram a cidade, saqueando-a por três dias. Tesouros e obras de arte seculares foram destruídos, civis roubados ou assassinados, igrejas violadas, freiras estupradas. A grande catedral de Santa Sofia foi desgraçada e seus ícones e livros destruídos, e os cruzados bêbados colocaram uma prostituta sentada no trono do Patriarca. Imediatamente, o antigo Império Bizantino se fragmentou em 5 partes, ficando a sua parte européia centrada em Constantinopla sob o comando do nobre belga Balduíno - coroado Balduíno I, Imperador Latino. O Império Latino resistiu por 57 anos a ataques de pretendentes gregos por todos os lados, bem como de búlgaros recém-unificados se aproveitando do tumulto vindos do norte. O Império Bizantino foi restaurado em 1261 por Miguel VIII Paleólogo.

As consequências do saque de Constantinopla foram profundas. O Império Bizantino - o que restava do Império Romano, da milenar cultura grega, e da autoridade cristã no oriente - jamais se recuperou da crise, e foi suplantado pelos turcos, que avançariam inexoravelmente sobre a rica Anatólia até chegar a Constantinopla no século XV, expandindo uma influência duradoura sobre o sudeste da Europa. O cisma que existia entre catolicismo e ortodoxia grega se tornou um abismo tão profundo e duradouro que em 2001 o Papa João Paulo II reconheceu e expressou pesar pelo que os cruzados fizeram a Constantinopla, ao que o contemporâneo Patriarca Bartolomeu I aceitou como desculpas. A aproximação ainda é um trabalho político muito delicado, trabalhoso, e lento.

Poucos homens chegaram à Terra Santa na Quarta Cruzada, apenas reforçando posições já asseguradas então. Nenhum desembarcou no Egito.

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