sexta-feira, 28 de julho de 2017

Merovíngios e Carolíngios

Em 28 de julho de 754, Pepino, o Breve ("Le Bref", também traduzido por "O Curto" por conta de seus cabelos curtos) foi coroado rei dos francos pelo papa Estevão II em Paris. Foi a primeira vez que um Papa se deslocou de Roma para coroar um monarca, o ponto final da dinastia merovíngia na França, e um evento marcante da gradual passagem entre a Antiguidade e a Idade Média na Europa Ocidental.

Os francos foram uma confederação de tribos germânicas que se deslocou para as fronteiras romanas por volta do século III e ocuparam a margem direita do baixo Reno. Assim como outras tribos, os francos fizeram incursões ao interior do império (chegando tão longe quanto a Catalúnia), mas foram mantidos, com muito custo, fora das fronteiras. Até que, para tentar pacificar e assimilar esses "bárbaros", o imperador Juliano permitiu, em 358, que uma facção dos francos, os salianos, se estabelecessem entre o sul da Holanda e o nordeste da França, condicionando a mudança à sua submissão à autoridade imperial e seu alistamento entre os foederati (corpo do exército romano composto e comandado por "bárbaros").

À medida em que a autoridade imperial se enfraquecia, os francos conquistaram crescente autonomia política, e, emprestando as instituições e modelos de administração de Roma, formaram seus próprios reinos. Em Tornacum (atual Tournai, na Bélgica) surgiu uma facção que viria a dominar as demais, graças à sua boa relação com o romano Egídio, administrador da Gália que, no apagar das luzes de Roma, declarou o norte da frança seu próprio império. Egídio (e, após sua morte, seu filho Siágrio), retendo um fragmento do Império Romano cercado de invasores germânicos que inundavam a França, contou com o apoio do rei franco Childerico I de Tornacum para conter os visigodos que tomavam a parte ocidental da Gália. Quando o ostrogodo Odoacer destronou o último imperador romano do ocidente em 476, Siágrio se recusou a reconhecê-lo. Como o imperador do oriente, Zenão, preferia a amizade de Odoacer e seus conquistadores germânicos ao pequeno "Duque" (título que Siágrio adotava, embora os francos o chamassem de "rei dos romanos"), e Siágrio ficou isolado.

Childerico observava a mudança de eixo de poderes na Europa. Embora engajasse em campanha ao lado de Egídio contra os godos, ele chegou a discutir com Odoacer uma aliança contra a tribo dos alamanni. Quando morreu, foi sucedido pelo seu filho Clóvis I, que passou a guerrear contra Siágrio até derrotá-lo em 486, em Soissons, e anexar todo o seu território, estendendo o domínio franco até Rennes, às portas da Bretanha. A dinastia da qual Clovis fazia parte ficou conhecida como Merovíngia, em referência a seu avô, chefe (ou rei) dos francos em Tornacum, Merovingh, personagem possivelmente legendário, filho, entre outras versões, de um deus marinho.

Os merovíngios se tornaram uma potência militar no norte da França, expandindo seu domínio sobre a Burgundia, conquistando os visigodos no oeste, e, depois do colapso dos ostrogodos sob ataque bizantino, anexando a Provença, chegando às fronteiras da Itália. Porém, internamente, as disputas pelo poder se iniciaram com a morte de Clóvis: filhos e netos declaravam-se reis, e entravam em guerra uns com os outros. De maneira que, para os reinos vizinhos, o reino franco era territorialmente coeso e militarmente poderoso, mas internamente era bem caótico. Apenas em 679 Teuderico III conseguiu unificar o reino sob um único rei, embora tenha sido mais um fantoche do mordomo (cargo que, no mundo merovíngio, correspondia ao de primeiro-ministro) do seu palácio em Paris, Ebroin, e depois dependente dos que o sucederam. A força que os mordomos do palácio alcançavam alterou a vida política do reino franco. Como os reis se tornavam figuras de segunda importância, a união dinástica se estabilizou por mais de 60 anos, sob tutela dos mordomos, estes sim, disputando encarniçadamente o poder.

O período merovíngio também foi uma fase de grande difusão do cristianismo na Europa Ocidental. Já no século VI a religião estava bem difundida na Gália romana e entre os francos que se estabeleciam nela, e a nobreza merovíngia tomava vantagem da boa relação com a Igreja, favorecendo o estabelecimento de monastérios em terras doadas, que no final retornavam ao controle dos nobres com a nomeação de algum parente para o cargo de abade. Foi uma fase de enorme aparelhamento da Igreja na França, mas o poder era compartilhado e precisava ser mantido, a despeito da volatilidade política dos francos. Isto explica a atenção que Roma passou a dar à coroa francesa dali em diante.

