quinta-feira, 27 de julho de 2017

Forte Negro

Em 27 de julho de 1816 um destacamento do exército americano atacou e destruiu Negro Fort, uma fortificação na Florida, então território espanhol, ocupado por negros libertos, escravos fugidos, e alguns nativos e mestiços.

A história de Negro Fort (que eu peço licença para chamar de Forte Negro daqui por diante) começou durante a Guerra Anglo-Americana de 1812. Após a independência dos Estados Unidos, os americanos iniciaram um processo de expansão via anexação (pela força, se a diplomacia falhasse) de territórios indígenas e a aquisição de colônias europeias, como a Louisiania francesa. O conflito de interesses entre o expansionismo americano e a manutenção do império colonial britânico nas Américas - seu principal trunfo contra o Bloqueio Continental imposto por Napoleão ao comércio das nações europeias com a Inglaterra - criaram tensões insustentáveis entre os dois países. A política britânica de apoio aos nativos americanos, que viam como aliados contra a expansão americana, e que por sua vez atacavam colonos em seus territórios (não reconhecidos pelos americanos), levaram à guerra. A Inglaterra, contudo, não poderia empregar muitos recursos neste confronto, uma vez que seu exército e marinha concentravam-se no apoio a Portugal e Espanha na virada da Guerra Peninsular contra a França. As tropas estacionadas no Canadá chegaram a tomar Detroit brevemente, mas a Guerra de 1812 foi mais um conflito de atritos, com poucos ganhos de um lado ou de outro - exceto pelos avanços dos Estados Unidos sobre as nações nativas envolvidas.

Durante a guerra, os britânicos buscavam recrutar seminoles (um amálgama de povos nativos, principalmente muscogees vindos do norte) no sul dos Estados Unidos e na Florida espanhola (a Espanha, àquela altura, era uma aliada dos britânicos). O rio Apalachicola, no oeste da atual Florida, se tornou um canal importante de contato com o interior e uma via de transporte de homens e mantimentos. Em 1815, antes do fim da guerra, o comandante britânico na região, tenente Edward Nicolls, coordenou a construção de um forte, equipado com um canhão, armas e munições. Com essa base fixa, além de nativos, os ingleses também abrigavam e recrutavam escravos fugidos de propriedades rurais americanas ao norte, garantido-lhe liberdade e incorporando-os ao seu corpo de fuzileiros coloniais. Quando a guerra terminou, os britânicos abandonaram o local, mas os ex-escravos permaneceram, bem como milhares de mosquetes, carabinas, espadas, pistolas, e grande quantidade de pólvora para rifles e canhões. O Forte Negro atraiu mais escravos fugidos, chegando a abrigar uma população de cerca de 800 negros e algumas dezenas de seminoles. Os negros, usando conhecimento adquirido da terra, cultivavam os arredores do forte, tornando-o quase auto-suficiente.

Os seminoles ainda viam os negros fugidos como escravos, mas sua relação com a escravidão era decididamente mais mutualista, mais semelhante ao sistema feudal francês, do que com o sistema escravocrata americano: os negros que concordassem em viver em território seminole se obrigariam a pagar tributo em víveres e participar de caçadas e da guerra, em troca de segurança, direito a propriedade, e liberdade de ir e vir. Um cenário muito mais favorável. Seminoles e negros contraíam matrimônio, e mestiços passaram a constituir grande parte da nação seminole na Florida.

O Forte Negro no coração do território seminole era uma espécie de farol para os escravos do sul que almejavam a liberdade. Um fazendeiro do sul escreveu uma carta ao então Secretário de Estado John Quincy Adams, reclamando que a existência destes "salteadores negros" constituía uma "vizinhança extremamente perigosa a uma população como a nossa", e o próprio governo americano considerava o forte um foco de hostilidade e uma ameaça à "segurança" dos seus escravos. De fato, o governo enviou em setembro de 1815 uma milícia de 200 homens contra o forte, e a sua derrota conferiu aos defensores uma sensação de segurança tal que eles mesmos passaram a fustigar as terras além da fronteira, no sul da Georgia. Um jornal local perguntava: "Até quando a este mal (...) será permitido existir?".

Para guarnecer a fronteira, e 1816 foi construído um forte na Georgia, Fort Scott. O General Andrew Jackson decidiu que a rota mais viável para abastecer o forte era pelo rio Apalachicola, subindo pelo trecho da Florida espanhola. Em 17 de julho de 1816, durante uma dessas operações, duas canhoneiras subindo o rio com mantimentos foram atacadas ao largo do Forte Negro enquanto 5 marinheiros enchiam seus cantis com água, resultando em três mortos e um preso (o quinto mergulhou no rio e voltou à sua embarcação). Jackson requisitou autorização para atacar o forte, e Adams viu nisso a oportunidade para iniciar uma campanha para tomar a Florida.

Dez dias depois, duas canhoneiras subiram o rio com 250 homens. Defensores do forte enviaram homens para fustigar o inimigo ao longo do percurso, de modo que, quando os americanos chegaram, havia 330 defensores encastelados, incluindo 30 guerreiros nativos. O general Edmund Gaines ordenou a rendição, ao que o líder do forte, um africano chamado Garson, respondeu hasteando uma bandeira britânica, e os defensores gritavam "Me dêem a liberdade ou me dêem a morte!" (grito de ordem proferido pelos revolucionários americanos durante sua guerra de independência). Os americanos se posicionaram em terra e abriram fogo, enquanto as canhoneiras tomavam posição no rio. Os defensores, mesmo bem armados, eram mal treinados e muito pouco eficientes.

Temendo as peças de artilharia no forte, as canhoneiras atiravam apenas para testar o alcance e a distância máxima em que poderiam abrir fogo. Após cerca de 9 tiros de teste, uma décima bala atingiu em cheio o depósito de munições do forte. Houve uma enorme explosão, ouvida a 100 quilômetros de distância, que vitimou quase todos os defensores e as famílias abrigadas ali, cerca de 300 vítimas fatais e um número não contabilizado de feridos. A destruição deixou o próprio general Gaines chocado. Foi o tiro de canhão mais mortal da história americana.

Os sobreviventes foram capturados. Garson foi executado por um pelotão de fuzilamento, e um chefe choctaw, que comandava os guerreiros nativos, entregue aos creek, nativos aliados dos americanos, que o mataram e escalpelaram. Os demais foram vendidos como escravos aos seus antigos donos, ou aos donos dos seus pais.

Um líder seminole chamado Neamathla, ultrajado pelas mortes de seminoles na batalha, ameaçou atacar quem quer que saísse de Fort Scott através do rio Flint. Gaines então enviou 250 homens para prendê-lo, e a batalha que se seguiu é reconhecida como a abertura da Primeira Guerra Seminole em 1817, que acabou com a anexação da Florida (a Espanha pouco pôde fazer além de protestar oficialmente) e o confinamento dos seminoles em uma reserva. Em 1818 o tenente James Gadsden construiu um novo forte a poucos metros da ruína do Forte Negro, e desde então todo o sítio ficou conhecido como Fort Gadsden, apagando da memória aquele símbolo da resistência dos escravos do sul. Porém a aliança ocasional de seminoles e negros persistiu em outras comunidades mestiças até os dias de hoje - comunidades que enfrentam segregação natural da sociedade americana e da própria nação seminole, centrada hoje em dia no estado de Oklahoma. Muitos dos seus descendentes ainda habitam a Florida, o Texas (vindos do México, onde se estabeleceram como escravos fugidos no século XIX) e as Bahamas, para onde fugiram da guerra de 1817.

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