Os reis merovíngios continuaram a exercer uma função cerimonial enquanto os seus mordomos conduziam a guerra, a política e a economia. Pepino de Heristal, mordomo do palácio de Aachen unificara em torno de si o poder de facto sobre os francos ainda no tempo de Teuderico. Seu filho, Carlos Martel ("O Martelo"), contudo, precisou vencer uma guerra civil para assegurar-se no cargo. Quando enfim emergiu triunfante em 718, os muçulmanos do Califado Omíada já haviam invadido a Espanha visigótica vindos da África, e marchavam em direção à França. Um grande exército mouro-árabe desembarcou na Aquitânia em 721 e tomou a cidade de Toulouse. O duque da Aquitânia, Odo, acorreu a Carlos Martel por ajuda. Martel precisou constituir um exército permanente, ou seja, mobilizar os homens durante o período em que deveriam estar cuidando do plantio e da colheita de suas terras, e para isso precisou confiscar terras cedidas à Igreja (muitas delas cedidas pelo próprio Martel), causando tamanho mal estar com o clero que Martel estava a ponto de ser excomungado. Porém, o sucesso da campanha, culminando com a vitória na Batalha de Tours em 732 (a partir da qual os califados muçulmanos nunca mais conseguiram invadir a França com sucesso), fez recuperar seu prestígio.

Depois de conter muçulmanos e obter vitórias contra os reinos germânicos no leste, Martel sentiu-se tão seguro de sua posição que não se preocupou em coroar um novo rei quando seu soberano, Teuderico IV, faleceu. Em seus últimos seis anos como mordomo, Martel governou sozinho, assentando sua autoridade sobre povos conquistados e imprimindo reformas administrativas. Ele recusara um pedido de auxílio do Papa contra os lombardos, mas isso demonstrava a relação de dependência entre o papado e o poder militar franco. Seu exército (que enfim desmobilizara) contava com a infantaria e cavalaria pesadas que se tornariam uma referência romântica dos exércitos europeus da Idade Média.

Quando morreu, seus dois filhos, Carlomano e Pepino, dividiram suas terras (um terceiro filho, Grifo, meio-irmão dos dois, clamava o direito a parte da herança, mas foi preso por ambos, enclausurado em um monastério, depois morto durante uma rebelião). Carlomano rapidamente assentou sua função de mordomo (e a própria unidade territorial do reino) coroando um parente obscuro dos merovíngios, Childerico III. Por motivos não muito esclarecidos, Carlomano retirou-se a um mosteiro em 747, deixando todo o poder com Pepino. Vendo a si mesmo como o centro do poder do reino franco, e entendendo as dificuldades que o papado enfrentava com os lombardos na Itália, Pepino enviou uma carta ao Papa Zacarias, com uma sugestão subentendida: "Sobre os reis dos francos que não mais possuem poder real: isto é apropriado?". Zacarias enviou sua resposta confirmando achar inapropriado que houvesse um rei sem poder real, e com isso Pepino moveu-se para depor Childerico e confiná-lo a um monastério.

A dinastia merovíngia chegara ao fim e dera lugar à dinastia carolíngia (em referência a Carlos Martel). Os nobres francos proclamaram Pepino rei em 752, mas a viagem que o Papa Estevão II fez a Paris para coroá-lo pessoalmente, no dia 28 de julho de 754, legitimou seu poder e consolidou sua aliança com o papado.

As subsequentes conquistas de terras lombardas, posteriormente doadas ao papado, se tornaram o arcabouço do que viriam a ser os Estados Papais, o reino no centro da Itália governado pelo Papa até a unificação da península italiana no século XIX, e do qual o Vaticano é o último remanescente. Pepino também conquistaria o último quinhão do califado na França, expulsando os omíadas de Narbonne, e "pacificaria" (com particular violência) a Aquitânia , então uma província rebelde. Com sua morte, seguindo o costume franco, seu reino foi dividido entre seus dois filhos, Carlos e Carlomano. Carlomano morreu de causas naturais em 771, deixando para Carlos (conhecido para a posteridade como Carlos Magno) todo o reino. Ele conquistaria uma fímbria de terra no norte da Espanha muçulmana (cuja campanha e seus personagens se tornariam temas de canções medievais), e submeteria os lombardos, feitos pelos quais o Papa o declararia "Imperador de Roma", dois séculos e meio depois do fim do Império do Ocidente. O reino franco se tornara um império por si próprio, cuja porção oriental subsistiria até o início do século XIX como Sacro Império Romano. As cortinas do mundo antigo terminaram de se fechar por completo para dar lugar à Idade Média.

Neste dia também: A formação da Union Mundial pro Interlingua em Línguas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário